O aparecimento de um desporto jogado por mulheres foi durante muitos anos um “corpo estranho” na sociedade portuguesa. Foi nesse registo que a equipa feminina do Clube Futebol Benfica, também conhecido pelo Fofó, entrou na história do futebol feminino ao sagrar-se bicampeã nacional e vencedora da Taça de Portugal (2014/15 e 2015/16) – o primeiro título até teve direito a festa no Marquês de Pombal com centenas de pessoas. Depois dessas conquistas, o clube chegou à Europa para disputar a qualificação para os 16 avos de final da Liga dos Campeões.
O Fofó é o melhor exemplo de como rapidamente se passa do céu ao inferno. A chegada do profissionalismo ao futebol feminino teve efeitos devastadores no clube que nasceu no bairro de São Domingos de Benfica. Perdeu as suas melhores jogadoras para os rivais e, como não tinha capacidade financeira para se reforçar, acabou por descer à segunda divisão em 2021. Um ano antes, tinha passado por uma das mais experiências mais dolorosas ao faltar ao jogo da 4.ª jornada do campeonato nacional frente ao Torreense. «Não vamos conseguir jogar. Com o jogo agendado para as 19h00 de um dia de semana, não temos jogadoras suficientes. As nossas atletas são estudantes e outras têm as suas atividades laborais», justificou, na altura, o presidente do Clube Futebol Benfica, Domingos Estanislau.
A luta, a persistência e a resiliência das mulheres moldou gerações, derrubou preconceitos e criou condições para as principais equipas chegarem às grandes competições europeias e a Portugal participar no primeiro campeonato do mundo em 2023. Importa salientar que os bons resultados obtidos pela seleção nacional têm por base o trabalho realizado pelos clubes na formação e desenvolvimento das atletas.
Diferentes realidades
De acordo com os dados do Portugal Football Observatory, da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), o número de jogadoras federadas passou de 2.446, em 2012/13, para 10.423, em 2022/23. É curioso verificar que no primeiro ano 39% das jogadoras eram seniores e 5% estavam nos Sub-9, passados 11 anos, a percentagem de jogadoras seniores caiu para 20% e os Sub-9 aumentaram para 8%. Ainda durante esse período, o número de clubes com futebol feminino aumentou de 177 para 374. Outro dado interessante é que há mais jovens a praticar futebol. Cerca de 62% das jogadoras têm entre 18 e 24 anos e a média de idades é de 23 anos, quando no campeonato masculino é de 24 anos. De salientar que o número de jogadoras estrangeiras também aumentou. Na época 2019/20, o campeonato foi disputado por 241 portuguesas e 66 estrangeiras, em 2023/24 havia 190 jogadores estrangeiras e 138 portuguesas.
De modo a melhorar a competitividade interna e na Europa – Portugal vai três equipas na Liga dos Campeões em 2025/26 – aumentar a base de recrutamento e potenciar o contexto em que jogam, a federação decidiu alterar o formato competitivo da primeira divisão a partir da próxima temporada, que passa a ser disputada por dez equipas, menos duas do que atualmente, e foi criada a quarta divisão, uma competição aberta com forte base regional.
Existem, contudo, enormes assimetrias no futebol sénior feminino no que diz respeito às infraestruturas desportivas, horários dos treinos e condições de trabalho, sem esquecer a proteção social das atletas, especialmente na maternidade e doença. A maioria das jogadoras têm contratos amadores e de prestação de serviço. Clubes como o Benfica, Sporting, Braga, Racing Power, Torreense e Valadares têm plantéis profissionais, mas as restantes seis equipas são constituídas essencialmente por jogadoras amadoras, muitas têm uma situação precária. Durante o dia são mães, trabalhadoras e estudantes. À noite, vestem as cores do seu clube e vão treinar, mesmo quando o cansaço começa a dar sinais.
Benfica é o clube com maior investimento
A primeira divisão é disputada por 12 equipas e está avaliada em 1.240 milhões de euros, segundo o site de futebol feminino Soccerdonna. O Benfica é, de longe, o clube que mais investe com um orçamento de cinco milhões de euros para a temporada 2024/25. O plantel é formado por 24 jogadoras, 13 são estrangeiras, e está avaliado em 905 mil euros. O Sporting tem um plantel com 26 jogadoras, incluindo 12 estrangeiras, e tem um orçamento de três milhões de euros. O Braga tem um plantel formado por 24 jogadoras, com 12 estrangeiras, e tem um orçamento de 1,5 milhões de euros, tal como o Racing Power Football Club. As equipas do meio da tabela como o Torreense e Valadares têm um orçamento inferior a um milhão de euros e o fosso é ainda maior para aquelas ocupam os últimos lugares e passam grandes dificuldades com orçamentos inferiores a 300 mil euros. Para fazer uma época sem sobressaltos é necessário um orçamento mínimo de 600 mil euros.
Existe igualmente uma disparidade nos ordenados. Muitas das jogadoras profissionais ganham o ordenado mínimo nacional de 870 euros, um valor que é três vezes inferior ao vencimento mínimo do futebol masculino. As equipas de meio da tabela têm ordenado médio de 1.500 euros, o Racing Power tem um teto salarial de 2.400 euros, mas no Damaiense há uma jogadora a receber 4.000 euros e o vencimento mais elevado é de uma atleta do Benfica que recebe 9 mil euros por mês.
No futebol feminino português há uma contradição difícil de entender. Sendo a Federação Portuguesa de Futebol uma entidade de utilidade pública desportiva não pode organizar competições profissionais, mas exige que os clubes tenham um número mínimo de atletas profissionais (16) para poderem receber apoios financeiros. Acontece que há clubes que obtiveram resultados desportivos, mas como não cumpriram essa obrigatoriedade não receberam qualquer verba. A profissionalização do futebol feminino poderia atenuar essa discrepância, mas para isso tem de haver coragem para dar esse passo.
A diferença de ordenados entre o futebol masculino e feminino é uma realidade reconhecida pela própria FIFA, que divulgou recentemente a informação de que o salário médio anual de uma jogadora de futebol profissional é de 9.964 euros.
Muito Racing Power
O Racing Power Football Club foi fundado em julho de 2020 e, em quatro anos, subiu ao escalão principal do futebol feminino com uma equipa 100% profissional. Faz do Estádio Nacional a sua casa até final da época, mas, em 2025/26, vai passar a jogar no Complexo Desportivo Vale da Rosa, em Setúbal. Nuno Painço é o presidente do clube e fez um retrato do momento atual do futebol feminino sénior. «O apoio dado aos clubes é muito curto. O futebol feminino tem de caminhar para a profissionalização, tem os mesmos direitos do futebol masculino. Até agora faltou coragem para dar esse passo, acredito que com Pedro Proença isso aconteça», disse o responsável do Racing Power. E acrescentou: «Existe um fosso muito grande do Benfica e Sporting para os outros, mesmo o Braga está num patamar inferior. É muito difícil lutar com clubes que também são SAD e que têm outro poderio financeiro». «Temos feito milagres. Na primeira época na Liga BPI [primeira divisão] ficámos em terceiro lugar, fomos à final da Taça de Portugal e à meia-final da Taça da Liga. Este é o nosso segundo ano e estamos em quinto lugar, a lutar com o Valadares pelo quarto posto», disse Nuno Painço, para quem «muitas vezes não é o dinheiro que faz a diferença». «Temos feito um bom trabalho e sido muito criteriosos nas contratações», fez questão de salientar.
‘Formar a ganhar’
O orçamento para esta época é de 1,5 milhões de euros, incluiu uma parte destinada ao futebol de formação, e o objetivo está bem definido. «O Racing Power joga sempre para ser campeão, essa mentalidade faz parte do ADN desde a formação até à equipa profissional. Claro que é um objetivo difícil, mas temos de arranjar ferramentas para o conseguir», frisou o presidente. Chegados a este patamar existe um ambicioso plano estratégico para 2025-2030. «Nesse espaço de tempo temos de ganhar títulos e ir às competições da UEFA, só assim é que o clube pode sobreviver», salientou.
O Racing Power tem a particularidade de ter sido o único clube que foi campeão feminino na segunda e terceira divisão e o passo seguinte é vencer na primeira divisão. «Queremos fazer o pleno», mas para isso «temos de ter pessoas experientes e conhecedoras em todas as áreas e trazer novos investidores», explicou Nuno Painço.
A formação é também encarada com especial atenção como nos explicou o presidente do Racing Power. «O nosso lema é ‘Formar a ganhar’ e queremos ter as melhores jovens nos vários escalões. Além disso, não cobramos qualquer valor na formação para não sobrecarregar os pais com mensalidades e compra de equipamento. Os nossos treinadores sabem que as melhores têm de jogar, independentemente daquilo que os pais pensam e querem. É óbvio que tem de haver bom senso para manter motivadas aquelas que jogam e as que jogam menos. O clube precisa de todas», concluiu.