Urbanismo planeado ou vamos continuar com urbanização avulsa?


Todas estas medidas avulsas vão gerar novas necessidades de acessibilidade e de mobilidade.


No passado dia 30 de dezembro foi publicada a alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial por via do Decreto-Lei n.º 117/2024, após promulgação, ainda que manifestamente preocupada, do Sr. Presidente da República.

As reações foram múltiplas, tendo a Rede Nacional de Estudos de Habitação lançado uma carta aberta de profundo desacordo com o diploma, assinada por cerca de 600 pessoas, e solicitado a sua apreciação pela Assembleia da República.

A alteração não é totalmente nova. Já no anterior governo tinha sido flexibilizada a reclassificação de solos rústicos para urbano, mas apenas aplicável a casos de promoção pública de habitação acessível, em solo contíguo a solo urbano e com algumas exigências de fundamentação.

Os argumentos são diversos a favor e contra da mudança proposta. Elenco aqui apenas os mais frequentes.

Os principais argumentos contra o DL 117/2024: não há escassez de solo urbano; há autarquias com grandes carências de habitação, mas que nada fizeram para obter fundos, em particular no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR); nos casos em que as autarquias se candidataram, há atrasos de execução, por motivos vários, mas não por falta de terrenos.

Quem está a favor concentra os seus argumentos em aspetos de caráter maioritariamente económico, nomeadamente: dentro dos perímetros urbanos o preço do solo está muito inflacionado e é necessário contrariar essa tendência com novas ofertas de solo; as decisões de alterações que venham a introduzir-se são feitas por deliberação das assembleias municipais e dependentes de consulta pública; o promotor deve sustentar os custos de infraestruturação, pelo que o erário público não fica sobrecarregado.

O requisito de consulta pública é interessante desde que os consultados estejam devidamente informados das reais consequências da decisão, para além da simples oferta da habitação. A avaliar pelas práticas nacionais, que são mais de comunicação do que de consulta pública, podemos concluir que este requisito terá muito pouca eficácia.

Como é óbvio, esta nova disposição contraria a orientação da Lei de Bases e enquadra-se melhor numa medida avulsa do que numa política estruturada ou num planeamento coerente, o que promove a dispersão territorial com aumento significativo de custos para o provimento adequado de infraestruturas, em particular para a provisão de serviços e infraestruturas de transportes, desempenho este sempre mais penalizador quanto maior for a dispersão territorial.

Toda a ação urbanística gera e ou altera a mobilidade, e deveria pretender sempre obter melhor acessibilidade, mas é necessário definir e projetar para o futuro políticas coerentes, e consequentes. Estamos de novo perante mais um caso em que não se reflete na qualidade das políticas públicas, e em vez disso disputamos as virtudes e defeitos de medidas avulso, sem reconhecer que é esse mesmo processo de decisão fragmentado e desintegrado que está na raiz dos maus resultados que vamos obtendo ao longo dos anos.

Todas estas medidas avulsas vão gerar novas necessidades de acessibilidade e de mobilidade. Os legisladores são recorrentes em exigir aos promotores a infraestruturação, mas ignorando sempre que a mobilidade e a acessibilidade desses novos locais não se resolvem apenas com construção de estradas.

Então qual a razão porque os promotores não são obrigados a incluir uma identificação das necessidades e impactos de acessibilidade e um projeto de mobilidade sustentável? Os serviços e infraestruturas de transportes aportam valor adicional ao imobiliário. Na falta de outra razão, essa captura de valor seria suficiente para que se entenda que é indispensável termos abordagens integradas.

Este é apenas mais um exemplo de como a ausência de avaliação ex-post das nossas políticas públicas e medidas nos retira a possibilidade de uma melhoria contínua das mesmas.

Professora e investigadora em transportes,

Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georrecursos do Instituto Superior Técnico

Urbanismo planeado ou vamos continuar com urbanização avulsa?


Todas estas medidas avulsas vão gerar novas necessidades de acessibilidade e de mobilidade.


No passado dia 30 de dezembro foi publicada a alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial por via do Decreto-Lei n.º 117/2024, após promulgação, ainda que manifestamente preocupada, do Sr. Presidente da República.

As reações foram múltiplas, tendo a Rede Nacional de Estudos de Habitação lançado uma carta aberta de profundo desacordo com o diploma, assinada por cerca de 600 pessoas, e solicitado a sua apreciação pela Assembleia da República.

A alteração não é totalmente nova. Já no anterior governo tinha sido flexibilizada a reclassificação de solos rústicos para urbano, mas apenas aplicável a casos de promoção pública de habitação acessível, em solo contíguo a solo urbano e com algumas exigências de fundamentação.

Os argumentos são diversos a favor e contra da mudança proposta. Elenco aqui apenas os mais frequentes.

Os principais argumentos contra o DL 117/2024: não há escassez de solo urbano; há autarquias com grandes carências de habitação, mas que nada fizeram para obter fundos, em particular no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR); nos casos em que as autarquias se candidataram, há atrasos de execução, por motivos vários, mas não por falta de terrenos.

Quem está a favor concentra os seus argumentos em aspetos de caráter maioritariamente económico, nomeadamente: dentro dos perímetros urbanos o preço do solo está muito inflacionado e é necessário contrariar essa tendência com novas ofertas de solo; as decisões de alterações que venham a introduzir-se são feitas por deliberação das assembleias municipais e dependentes de consulta pública; o promotor deve sustentar os custos de infraestruturação, pelo que o erário público não fica sobrecarregado.

O requisito de consulta pública é interessante desde que os consultados estejam devidamente informados das reais consequências da decisão, para além da simples oferta da habitação. A avaliar pelas práticas nacionais, que são mais de comunicação do que de consulta pública, podemos concluir que este requisito terá muito pouca eficácia.

Como é óbvio, esta nova disposição contraria a orientação da Lei de Bases e enquadra-se melhor numa medida avulsa do que numa política estruturada ou num planeamento coerente, o que promove a dispersão territorial com aumento significativo de custos para o provimento adequado de infraestruturas, em particular para a provisão de serviços e infraestruturas de transportes, desempenho este sempre mais penalizador quanto maior for a dispersão territorial.

Toda a ação urbanística gera e ou altera a mobilidade, e deveria pretender sempre obter melhor acessibilidade, mas é necessário definir e projetar para o futuro políticas coerentes, e consequentes. Estamos de novo perante mais um caso em que não se reflete na qualidade das políticas públicas, e em vez disso disputamos as virtudes e defeitos de medidas avulso, sem reconhecer que é esse mesmo processo de decisão fragmentado e desintegrado que está na raiz dos maus resultados que vamos obtendo ao longo dos anos.

Todas estas medidas avulsas vão gerar novas necessidades de acessibilidade e de mobilidade. Os legisladores são recorrentes em exigir aos promotores a infraestruturação, mas ignorando sempre que a mobilidade e a acessibilidade desses novos locais não se resolvem apenas com construção de estradas.

Então qual a razão porque os promotores não são obrigados a incluir uma identificação das necessidades e impactos de acessibilidade e um projeto de mobilidade sustentável? Os serviços e infraestruturas de transportes aportam valor adicional ao imobiliário. Na falta de outra razão, essa captura de valor seria suficiente para que se entenda que é indispensável termos abordagens integradas.

Este é apenas mais um exemplo de como a ausência de avaliação ex-post das nossas políticas públicas e medidas nos retira a possibilidade de uma melhoria contínua das mesmas.

Professora e investigadora em transportes,

Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georrecursos do Instituto Superior Técnico