A quantidade de solo que é artificializada em Portugal diariamente é de 6,7 hectares, o equivalente a entre seis a sete campos de futebol de terrenos que estão a deixar de ser rústicos para terem como destino a habitação, estradas, centros comerciais, centrais eólicas, etc. Os números foram avançados por Helena Roseta ao Nascer do SOL, uma das promotoras da carta aberta destinada ao Governo. «Estamos a perder território rústico todos os dias e somos um país pequenino então vamos comer o quê? Vamos importar tudo?», questiona.
A ex-deputada e também ex-vereadora da Câmara de Lisboa lembra que o argumento usado pelo Governo para levar a cabo a alteração do regime da gestão dos solos é a crise da habitação, mas não a convence. «Realmente a habitação está especulativamente cara, no entanto, há outras maneiras de responder a isto. Ainda bem que, pelo menos, quatro partidos deram-nos razão e o processo está a ser discutido abertamente, ao contrário da forma como feito o diploma».
De acordo com Roseta, uma das soluções para resolver o problema passaria por disponibilizar no mercado as mais de 700 mil casas que se encontram vazias em Portugal. «Estamos a falar de casas que não são ocupadas por ninguém então por que é não se pode fazer medidas para incentivar o seu uso dessas», pergunta, afirmando que a maior parte desses imóveis é privado e não se encontra localizado apenas em aldeias. «Há também nas grandes cidades. Só em Lisboa há quarenta e tal mil casas vazias, quando os imóveis públicos rondam os 26 mil. Isso é escandaloso quando há tanta a gente a precisar de casa e quando não há medidas para isso, pagam um IMI mais caro, mas nem sempre as câmaras o cobram. É uma medida que não tem sido eficaz. Por isso, é que é necessário avançar com outras soluções e é para isso que se fazem os debates», referindo que vai ser chamada ao Parlamento de forma isolada, assim como o movimento que escreveu a carta aberta que já conta com mais de 1.300 subscritores.
O Governo não pode ser ingénuo
Helena Roseta lembra ainda que em janeiro do ano passado, com o Governo de António Costa, já foram feitas alterações nesta matéria com o Simplex Urbanístico, mas faz uma ressalva: «Só era possível fazer desde que os terrenos fossem públicos e aí a valorização dos terrenos reverteria para os cofres públicos, nesse caso não me choca porque naturalmente quando se constrói está-se a valorizar o terreno, desde que não haja construção desenfreada, agora vai permitir fazer isso com terrenos privados, acho que é muito perigoso. O Governo não pode ser ingénuo», salienta.
E não hesita: «Com esta alteração que já saiu em Diário da República deixamos de ter um sistema de planeamento que cria alguma disciplina. Precisamos de defender o território e a natureza, e isto vai em contraciclo com o que está a acontecer em toda a Europa».
Também Maria do Rosário Partidário, que coordenou a comissão técnica independente para o novo aeroporto e que assinou a carta aberta, diz ao nosso jornal que «o que está em causa é o ordenamento e o equilíbrio do território», referindo que «não podemos andar a construir onde nos apetece, passámos muitos anos a fazer isso – nos anos 60, 70 e até nos anos 80 – e fizemos muito mal. Fizemos um grande esforço para ordenar o território minimamente para agora andarmos a voltar a esses anos».
Já em relação ao pedido que foi feito por alguns autarcas para permitir a construção nesses terrenos, recorda que «também Trump quer comprar a Gronelândia e não é por isso que faz sentido». E defende: «Aparece como se fosse uma solução para resolver o problema da habitação e só vai criar mais problemas».
Mais rentável
Pedro Bingre do Amaral, presidente da Liga para a Proteção da Natureza (LPN), chama a atenção para o facto de um solo que possa ser urbanizado passe a valer muito mais do que um solo que não possa ser. «Imagine um solo que só tenha autorização para ser cultivado em agricultura e floresta vale, por hectare, qualquer coisa na ordem entre os mil e os dez mil euros, mas se for dado como urbanizável está à venda numa imobiliária a 10 milhões de euros», afirma ao Nascer do SOL.
Daí ser uma solução que recebe cartão vermelho por parte do responsável. «Isto não resolve o problema da habitação. E não resolve porquê? Neste momento, há dezenas e dezenas de milhares de hectares de terreno que estão na periferia das cidades que são dados como urbanizáveis, que podem ser loteados e as mais-valias urbanísticas vão para os particulares quando esses solos estão sob especulação. E porquê? Porque a nossa fiscalidade não faz o seu trabalho que é disciplinar esses usos como se faz nos outros países desenvolvidos». «A especulação que está a ser feita nos solos urbanizáveis vai transmitir-se aos novos solos rústicos para serem urbanizáveis. Não vai haver um único proprietário de solo rústico em Portugal que não vá querer urbanizar os seus terrenos, de acordo com este regime, e vai ficar ao livre arbítrio dos autarcas», acrescenta.
Ao nosso jornal, Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero, adianta que, do ponto de vista ambiental, «o que para nós deveria ser prioritário é a ocupação das zonas infraestruturadas quer através da reabilitação de edifícios quer através da demolição e construção de, no caso, edifícios cuja reabilitação ou recuperação seja demasiado dispendiosa de terrenos que estão disponíveis e desocupados e além disto, também, um conjunto de políticas de emergência para que consigamos melhorar estatísticas dramáticas em termos de utilização do edificado em Portugal».
O responsável recorda que Portugal é o primeiro país da OCDE com maior percentagem de edifícios vagos, a contar com segunda habitação e com edifícios devolutos. «Somos o terceiro se não consideramos a segunda habitação», defendendo que a prioridade não deveria ser construir mais, mas resolver a situação de a habitação não estar a ser rentabilizada.
O que está em causa
Outro risco, de acordo com o mesmo, é o facto de as câmaras municipais poderem tomar essas decisões. «Obviamente a subscrição da carta tem muito a ver com o desmistificar de que esta solução resolve os problemas da habitação. Não resolve! É claramente, em nosso entender, um atentado ambiental». E vai mais longe: «Do ponto de vista económico é desastroso porque vai implicar custos maiores em termos de infraestruturação e os custos globais diretos e indiretos é uma solução mais cara. Além disso, é um falhanço total das políticas de ordenamento e de reabilitação de edifícios e de promoção dos centros urbanos porque, para eu estar a fazer isto, é porque, pura e simplesmente, não consegui fazer aquilo que era por demais evidente, que era revitalizar estes centros urbanos».
No final do ano passado, o Governo divulgou a aprovação de um decreto-lei que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), permitindo assim o aumento da oferta de solos destinados à construção de habitação.
E é com a atual crise habitacional que o Governo defende esta alteração. «Pretende-se garantir um regime especial de reclassificação para solo urbano, cuja área maioritária deve obrigatoriamente ser afeta a habitação pública ou a habitação de valor moderado. O conceito de habitação de valor moderado, agora criado, procura abranger o acesso pela classe média, ponderando valores medianos dos mercados local e nacional para assegurar a realização de justiça social», lê-se no comunicado do Conselho de Ministros.
O diploma até foi promulgado pelo Presidente da República, mas Marcelo deixou avisos, alertando para «um entorse significativo» no regime de ordenamento e planeamento do território.
E a oposição – com foco para a esquerda – parece não estar muito a favor desta lei. O Bloco de Esquerda, o PCP, o PAN e o Livre pediram uma apreciação parlamentar da alteração à lei dos solos. Em causa está o novo regime que foi promulgado a 26 de dezembro e que permite construção em solos rústicos.