Ao permitir-se o cruzamento entre o exibicionismo narcisista e a falsa sensação de privacidade (porque há redes sociais “seguras”, “com encriptação point to point” e sms com cheiro a água de rosas), numa pradaria de funções públicas e de informação classificada, o disparate atinge dimensões épicas.
A classificação de informação existe em todas as organizações de forma mais ou menos consciente. No caso dos Estados e das organizações internacionais que os integrem, a classificação de informação é regulada, com a identificação de quem e em que circunstâncias pode classificar (e desclassificar) informação, a que informação pode aceder e quais as consequências das infracções a este quadro regulatório.
A circulação de informação entre indivíduos, serviços e Estados assenta na confiança e, por maior simplificação burocrática, na credenciação de segurança feita pelas autoridades de um determinado Estado, credenciação que será reconhecida pelos Estados numa base de convenção internacional bilateral (acordos para troca de informação classificada) ou multilateral (no âmbito da União Europeia ou da NATO).
Sendo a credenciação uma tarefa administrativa, há que reconhecer à Administração uma margem de livre apreciação. Mas essa margem não pode tender para critérios em branco, amplíssimos ou tão dúcteis que não sirvam qualquer propósito útil. Em Portugal vigoram ainda uns regulamentos de inspiração militar, vertidos para instruções de segurança nacional (SEGNAC). Para ilustração das limitações desta solução atente-se no SEGNAC1, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros 50/88, no segmento relativo aos requisitos para a credenciação superior a confidencial: “É de lealdade e honestidade indubitáveis; Tem reputação, hábitos, contactos sociais, discrição e bom senso que permitam, com a maior segurança, que lhe sejam confiadas informações classificadas.”
A credenciação de segurança (e a sua desgraduação ou cancelamento) pode facilmente cair num jogo de espelhos: não é atribuída a credenciação porque existe informação (classificada) que o impede. O candidato à credenciação ou a vítima do cancelamento não se pode defender porque não tem (ou deixou de ter) acesso à informação classificada. E porque, na prática de todos os Primeiros Ministros da III República, a desclassificação da informação nunca é autorizada, não se permite uma pronúncia pelos tribunais.
Noutros Estados mais garantistas existem tribunais em que todos os actores (juízes, magistrados do Ministério Público, advogados, ou “Special Advocates” como no Reino Unido, e funcionários judiciais) possuem credenciação de segurança, os julgamentos decorrem à porta fechada e as sentenças são tornadas públicas com amputação da informação classificada.
Na ausência destes mecanismos, a credenciação de segurança pode ser um instrumento do arbítrio ao serviço de vinganças políticas e pessoais (v. a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 19 de Setembro de 2017, Regner vs. The Czech Republic, e a decisão do Tribunal Constitucional Checo, de 26 de Abril de 2005, caso PL ÚS 11/04) ou da perseguição a membros de determinados grupos (v. United State Court of Appeals, Ninth Circuit, acórdão de 2 de Fevereiro de 1990, High Tech Gays vs. Defense Industrial Security Clearance Office).
Na semana passada a Administração Trump II, ao retirar a credenciação de segurança, levou às cordas uma das maiores sociedades de advogados, a Paul Weiss (facturou 2 600 milhões de dólares em 2024), numa acintosa vingança pelo pretérito patrocínio de inimigos políticos. Para recuperar a credenciação a Paul Weiss aceitou revogar as política de diversidade, igualdade e inclusão.
Uma semana depois, o vértice da Administração Trump II foi apanhado a combater no Signal, a golpes de emoji, os Houthis do Iémen.
Karma is a bitch.