Revisitando o debate na Assembleia da República sobre “O estado da escola pública” (23 de maio de 2024) e estando atento aos discursos produzidos na comunicação social escrita e falada, parece que os problemas essenciais da escola portuguesa e do sistema educativo advêm do que “os outros” não fizeram (o habitual passa culpas da política portuguesa), do fraco desempenhos dos alunos em testes internacionais, do facilitismo dos currículos, das classificações (as notas) do 2.º e 3.º ciclos serem de 1 a 5 e não de 1 a 20, da inexistência de mais provas e exames, da falta de professores, dos seus vencimentos e do número de horas das suas componentes letivas e de uma gestão escolar apelidada de não democrática. O imediatismo das análises e a superficialidade das soluções sobressaem, deixando, mais uma vez, o maior problema (de fundo, cultural, estrutural) da educação portuguesa para as “calendas” do esquecimento (ou da ignorância).
Em 1947, António José Saraiva (AJS),[1] docente do então Liceu Gonçalo Velho, em Viana do Castelo, proferia uma brilhante palestra na abertura desse longínquo ano letivo, a qual foi publicada num livrinho, de 48 páginas e formato A5, que empresta o título a este artigo. Recupero parte das suas palavras, pois colocavam a tónica em problemas que, passados 77 anos, continuam a ser de uma grande (e desesperante) atualidade na escola pública.
Depois de revisitar o processo de construção da Escola e a mudança de nome (em França e Portugal) dos ministérios da “Instrução Pública” para “da “Educação Nacional”, AJS afirmava: “A Escola tornou-se indispensável”, para logo questionar “Mas o que é que ela deu em troca do que dava a Família?” e responder de imediato que “(…) a Escola ofereceu essa coisa dispersa e acéfala que é a aula coletiva, onde os alunos estão ligados pela solidariedade do tédio; (…) ofereceu a «lição» que o aluno recebe passivamente do professor. Neste novo quadro o aluno sente-se (…) um ser sem norte e sem objetivo, cujo único papel é o de deixar correr o tempo porque tanto faz o dia de amanhã como o de hoje. A Escola está formando em vez de homens essa coisa sem forma e sem espinha a que se chama o «estudante», produto social típico dos nossos métodos pedagógicos.”
Em pleno século XXI, a “pedagogia” na escola continua refém da aula coletiva e da lição. A sua força evidencia-se também no núcleo central da arquitetura escolar: as salas de aula, destinadas a um professor e uma turma, com as suas mesas e cadeiras dispostas esmagadoramente em fila para que os alunos continuem a ouvir o magíster dixit, agora com a tecnologia rudimentar do habitual PowerPoint.
A palestra de AJS lembrava-nos que “a Escola não é um curso de especialização, não é uma tribuna de conferências – a Escola é uma vida completa para os educandos, através da qual mediante uma experiência direta e pessoal ele se prepara para a vida adulta. No entanto, e pelo contrário:
“A Escola oferece (…) aos seus alunos um determinado conjunto de matérias que eles têm de armazenar na memória, obrigando-os por um lado a ouvir as conferências do professor na aula, por outro lado a ler em casa um compêndio que contém matéria das conferências do professor. (…)
Ora este conjunto de matérias, a que chamamos «o programa», (…) tem (…) uma finalidade a longo prazo (…): [torna a escola] simultaneamente uma escala para a Universidade, um curso de cultura geral sem finalidade imediata e uma escola de preparação para a burocracia. Sendo ao mesmo tempo estas três coisas (…) inclui disciplinas que só servem para uma futura especialização universitária (…) a par de outras que se supõe deverem fazer parte da bagagem de conhecimentos de um indivíduo medianamente culto, que pode ser no futuro, sem outra preparação, um burocrata médio. Mas, (…) se para nós educadores as disciplinas que ensinamos têm uma finalidade à vista, podemos dizer o mesmo dos alunos que as estudam? É evidente que não.”
Deste modo, AJS apresentava aquele que considerava ser o problema mais importante a necessitar de resolução nessa época: ”o da aprendizagem”, influenciada não só pelos métodos pedagógicos, mas também pelo que atualmente denominamos de currículo. Parecia (como ainda hoje parece) que os adultos criadores dos programas, ministros que os promulgam e professores que os aplicam (disciplinadamente), se esqueceram dos seus tempos de criança e do que sentiram quando foram alunos. Por isso, AJS relembrava que:
“A criança, com efeito, não é um homem culto e não vê as coisas como um homem culto, mas sim como se fosse uma criança. Aquilo que para nós [professores] tem uma finalidade não tem para ela finalidade alguma. Como podemos nós esperar que uma criança normal sacrifique um bocado da sua vida, ponha de lado a sua actividade que é própria da sua idade, force os seus impulsos da sua natureza espontânea para se ocupar de uma coisa que em nada lhe interessa e, até onde ela pode ver, para nada lhe serve?
E por outro lado, que podemos nós esperar dos métodos com que pretendemos fazê-las assimilar a matéria do programa? Nós (…) imaginamos que as coisas que lhe entram pelo ouvido se lhe gravam no cérebro; procedemos como se a criança fosse um ser contemplativo, capaz de uma curiosidade puramente intelectual. Ora a criança, tal qual como o adulto, é um ser essencialmente activo, só capaz de compreender mediante uma experiência activa e pessoal; e o conhecimento das coisas só lhe interessa na medida em que possa ser aplicado na acção, isto é, na medida em que possa modificar as coisas e influir nas relações com os seus semelhantes. Nós exigimos da criança aquilo que não admitiríamos para nós próprios: que ela tenha o amor da ciência pura e desinteressada, e que ela se reduza a uma atitude meramente passiva e recetiva.
É claro quem em tais condições a matéria ministrada nas escolas não pode interessar o aluno normal. O estudo é um trabalho a que ele não vê finalidade: é como para um burro andar à nora.” Já nessa época o problema da escola tinha estas duas faces evidentes: o tipo de ensino (os métodos pedagógicos) e os programas (“a matéria” a ensinar), percebendo-se, de forma clara, que o ensino heterónomo se sobrepunha a uma aprendizagem significativa para os alunos.
Infelizmente, os problemas da “escola nova” da época de AJS são também problemas na atualidade, com a agravante de que os nossos tempos são muito mais exigentes e desafiantes que os de outrora. Apesar de diferentes interações, subtilezas pedagógicas, outras dinâmicas e recursos, a realidade educativa dominante da escola portuguesa do século XXI é marcada pelo mesmo paradigma: o paradigma do ensino (heterónomo), da transmissão (unidirecional) e do conteúdo (prescritivo).
Face à falta de sentido da vida escolar, perguntava AJS, “o que inventámos para obviar a esta situação, para criar na escola um interesse e um objetivo visível a alcançar? Inventámos (…) o sistema do exame e da nota. A nota torna patente ao aluno o resultado do seu esforço. Se o aluno não pode interessar-se – a não ser que seja um jovem monstro – pelas declinações, interessa-se, em todo o caso, por um catorze, um dezoito ou simplesmente um dez, pelas consequências que o caso pode ter nos prémios e castigos da família, ou no seu amor próprio pessoal; mas paralelamente a este desinteresse cria-se o interesse pela nota.”
As declinações são passado, mas todas as disciplinas são atualmente habitadas por um conjunto de conteúdos sem qualquer aplicabilidade prática e desligados da “experiência direta e pessoal (…), da ação” dos alunos, dos seus interesses e motivações, descontextualizados de uma aprendizagem significativa.
“Prestemos atenção, meus Senhores, à situação monstruosa que desta maneira é criada. Se for possível alcançar a nota sem aprender a matéria, o aluno tentá-lo-á, visto que a nota é o único objetivo; e a fraude torna-se, por esta razão, não um caso esporádico, mas geral e comum, a tal ponto que o aluno perde a noção da fraude (…) e assim muitas crianças vigorosas e inteligentes serão inutilizadas pela vida escolar. Finalmente, muitos alunos fracamente dotados, sem interesses acentuados, pouco activos, anormais para a sua idade, conseguirão bons resultados, devido precisamente à sua passividade. As nossas turmas tornam-se desta maneira ajuntamentos de fraudulentos inconscientes, fracassados e pequenos sabichões inúteis e sem unhas para a vida. A Escola parece antes um asilo.
Ora a causa deste resultado terrível, patente aos nossos olhos (…) está na falta de interesse para a mentalidade infantil das matérias dos programas e dos métodos de aprendizagem que servimos; na duplicidade de interesses que representam para um lado a nota, para outro a matéria a estudar. E enquanto esta causa permanecer é inútil esperar da Escola um rendimento satisfatório.”
O problema residia, não só no tradicionalismo dos métodos pedagógicos usados (o ensino heterónomo da lição coletiva) e nos currículos prescritivos (“a matéria”, “os programas” a ensinar), mas também numa avaliação-artefacto que não passava de uma mera classificação (a nota). Tudo realidades que se mantêm, 77 anos depois!
Mas se desde abril de 1974 muitos governos têm insistido na necessidade da evolução dos métodos pedagógicos, feito das revisões curriculares um dos seus campos prediletos de ação, dado à avaliação formativa um grande relevo na legislação da educação e investido milhões (de escudos e de euros) em todo o processo de tentativa de melhoria da escola, por que motivo estes problemas persistem?
Persistem porque, para além de estratégias e ações erradas em cada uma dessas áreas (métodos pedagógicos, currículo e avaliação), nenhum governo, desde abril de 1974, olhou para o maior problema de fundo (estrutural) da educação portuguesa: a organização e o funcionamento da escola pública, a qual age como uma espécie de “anarquia organizada” (Cohen, March e Olsen, 1972) ou um “sistema debilmente articulado” (Weick, 1976), fruto da cultura de autossuficiência docente instalada na escola (o professor solitário na sua sala de aula), promovida pelo Estado (através da legislação que organiza a atividade letiva e de concursos centralizados), defendida “com unhas e dentes” pela esmagadora maioria dos professores (mascarada de autonomia docente) e suportada pela passividade (de sobrevivência) dos diretores das escolas. É este o motivo pelo qual todas as políticas educativas e iniciativas de inovação têm sido obstaculizadas logo à nascença ou votadas ao fracasso, mais tarde ou mais cedo.
Sem se enfrentar (com conhecimento, inteligência e determinação) este problema estrutural, continuarão a ser investidos milhões de euros do erário público e de fundos europeus na Educação, unicamente para “enriquecer” o caixote do lixo das políticas educativas, mantendo-se um status quo que permite que os muitos “reinos inexpugnáveis” em cada escola se sobreponham à necessidade, urgente e imperiosa, de ela funcionar como uma verdadeira organização. Cada escola terá de ter, através de um trabalho coletivo de construção, uma política comum de ação educativa, pedagógica e curricular (em vez de se divulgarem “boas práticas” para “inglês ver”), que permita às crianças e aos jovens terem um papel direto e ativo na escola, construindo aprendizagens significativas e profundas que os preparem para uma participação responsável e criativa nas comunidades que integram.
[1] António José Saraiva (1917–1993) foi professor universitário e liceal, antifascista e opositor ao salazarismo, tendo sido expulso do ensino, em 1949, por ter apoiado a candidatura de Norton de Matos à presidência da República e pertencer ao Partido Comunista Português. Em 1961 exilou-se em França, de onde regressou após o 25 de abril de 1974, tendo, então, sido professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e autor de uma vasta e importante obra ligada à literatura e à história da cultura portuguesa. É pai do jornalista José António Saraiva e irmão de José Hermano Saraiva, o conhecido comunicador de história.