Património
descentralização em curso
Os primeiros nove meses do consulado de Dalila Rodrigues no Ministério da Cultura ficaram marcados por reformas, exonerações e conflitos. A ministra assumiu desde o início uma postura ‘musculada’, sem temer a confrontação com alguns intervenientes do setor. Tratou-se de ‘arrumar a casa’ ou – como lhe chamou Daniel Oliveira, no Expresso – de um «ajuste de contas» visando figuras conotadas com o PS?
As mudanças começaram pelo Património Cultural, I.P., uma instituição criada em 2023 pelo Governo de António Costa. João Carlos Santos, o arquiteto que assinou o projeto do Museu do Tesouro Real e do remate do Palácio da Ajuda, foi substituído na presidência por João Soalheiro, licenciado em Teologia, que tinha já experiência como diretor regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo e subdiretor-geral do Património Cultural. O novo presidente viu-se envolto em polémica no início de julho de 2024, quando vários trabalhadores da instituição o acusaram de autoritarismo e até de «bullying inaceitável», como noticiou o Público.
Já para liderar a Museus e Monumentos de Portugal, que tutela 38 museus, monumentos e palácios, Dalila Rodrigues nomeou Alexandre Nobre Pais, historiador de arte doutorado em Artes Decorativas e distinguido como museólogo do ano pela Associação Portuguesa de Museologia (APOM) em 2020, que ocupava desde 2021 o cargo de diretor do Museu do Azulejo.
Justificando as mudanças, a ministra considerou «desastrosa» a reforma promovida pelo anterior Governo, que em teoria concederia «maior autonomia funcional» às instituições, mas na prática criou «serviços centrais pesados, mimetizando a antiga DGPC».
A tónica é posta agora na autonomia e na delegação de competências e responsabilidades.
Nessa mesma linha de descentralização, Dalila Rodrigues anunciou a constituição de Unidades Patrimoniais Territoriais – localizadas em São Martinho de Tibães (Braga), Santa Clara-a-Velha (Coimbra), Unidade Arqueológica do Freixo (Porto), São João de Tarouca (Viseu), São Bento de Cástris (Évora), Ruínas Romanas de Milreu (Faro), Miranda do Douro (Bragança) e Marvão (Portalegre). Numa política de proximidade, têm como missão vigiar, salvaguardar, proteger e recuperar o património local. «Há situações muito críticas na área da preservação do património cultural, estruturas fortificadas em iminência de derrocada», revelou a ministra no Parlamento.
Dotadas de equipas multidisciplinares e com orçamentos anuais até dois milhões de euros, está previsto estas unidades começarem a operar em 2025.
Museu de arte antiga
novo diretor procura-se
Outra baixa causada pela nova ministra foi a direção do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). Ao defender «autonomia para todos os museus, monumentos e palácios, sem distinções entre si», a Museus e Monumentos de Portugal determinou a ‘despromoção’ do museu das Janelas Verdes – algo a que a historiadora Raquel Henriques da Silva descreveu, no Público, como «nivelar por baixo a desconexa manta de retalhos dos museus».
A perda do estatuto de ‘primeiro museu’ – uma espécie de ‘primeiro entre iguais’, que conferia ao diretor uma remuneração acima das dos demais diretores de museus e previa a existência da figura do subdiretor – levou Joaquim Caetano a acusar a ministra de «insensibilidade política» e a anunciar o seu regresso a lugar de conservador de pintura. Estava previsto o concurso internacional realizar-se entretanto e a nova direção tomar posse já a 15 de janeiro, mas não são ainda conhecidos quaisquer nomes. Em discordância com todo o processo, Simonetta Luz Afonso, que iria presidir ao júri do concurso, decidiu afastar-se.
As controvérsias no Museu de Arte Antiga não são uma novidade para Dalila Rodrigues. Ela própria, quando era diretora do MNAA, entrou em rota de colisão com o diretor do Instituto dos Museus e Conservação. Sobre os museus dizia então:«São espaços sovietizados, há uma energia vital que o IPM retira aos museus». Saiu sem surpresa em 2007, em conflito com a tutela.
CCB
Ordem na casa
É de longe o caso que mais tinta fez correr em 2024 no setor da Cultura e, como num terramoto de alguma intensidade, as réplicas continuam a fazer-se sentir. A exoneração da presidente da Fundação CCB, Francisca Carneiro Fernandes, na véspera de completar um ano no cargo, transformou-se quase numa novela que obrigou a ministra a ir ao Parlamento justificar a decisão. «Acabaram-se os compadrios, os lobbies, as cunhas», prometeu a ministra, que considerou «inadmissível» aquilo que classificou como um «assalto ao poder, assalto ao CCB, que é absolutamente inadmissível nos termos em que foi realizado pelo ex-ministro da Cultura, doutor Pedro Adão e Silva».
Estavam implícitas nas palavras da ministra as notícias que davam conta de que Adão e Silva sugerira a Elísio Summavielle, então presidente do CCB, o nome de Aida Tavares, programadora cultural e figura próxima de António Costa, para a direção artística da instituição. Summavielle recusou. Mas a sua sucessora, Francisca Carneiro Fernandes, contratou mesmo Aida Tavares.
A história não ficou por aqui. Uma das primeiras ações de Tavares como diretora artística do CCB foi o festival FeLiCidade. Sucede que o protocolo que dotou o festival de um orçamento de 450 mil euros (para dois dias) foi assinado in extremis, na véspera de o Governo de Montenegro tomar posse. «Impressiona, não impressiona?», questionava João Pedro George num artigo de opinião publicado no Nascer do SOL. «Afinal, com que frequência um concurso ou um festival são dotados com quase meio milhão de euros para apenas dois dias de actividades?». George denunciava ainda a rede de amizades que unia vários dos intervenientes do festival.
«Aida Tavares arregimentou amigos de longa data para o festival», escreveu por sua vez a Sábado. «E a sua entrada provocou alterações internas que levaram duas diretoras artísticas a ficarem sem funções durante meses e sido forçadas a sair».
Pedro Adão e Silva reagiu acusando a ministra de ter «como formas de afirmação exonerar dirigentes, desmantelar trabalho e lançar injúrias».
Também Francisca Carneiro Fernandes – que esteve ainda debaixo de fogo por ter feito sete ajustes diretos ao marido, o encenador Nuno Cardoso, quando ela presidia ao Teatro São João, no Porto – contra-atacou, visando não a ministra, mas o seu antecessor, Elísio Summavielle. Carneiro Fernandes disse ter encontrado no CCB práticas «muito erradas e preocupantes». «Outra área com grandes irregularidades», denunciou, «é a da gestão dos edifícios — aqui, o CCB está num estado calamitoso. Os elevadores, por exemplo, estão a parar, sendo que os fornecedores têm ligações claras às pessoas que os escolheram mediante ajustes diretos de centenas de milhares de euros. E a situação da área financeira também é grave». O novo presidente da instituição, Nuno Vassallo e Silva, que toma posse em janeiro, tem-se mantido à margem das polémicas.
Bibliotecas
Na cauda da literacia
O primeiro ponto do Programa do Governo para a Cultura diz respeito às bibliotecas e, por coincidência, a nomeação do historiador Diogo Ramada Curto como diretor da Biblioteca Nacional de Portugal, após a aposentação de Maria Inês Cordeiro, foi uma das primeiras indicadas por Dalila Rodrigues.
O Programa refere as 303 bibliotecas municipais como ‘Unidades Culturais de Território’ e o Governo prometeu reforçar o acervo das bibliotecas e dinamizar estes equipamentos com diversas iniciativas.
Segundo um inquérito promovido pela OCDE em 2023, os adultos portugueses são dos que têm menos competências em termos de literacia e números, ocupando os últimos lugares entre 38 países, apenas à frente do Chile e da Turquia.
Em 2024 arrancou o programa cheque-livro – uma criação de Pedro Adão e Silva –, que oferece 20 euros aos jovens de 18 anos para adquirirem um livro.
De facto, a literacia é talvez o mais premente desafio que o setor da Cultura enfrenta. Mas esse é um desafio para a próxima década, não se resolve num ano ou dois.