Gouveia e Melo volta a ser militar caso seja eleito Presidente da República

Gouveia e Melo volta a ser militar caso seja eleito Presidente da República


É uma norma que consta no estatuto dos militares. O artigo 152 determina que um militar eleito Presidente, volta ao ativo, mesmo que esteja reformado. Se chegar a Belém, Gouveia e Melo volta a ser almirante.


Num discurso emotivo, na passada sexta-feira, o almirante Henrique Gouveia e Melo disse o adeus oficial à Marinha, para passar diretamente à reserva e entrar numa «nova fase». «É altura de fechar um capítulo da minha vida e começar outro. Eu há 45 anos que sou militar», afirmou o chefe militar da Marinha numa cerimónia nas instalações centrais do ramo, em Lisboa. Mas este ‘adeus’ poderá ser, afinal, apenas um ‘até já’, caso Gouveia e Melo – agora livre para se candidatar às eleições presidenciais em 2026 – seja eleito.


De acordo com o artigo 152.º, nº1 do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), aprovado pelo DL 90/2015, de 29 de maio, «regressa ao ativo o militar nas situações de reserva ou de reforma que desempenhe o cargo de Presidente da República, voltando à situação anterior logo que cesse o seu mandato».


A passagem antecipada à reserva tem sido interpretada como um sinal de que Gouveia e Melo pode mesmo estar a preparar terreno para o anúncio da candidatura no início do próximo ano. Aos que argumentam que no século XXI não faz sentido voltar a ter um militar na chefia do estado, Gouveia e Melo tem respondido que no regresso à sua vida civil não pode ter os seus direitos cívicos (iguais aos de qualquer cidadão) coartados pelo facto de ter sido militar. Só que, à luz deste artigo em vigor na lei do estatuto dos militares das forças armadas, afinal, se for eleito Presidente da República, Gouveia e Melo volta a ser almirante no ativo, só deixando de o ser quando cessar funções.


Questionado pelo Nascer do SOL sobre a existência deste artigo, o ainda Chefe do Estado-Maior da Armada recusou fazer comentários.

Dúvidas de constitucionalidade
Caso avance, Gouveia e Melo é um dos favoritos a vencer as eleições. A norma contida no estatuto dos militares, volta a levantar dúvidas sobre a hipótese de voltar a haver um militar em Belém.
Para o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia «além de a norma ser inconstitucional, não tem qualquer sentido útil».


«O ato eleitoral não valida o regresso a funções militares. Essa norma viola o principio democrático, o princípio de imparcialidade e independência e também o caráter apartidário e de neutralidade política das Forças Armadas», defende.


Recorde-se que, nos termos da Constituição, além de «representar a República Portuguesa», o Presidente exerce ainda as funções de Comandante Supremo das Forças Armadas.


«O chefe de Estado é o Comandante Supremo das Forças Armadas mesmo que não fosse militar, por isso, ou esta norma não significa nada ou significa que vai ter novas funções que não tinha antes. E o chefe de Estado não pode assumir funções militares normais ordinárias», critica Bacelar Gouveia.
«Além disso, esta norma dá uma vantagem aos militares em relação a todos os outros cidadãos, desde logo os polícias, que também têm um período de reserva», acrescenta.


Já o constitucionalista Paulo Otero, apesar de não concordar que a norma seja inconstitucional, confirma que «o artigo não tem grandes implicações práticas».


«Não há qualquer inconstitucionalidade. Inconstitucionalidade haveria se negassem aos militares a possibilidade de se candidatarem à Presidência da República», argumenta.


«Esta norma parece-me algo mais simbólico. Eventualmente, significará que, em termos protocolares, [Gouveia e Melo] deverá ser designado como Sr. almirante Presidente da República», afirma.


O também professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa recusa a ideia de que um militar no poder traga benefícios ou um maior envolvimento das Forças Armadas na política e recorda aquela que é uma «tradição da nossa República».


«Entre 1926 e 1986 todos os Presidentes da República foram militares. Nos 114 anos da República Portuguesa, pelo menos 60 anos foram ocupados por um militar na presidência».


E sublinha: «Nenhum deles tinha funções adicionais ou vantagens em relação a outros Presidentes que não foram militares».

Fantasmas do passado
Simbólico ou não, a verdade é que a ser aplicada esta norma, em vigor desde 1999, se assumir uma candidatura a Belém, Gouveia e Melo vai ser confrontado com a ideia do retrocesso na democracia que significa voltar a ter um militar na Presidência da República.


É de esperar que os adversários e críticos do almirante intensifiquem as críticas e recordem os tempos de má memória em que os militares ocupavam o lugar da chefia do Estado. Não é certo o efeito que a alusão a um tempo em que os militares dominavam a vida política terá junto do eleitorado, e há até quem defenda que esse é um trunfo a favor do almirante. Mas a norma de que aqui damos conta gera incómodo até junto dos que defendem uma candidatura presidencial de Gouveia e Melo. O facto é que a aposta tem sido na afirmação dos direitos cívicos do candidato, a partir do momento em que abandona a vida militar. O próprio, tem feito questão de sublinhar que não pode coartar os seus direitos quando regressar à vida civil. A verdade é que, de acordo com o estabelecido no estatuto dos militares, o regresso à vida civil do almirante, será apenas um curto interregno para uma candidatura presidencial, que, caso seja vencedora, obriga Gouveia e Melo a regressar ao estatuto militar.


Nas últimas horas, Henrique Gouveia e Melo cumpriu as derradeiras formalidades como Chefe do Estado-Maior da Armada e arrumou os documentos e objetos que encheram uma carreira de mais de 40 anos ao serviço da marinha portuguesa.


Esta sexta-feira, um dia depois de ter terminado funções, o ‘ex’ almirante ruma ao Palácio de Belém, onde vai ser condecorado pelo Presidente da República como reconhecimento dos serviços prestados ao país ao longo da sua carreira militar. Quando amanhã abandonar Belém, a grande questão é se ali vai regressar como Presidente eleito em 2026.