Os cientistas em contextos autoritários


Os nossos colegas norte-americanos estão muito preocupados com o sentimento de incerteza que se começa rapidamente a instalar e o futuro da ciência nos Estados Unidos.


As últimas semanas têm sido de incredulidade e alarme para muitos cientistas em todo o mundo: os media descrevem despedimentos em instituições federais norte-americanas de referência, ouvem-se rumores e conhecem-se cortes sobre os financiamentos federais para a ciência nos Estados Unidos numa escala totalmente nova e, previsivelmente, avassaladora.

Estas ações são alimentados por ordens executivas do Presidente norte-americano e pelo Department for Government Efficiency de Elon Musk; muitas estão a ser contestadas em tribunal, mas o padrão sugere que, mesmo se os tribunais decidirem em sentido contrário, as decisões se manterão, não se vislumbrando um caminho alternativo para os próximos quatro anos. Entre os eleitores parece existir até apoio maioritário a estas medidas, em nome do corte da despesa federal e da desburocratização; os nossos colegas norte-americanos estão muito preocupados com o sentimento de incerteza que se começa rapidamente a instalar e o futuro da ciência nos Estados Unidos [1].

O paralelismo com o período entre as duas guerras mundiais no século XX começa a revelar-se: o exacerbar de sentimentos isolacionistas, a retórica política que distorce a realidade e favorece posições anti-ciência e a quebra das leis e das convenções sociais. Como se devem posicionar os cientistas nos Estados Unidos e no resto do mundo?

No período entre as guerras mundiais, a Alemanha era o centro da Física – as universidades que atraíam os melhores estudantes e professores, os desenvolvimentos mais importantes e as grandes descobertas tiveram o epicentro na Alemanha. No final da Segunda Guerra Mundial, o êxodo para os Estados Unidos alterou o centro dos desenvolvimentos na Física da Europa para os Estados Unidos.

Albert Einstein foi dos primeiros cientistas a identificar os perigos que se anunciavam no início dos anos 30 do século XX. Sofreu perseguições e represálias, primeiro veladas e subtis, e mais tarde diretas, refugiando-se primeiro na Bélgica e depois, já temendo pela sua vida, em Inglaterra, em trânsito para os Estados Unidos.

O aspeto mais complexo deste período, e que merece uma reflexão, é a reação da generalidade dos cientistas ao ataque sistemático e ao desmoronar das instituições universitárias na Alemanha. “Serving the Reich: The Struggle for the Soul of Physics Under Hitler” de Philip Ball [2] é leitura obrigatória para perceber o que aconteceu e tentar antever os próximos tempos. Segue os percursos e os dilemas morais e éticos de três grandes cientistas – Max Planck, Peter Debye, e Werner Heisenberg –, todos Prémios Nobel da Física, no período anterior à guerra e no pós-guerra.

Na Alemanha, as perseguições e os despedimentos sistemáticos nas universidades foram acompanhados por resignação – muitos cientistas tentaram proteger os seus colegas, encontrando-lhe posições fora da Alemanha ou facilitando a sua fuga. Figuras tutelares, com responsabilidades institucionais e reputação (e.g. Planck, Debye e Heinsenberg), muitas vezes incrédulas com os desenvolvimentos e com as suas consequências, foram colocadas perante escolhas que os afetavam diretamente ou às suas famílias, aos seus colegas mais próximos, e às instituições que lideravam. Perante a determinação ideológica do regime, e os seus instrumentos de pressão, argumentando uma visão idealística da ciência ou em nome de valores patrióticos ou de responsabilidade institucional, muitos cientistas claudicaram e conviveram com um contexto ditatorial.

Observamos cenários equivalentes depois da Segunda Guerra Mundial em múltiplos países. Apesar de todos reconhecermos que os ideais da ciência coincidem com os ideais democráticos, encontramos comunidades científicas e desenvolvimentos científicos significativos mesmo em contextos fortemente adversos à liberdade. No seu livro, Philip Ball argumenta que, de facto, a politização da ciência é fortemente (e principalmente) determinada pela estrutura do seu financiamento e que isso é, aliás, independente do regime político. Este ponto é particularmente evidente hoje, nos Estados Unidos, em que os cortes nos projetos de investigação biomédica nos National Institutes of Health parecem ter também como objetivo o corte de outros programas nas universidades, como por exemplo os programas de doutoramento nas Humanidades [3]. Neste cenário, os dilemas que se colocam aos cientistas nos Estados Unidos e em todo o Mundo [4] serão cada vez mais claros: refugiarem-se nos ideais da ciência, e numa visão apolítica e idílica do seu papel na sociedade, ou, como Einstein, manterem o seu compasso ético e moral,  colocando-se em risco, e reforçarem a defesa da ciência, dos seus valores centrais e do seu papel central em toda sociedade.

[1] No mais recente episódio do seu podcast “MindScape”, Sean Carrol, Professor na Johns Hopkins University, descreve o contexto

e as suas principais consequências, e, de forma objectiva, desmonta muitos dos potenciais

argumentos que sustentam os cortes anunciados.

[2] Philip Ball, Serving the Reich: The Struggle for the Soul of Physics Under Hitler, Vintage, 2014

[3] https://www.nytimes.com/interactive/2025/02/13/upshot/nih-trump-funding-cuts.html?smid=nytcore-ios-share&referringSource=articleShare

[4] A actual discussão na comunidade científica britânica em torno de Elon Musk e da sua

fellowship na Royal Society ilustra também a dimensão ética do contexto nos Estados Unidos: https://www.theguardian.com/science/2025/feb/14/elon-musk-royal-society-open-letter-academics

Professor no Departamento de Física,

Instituto Superior Técnico

Os cientistas em contextos autoritários


Os nossos colegas norte-americanos estão muito preocupados com o sentimento de incerteza que se começa rapidamente a instalar e o futuro da ciência nos Estados Unidos.


As últimas semanas têm sido de incredulidade e alarme para muitos cientistas em todo o mundo: os media descrevem despedimentos em instituições federais norte-americanas de referência, ouvem-se rumores e conhecem-se cortes sobre os financiamentos federais para a ciência nos Estados Unidos numa escala totalmente nova e, previsivelmente, avassaladora.

Estas ações são alimentados por ordens executivas do Presidente norte-americano e pelo Department for Government Efficiency de Elon Musk; muitas estão a ser contestadas em tribunal, mas o padrão sugere que, mesmo se os tribunais decidirem em sentido contrário, as decisões se manterão, não se vislumbrando um caminho alternativo para os próximos quatro anos. Entre os eleitores parece existir até apoio maioritário a estas medidas, em nome do corte da despesa federal e da desburocratização; os nossos colegas norte-americanos estão muito preocupados com o sentimento de incerteza que se começa rapidamente a instalar e o futuro da ciência nos Estados Unidos [1].

O paralelismo com o período entre as duas guerras mundiais no século XX começa a revelar-se: o exacerbar de sentimentos isolacionistas, a retórica política que distorce a realidade e favorece posições anti-ciência e a quebra das leis e das convenções sociais. Como se devem posicionar os cientistas nos Estados Unidos e no resto do mundo?

No período entre as guerras mundiais, a Alemanha era o centro da Física – as universidades que atraíam os melhores estudantes e professores, os desenvolvimentos mais importantes e as grandes descobertas tiveram o epicentro na Alemanha. No final da Segunda Guerra Mundial, o êxodo para os Estados Unidos alterou o centro dos desenvolvimentos na Física da Europa para os Estados Unidos.

Albert Einstein foi dos primeiros cientistas a identificar os perigos que se anunciavam no início dos anos 30 do século XX. Sofreu perseguições e represálias, primeiro veladas e subtis, e mais tarde diretas, refugiando-se primeiro na Bélgica e depois, já temendo pela sua vida, em Inglaterra, em trânsito para os Estados Unidos.

O aspeto mais complexo deste período, e que merece uma reflexão, é a reação da generalidade dos cientistas ao ataque sistemático e ao desmoronar das instituições universitárias na Alemanha. “Serving the Reich: The Struggle for the Soul of Physics Under Hitler” de Philip Ball [2] é leitura obrigatória para perceber o que aconteceu e tentar antever os próximos tempos. Segue os percursos e os dilemas morais e éticos de três grandes cientistas – Max Planck, Peter Debye, e Werner Heisenberg –, todos Prémios Nobel da Física, no período anterior à guerra e no pós-guerra.

Na Alemanha, as perseguições e os despedimentos sistemáticos nas universidades foram acompanhados por resignação – muitos cientistas tentaram proteger os seus colegas, encontrando-lhe posições fora da Alemanha ou facilitando a sua fuga. Figuras tutelares, com responsabilidades institucionais e reputação (e.g. Planck, Debye e Heinsenberg), muitas vezes incrédulas com os desenvolvimentos e com as suas consequências, foram colocadas perante escolhas que os afetavam diretamente ou às suas famílias, aos seus colegas mais próximos, e às instituições que lideravam. Perante a determinação ideológica do regime, e os seus instrumentos de pressão, argumentando uma visão idealística da ciência ou em nome de valores patrióticos ou de responsabilidade institucional, muitos cientistas claudicaram e conviveram com um contexto ditatorial.

Observamos cenários equivalentes depois da Segunda Guerra Mundial em múltiplos países. Apesar de todos reconhecermos que os ideais da ciência coincidem com os ideais democráticos, encontramos comunidades científicas e desenvolvimentos científicos significativos mesmo em contextos fortemente adversos à liberdade. No seu livro, Philip Ball argumenta que, de facto, a politização da ciência é fortemente (e principalmente) determinada pela estrutura do seu financiamento e que isso é, aliás, independente do regime político. Este ponto é particularmente evidente hoje, nos Estados Unidos, em que os cortes nos projetos de investigação biomédica nos National Institutes of Health parecem ter também como objetivo o corte de outros programas nas universidades, como por exemplo os programas de doutoramento nas Humanidades [3]. Neste cenário, os dilemas que se colocam aos cientistas nos Estados Unidos e em todo o Mundo [4] serão cada vez mais claros: refugiarem-se nos ideais da ciência, e numa visão apolítica e idílica do seu papel na sociedade, ou, como Einstein, manterem o seu compasso ético e moral,  colocando-se em risco, e reforçarem a defesa da ciência, dos seus valores centrais e do seu papel central em toda sociedade.

[1] No mais recente episódio do seu podcast “MindScape”, Sean Carrol, Professor na Johns Hopkins University, descreve o contexto

e as suas principais consequências, e, de forma objectiva, desmonta muitos dos potenciais

argumentos que sustentam os cortes anunciados.

[2] Philip Ball, Serving the Reich: The Struggle for the Soul of Physics Under Hitler, Vintage, 2014

[3] https://www.nytimes.com/interactive/2025/02/13/upshot/nih-trump-funding-cuts.html?smid=nytcore-ios-share&referringSource=articleShare

[4] A actual discussão na comunidade científica britânica em torno de Elon Musk e da sua

fellowship na Royal Society ilustra também a dimensão ética do contexto nos Estados Unidos: https://www.theguardian.com/science/2025/feb/14/elon-musk-royal-society-open-letter-academics

Professor no Departamento de Física,

Instituto Superior Técnico