Para a PIDE e a Legião Portuguesa, tratava-se de uma ‘agente de Moscovo’ – e é o mais provável. Também a CIA a seguiu e a tentou desmascarar. Acreditavam que pertencera à Rote Kapelle, ou Orquestra Vermelha, uma rede soviética a operar na Europa ocidental ocupada pela Alemanha, que entretanto fora ressuscitada. E houve mesmo quem achasse, como costuma acontecer nestas maquinações, que durante a II Guerra Mundial tivesse sido uma agente dupla ao serviço do fascismo.
Carolina Loff Fonseca, que nos anos trinta e com apenas 27 anos foi a primeira mulher a integrar o Secretariado do Comité Central do PCP, usou vários pseudónimos: em Portugal foi Maria Luísa; em Moscovo, onde recebeu a sua primeira missão, Marta da Costa; e na Espanha republicana, onde por pouco não foi fuzilada, Berthe Mouchet.
A vida de uma pessoa não pode resumir-se ao seu aspeto, e ela foi uma mulher discreta em todas as coisas – menos na beleza. Isso não podia controlar. O cabelo curto, de um negro vibrante, destacava os enormes olhos verdes que se movimentavam como felinos. Muito alta, corpo bem moldado, resplandecia. Os homens caíam a seus pés. Apesar da dura disciplina de revolucionária, não virou costas aos amores. Com apenas 21 anos, ficou grávida de um dirigente comunista português. Pela filha, vacilaria entre os caminhos do heroísmo e os abismos da traição. Mas nunca se colocou no papel de vítima. Na Espanha republicana, tomou-se de amores por Modesto, o famoso general popular que deu água pela barba ao ‘generalíssimo’ Franco na batalha do Ebro.
A Álvaro Cunhal, que quando a conheceu era ainda uma estrela em ascensão, a sua beleza também não foi estranha. Mas, contra todas as probabilidades, por quem acabou por se apaixonar foi pelo pide que a torturou, desviando-se completamente da sua rota.
Carolina pertencia a um grupo de pessoas moldadas naquela massa de que são feitos os mártires. Do género de quem morre de coração alegre pela causa. E já tinha provas dadas. Mas, naquela época, ser preso constituía a catástrofe suprema. Perante a tortura e a morte, não há um comportamento único. É o homem que está em causa, a sua força ou as suas fragilidades mais íntimas. Por qual delas seria levada? É difícil reconstituir a sua personalidade, a sua história, as suas forças e as suas fraquezas. Até porque, desse período, como seria de prever, pouco contou. Só através de um grande equilíbrio entre o que ela disse das duas vezes em que foi interrogada pela ‘secreta’ lusa e o que contaram aqueles, já poucos, que com ela se cruzaram, é possível entrever os seus reflexos no grande lago da história internacional da época.
UM AMBIENTE DE CONSPIRAÇÃO EM CASA
A PVDE, Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, antecessora da PIDE, há uma década que a trazia debaixo de olho. Apesar de Carolina já ter passado pelos seus calabouços em circunstâncias de grande vulnerabilidade, não cedera. Entre uma prisão e outra, havia uma circunstância em comum. Da primeira vez, estava grávida de um dirigente do partido, mas era senhora do seu destino; agora, em maio de 1940, desconhecia por completo o paradeiro da filha que entretanto nascera.
E a culpa era sua. Nos autos de interrogatório da PVDE, fica claro que tem em mãos uma missão pessoal: «Continuo sem notícias da minha filha, o que muito me pesa, embora me reconheça a culpada por uma situação que desejo, custe o que custar, liquidar».
Há um mês que a punham à prova. Empregavam todos os meios para obter uma confissão. Num intervalo das suas idas da cela para a sala de interrogatório, na rua António Maria Cardoso, passou com certeza a sua vida em revista.
De famílias abastadas cabo-verdianas, Carolina nascera a 12 de novembro de 1911 e chegara com a mãe a Lisboa em 1926. O país era então um caldeirão político. A rapariga está com 15 anos e é uma estampa. Impressionava. Os olhos verdes, belíssimos, tinha-os herdado da bisavó, uma belga que assentara na ilha com o marido no século XIX e trabalhara bem os lucros acumulados na compra e venda de escravos.
Aos golpes e sublevações da República, o país enrodilhara-se numa imensa crise. O desemprego disparara. Operários e camponeses vivem períodos de recorrente carestia e os ricos, sempre os mesmos, enriquecem a bem ou a mal. Na capital, a adolescente segue os estudos no liceu Maria Amália, onde a educação das meninas de classe média-alta, que acreditavam mesmo na história de classes, não passa de um protocolo para um itinerário brilhante: a educação dar-lhes-ia uma base intelectual e um savoir faire de vida mundana que se tornaria um apoio importante na carreira dos maridos.
INSCRIÇÃO NAS JUVENTUDES COMUNISTAS
Mas para Carolina o mundo era muito maior do que isso. O espírito revolucionário é uma herança genética. Vinha de uma família com intervenção nos assuntos nacionais. Republicanos e maçons compunham a sua genealogia. O ambiente em casa é de conspiração e os seus interesses ficam, desde muito cedo, fora dos muros do liceu.
Na altura, o Partido Comunista Português reduzia-se a umas parcas centenas de militantes. Em 1929, Bento Gonçalves, operário do Arsenal e sindicalista, recém-chegado da pátria do socialismo, onde fora assistir ao 10.º aniversário da revolução russa, traz novo fôlego ao partido, que fora ilegalizado. Em conformidade com as posições da Internacional Comunista, passa a organizá-lo de acordo com os princípios marxistas-leninistas e estreita os laços com a classe operária – que, com a repressão da ditadura militar, sofre um duro revés.
Carolina segue as pisadas familiares. Com o primo Álvaro Duque da Fonseca, dois anos mais velho do que ela, filho de um ex-combatente republicano, adere sem reservas à Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas (FJCP).
Para esta geração, não lutar é um destino pior do que a tortura ou a morte. A jovem interessa-se por milhares de coisas, mas dá prioridade à formação teórica. Do primo, recebe, sem saber que o marxismo castrava e o leninismo não era sinónimo de liberdade, as primeiras lições para aprofundar a sua consciência revolucionária.
Os dois são inseparáveis. Magda Fonseca, filha de Álvaro e hoje o único repositório da crónica familiar desses tempos, traça-lhe o perfil: «Faziam uma dupla imparável. Eram ambos muito jovens (ele tinha 18 e ela 16 anos) e já estavam envolvidos em todas as confusões políticas. A Carolina fez parte da primeira célula feminina comunista organizada pela Wilma Freund, com quem fez a sua educação política. Era muito enérgica, sendo ela quem escrevia grande parte dos artigos de imprensa juvenil da FJCP, da qual foi dirigente, tal como o meu pai».
‘É PERIGOSÍSSIMA’, REGISTA A PIDE
Com a polícia sempre à coca, a rapariga vive constantemente sob pressão. Não falha uma reunião dos organismos a que pertence, tem topete e, debaixo de fortes cargas policiais, participa nos célebres comícios-relâmpago. É do género de mulher que leva até ao fim tudo o que empreende – e rapidamente ganha a confiança do partido e chega ao secretariado da FJCP.
Com o primo no bureau militar, e Francisco da Paula Oliveira (o famoso Pavel, que tem o controlo da Comissão de Imprensa), compõem um trio imbatível. Após uma curta prisão deste último, a jovem assume o seu lugar, ficando com as duas publicações juvenis da FJCP a seu cargo: O Jovem, órgão central da Federação das Juventudes Comunistas, e o Órgão Teórico. É na sede, camuflada na serra de Monsanto, que passa a maior parte do tempo. O seu principal trabalho é dirigir, escrever e imprimir manifestos para as operárias da cintura industrial de Lisboa e Alentejo, e circulares para as bases. Ainda distribui e vende a imprensa clandestina.
Carolina tem quatro qualidades raras – inteligência, fé, coragem e beleza -, e os seus inimigos temem o efeito desta combinação. A polícia do Estado, infiltrada no partido, tem-na debaixo de olho. No seu cadastro, registam: «É perigosíssima, quer no campo da propaganda, quer no da ação, desenvolvendo uma extraordinária atividade, não só nos cargos que ocupava nas Juventudes Comunistas, como ainda no aliciamento de homens e mulheres para a organização!».
Para se perceber melhor o fenómeno, o relator, letrado, recorre à introspeção: «A sua presença nas conferências regionais da Costa da Caparica e da Amadora, trajando maillot, tinha uma influência enorme para a captação de vontades, teoria aliás já bastante conhecida pela psicanálise de Freud».
1931 foi um ano terrivelmente agitado. Em Espanha, os republicanos socialistas, com o apoio dos sindicalistas, ganham as eleições municipais, provocando a queda da monarquia. O destino do sonho republicano ainda não era conhecido, mas, por todo o mundo, nas várias famílias da esquerda, a vitória era um acontecimento transcendente. Em Portugal, no mesmo ano, a revolta da Madeira parecia gerar um encadeamento premonitório e servia de faísca ao recrudescimento da agitação popular e estudantil. As greves rebentam no meio académico.
GRÁVIDA DE UM ESTUDANTE COMUNISTA
Carolina é uma agitadora nata e marca presença em acontecimentos na Faculdade de Medicina onde estudantes são gravemente feridos. Um acabará por morrer, escalando a revolta até ao Porto. A espionagem move-se sem travão na massa comunista. Continuam a seguir a atividade da rapariga e registam: «Aquando do movimento revolucionário da Madeira, eclodiu uma greve académica, tendo o comité de que ela faz parte convertido algumas manifestações políticas em comunistas, como se verificou por exemplo na Faculdade de Medicina, onde chegaram a hastear a bandeira vermelha. A missão daquele comité era provocar a agitação entre os estudantes e conquistá-los para a organização comunista Socorro Vermelho Internacional».
A resposta à repressão é dada nas ruas. Mantêm-se os métodos anarquistas e dos republicanos radicais: armas à cinta, petardos camuflados. A polícia do Estado esforça-se por ganhar velocidade e chegar cada vez mais depressa ao lugar para apanhar a presa.
Era um tempo de grandes paixões, intelectuais e físicas. Ela era linda por natureza e não precisava de fazer qualquer esforço para encantar os homens. À beleza acrescentava a alegria e sensualidade, o que contrastava com a sua dura disciplina.
Em 1932, os enjoos matinais trazem a notícia: está grávida de Carlos Matoso, um estudante de Agronomia, quadro como ela da FJCP e que trabalha diretamente com Bento Gonçalves. Magda Fonseca, sem pedir licença, entra pela geografia sentimental da prima desses tempos: «Ela sempre foi uma mulher de paixões. Estava tremendamente apaixonada pelo Carlos, com quem nunca viveu porque acabaram por ser presos. Ele andou fugido uns tempos, foi julgado à revelia e acabou por ser deportado. Mais tarde suicidou-se e nunca chegou a conhecer a filha».
A PRIMEIRA PRISÃO E UM PARTO
O casal fazia parte de um conjunto maior: o partido, que tinha um domínio total sobre as suas vidas. Não havia tempo para se dedicarem a assuntos privados. Os públicos devoravam-nos. Vivem tudo com grande intensidade. Fazem parte do grupo que prepara as ações para o 1.º de Maio, com recurso a petardos; mas, um mês antes do Dia do Trabalhador, Matoso é preso enquanto experimenta explosivos na Serra de Monsanto.
Carolina reagia bem a situações difíceis. Está preparada para resistir a qualquer revés, e a detenção do namorado não a quebra. As palavras de ordem do partido são acolhidas como mensagens de profetas. Pela frente tem também a preparação da manifestação marcada para celebrar o dia das Juventudes Comunistas, no Largo de Alcântara, um bairro operário fortemente politizado.
A 4 de setembro de 1931, de madrugada, os comunistas dirigem-se para Alcântara, preparados para a resposta policial que é certa. Espera-os uma multidão. Pavel é o orador principal. Os confrontos são inevitáveis e resultam na morte de um guarda e de um dos manifestantes.
Carolina, até aí habituada a escapar com extrema facilidade por entre os dedos das autoridades, acaba por ser presa em flagrante. A regra do silêncio na prisão ainda está longe dos princípios rígidos que Álvaro Cunhal imporá nos anos 50 com o manual Se Fores Preso Camarada. E, para a jovem, assumir a militância é uma medalha. Ouvida dois dias depois pela PVDE, admite: «Tencionava pintar nos escudos que circundam a base do Monumento aos Mortos da Grande Guerra, a Foice e o Martelo, e a inscrição ‘Abaixo a Guerra Imperialista’».
Magda Fonseca recorda: «Esteve presa um ano na cadeia das Mónicas, mas a mãe moveu influências, alugou um quarto na maternidade Bensaúde e, quando chegou a altura de ela ter a filha, a PIDE não teve outro remédio senão enviar dois guardas para a vigiar».
CONVITE PARA A URSS
Um ano depois de ter sido presa, sai em liberdade, com a filha recém-nascida. Desconhece o paradeiro do pai da pequena Helena, que está na clandestinidade. Mas no processo sobre-humano da revolução não se perdia tempo a pensar nas tragédias pessoais – e regressa à atividade partidária.
Ganhara a confiança total do Comité Central. Mais do que o conhecimento real dos princípios comunistas, foi a sua capacidade de entrega e de obediência que lhe permitiu atingir proeminência dentro do partido. Tornara-se um caso singular. Uns meses depois, Pavel, com quem tecera cumplicidades nas Juventudes Comunistas – que se manterão, mesmo depois de ele cair em desgraça -, estava em Moscovo. Era delegado do PCP junto da Internacional Comunista, fazia parte do círculo interior do Comintern, e desafia-a a juntar-se a ele.
Nesta altura, os partidos comunistas lutavam pelos seus objetivos dentro do quadro nacional. No plano internacional, existia o Comintern, ou Internacional Comunista (IC), uma espécie de estado-maior da revolução mundial, que selecionava os seus membros entre os melhores elementos dos partidos.
Foi como se a vida de Carolina, as suas particularidades de mulher e a História tivessem estado a espreitar-se, cada uma preparando os seus argumentos para a colocar numa grande encruzilhada. Passaria a receber ordens diretamente do Kremlin. Será esse, pelo menos, o entendimento da CIA e da Legião Portuguesa (esta última fortemente infiltrada no PCP). Na ficha da dirigente comunista, deixaria a sua conclusão: «Sabe-se haver sido, em data anterior à 2.ª Guerra Mundial, agente de Moscovo, para o que recebeu a devida preparação na URSS».
Perante o convite, Carolina não pensa duas vezes. Recebia a convocação como uma eleita da providência marxista. Carlos Brito, que só se cruzaria com ela décadas depois, quando já o partido a tentava liquidar da sua história, coloca-a no seu contexto: «Com a menina daquela idade, ela só pode ter partido perante uma ordem muito poderosa. Era linda, voluntariosa, características que agradavam muito aos serviços secretos. Aliás, as declarações que me mostrou da Carolina na PVDE deixam a ideia de que, desde que se encontrou com Pavel, em Moscovo, a sua atividade passou a ser dirigida e controlada pelo aparelho da Internacional Comunista e não pelo PCP».
NA ‘PÁTRIA DO SOCIALISMO’
Em março de 1935, com 24 anos e a filha de colo, a jovem dirigente comunista inicia a sua digressão internacional. Bento Gonçalves fizera-lhe as pontes: um contacto com um elemento do PCP a residir em Paris promover-lhe-ia o encontro com o agente de ligação ao aparelho da URSS.
Carolina apanha o comboio para França, onde os intelectuais se dividiam: uns a favor, outros contra a pátria do socialismo. Um mês depois, numa carruagem de primeira classe e com visto soviético no passaporte, parte para Moscovo – que, em abril, engalana para a grande festa do Dia dos Trabalhadores, com cartazes escarlates por todo o lado, ostentando o rosto de Estaline e a foice e o martelo.
Pavel espera-a nas Edições Operárias Estrangeiras, na rua Nikolscaya, número 7, onde, com um salário de 300 rublos, fica com a tarefa de traduzir do francês e do espanhol obras de clássicos do marxismo, que têm como principal mercado o Brasil, à época uma democracia.
Com uma autorização de residência e o pseudónimo de Marta Costa, trabalha seis horas por dia e descansa cinco dias por mês. Para a filha, existiam outros planos. A maternidade era um sentimento desnecessário para um revolucionário. A pequena Helena fica, como todos os filhos dos cominternianos, na Escola de Ivanovo – sem que Carolina pudesse imaginar o preço que teria de pagar por esta decisão. Visita-a apenas uma vez por mês.
Pavel é o seu cicerone, e através dele estabelece contactos com homens providenciais que se vangloriam de querer mudar o mundo. Estreita relações com importantes internacionalistas e comunistas dos quatro cantos do planeta, sobretudo com espanhóis, como a lendária dirigente do PCE Dolores Ibárruri, que ficará conhecida como La Pasionaria.
Mas o trabalho nas Edições não passa de um curto compasso de espera para algo maior. Oito meses depois, inicia a verdadeira aprendizagem para o seu fortalecimento ideológico. Segue para a Escola Internacional Lenine, o internato da Internacional Comunista, onde terá aulas teóricas que lhe enchem o cérebro de argumentos filosóficos, históricos e políticos, que robustecem a sua fé na luta do proletariado e na missão central da URSS para dirigir essa grande contenda.
‘CORTO-TE A CABEÇA’, SE REVELARES A MISSÃO
Nas raízes de cada uma destas ideias espreitavam as indiscutíveis teorias estalinistas. Ali, ninguém se interrogava se era justo instaurar o socialismo contra ou à margem da vontade da maioria. As suas memórias ficariam nos registos da PVDE: «Nos primeiros tempos comecei a frequentar um curso leninista que constava, no primeiro ano, de economia política, outro de economia soviética e outro de história do partido Bolchevique». E mais uma vez, Carolina destacava-se: «Terminada a frequência, nesse ano, fui passar um mês de férias para o Cáucaso como prémio do meu aproveitamento no curso».
Em Espanha, num ambiente enlouquecido onde ninguém parecia ter a verdadeira noção da tragédia que os espreitava, chega a decisão soviética de prestar ajuda militar à República. No final do ano, chegam a Barcelona os primeiros assessores de espionagem e os enviados do Comintern. O projeto de uma ampla frente antifascista vai desfazer-se. Os comunistas tinham de garantir sozinhos o controlo de uma retaguarda limpa de trotskistas e anarquistas.
Mais do que uma espectadora dos acontecimentos, Carolina era a protagonista do seu futuro – e oferece-se a ir para Madrid contribuir para a causa republicana. O seu voluntarismo é aproveitado. Em novembro de 1936, é chamada à Comissão de Quadros do Comintern, cuja chefe lhe pergunta se está disposta a ir para Espanha como tradutora da embaixada soviética. Ela, claro, aceita.
Mas, dois meses depois, os planos mudam. É de novo chamada – e, desta vez, é o próprio Dimitriy Manuilski, o representante do partido bolchevique na IC, quem a coloca a par da missão que lhe está destinada: «Ir para Espanha fundar uma emissora clandestina que atuasse como se estivesse instalada em Lisboa. Explicou-me que devia denunciar a intervenção de Portugal na guerra espanhola, desmentir a propaganda das emissoras portuguesas contra os governamentais, mas sem nunca entrar em polémica: dar notícias antifascistas, explicar a situação da Espanha republicana e procurar notícias sobre Portugal acerca de qualquer movimento da opinião antifascista».
À despedida, Manuilski, com um sorriso pendurado nos lábios, avisa-a: «Acrescentou que me cortava a cabeça se revelasse a alguém a missão de que estava investida».
ADEUS A MOSCOVO, SEM SE DESPEDIR DA FILHA
Como se tivesse vivido sempre na expectativa de que isto lhe viesse a acontecer, nesse mesmo dia 3 de dezembro de 1936 Carolina sai de Moscovo sem mesmo se despedir da filha – que, nas reviravoltas que a vida haverá de dar, só voltará a ver mais de uma década depois.
Para os serviços secretos de vários países, é neste momento que a jovem dirigente comunista ganha outra dimensão. Numa ação conjunta entre a CIA e a PVDE, na década de 50, um espião americano registaria a informação que o diretor da secreta portuguesa lhe transmitira: «Carolina Loff da Fonseca, membro do PCP, que era em 1935 correspondente da Rádio Moscovo, segundo o diretor da PIDE, executou missões para o RIS (Serviços de Contraespionagem) em Espanha durante a Guerra Civil».
Depois de uma longa viagem com várias escalas pela Polónia, Checoslováquia, Áustria, Suíça e França, Carolina chega a Madrid com salvos-condutos capazes de abrir todos os controlos militares republicanos: um assinado por Jacques Duclos – um dos mais importantes dirigentes comunistas franceses, com quem acabara de estar na curta paragem de oito dias em Paris -, que a identifica como membro do partido gaulês, e outro de José Diaz, secretário-geral do PCE, que pede facilidades para a sua entrada em Espanha, onde vai em missão de auxílio ao povo espanhol.
E assim, dias depois, Carolina entra em Madrid com um passaporte devidamente disfarçado, em nome de Berthe Mouchet, empregada de comércio e divorciada. De imediato, segue para Valência, para onde o Governo, com o conflito mesmo às portas da capital, se transferira.
A VOZ DA RÁDIO DO PCP
Estivera quase dois anos na União Soviética e ali conhecera muita gente. Dento do PCE, tem as portas abertas para os mais destacados dirigentes – e apresenta-se no gabinete de Jesus Hernández, à época ministro da Educação e Saúde, que conhecera na URSS, e a Diaz, a quem dá conta da missão de que está incumbida. O encontro é descrito pela própria: «Diaz, apesar da clandestinidade da missão, pediu autorização a Alvarez del Vayo (ministro de Estado) para o funcionamento da emissora. E, passados poucos dias, num estúdio arranjado no próprio edifício do Comité Central do PCE, comecei com as emissões. O aparelho, que era de uma companhia norte-americana, estava instalado numa aldeia dos arredores de Madrid e ligado através da Telefónica. Nas instalações do aparelho, estava um técnico espanhol que não era membro do partido. Era o Governo de Madrid que pagava todas as despesas da emissora. Todos os dias, das 21h às 22h, eu falava pela rádio em português. Em primeiro lugar, dava o comunicado de guerra e depois várias notícias sobre a solidariedade de vários países à Espanha governamental, e fazia a leitura de um artigo sobre a vida em Espanha. Em geral, lia também artigos da imprensa governamental sobre a vida na Espanha de Franco, dava o noticiário internacional, falando sempre como se estivesse em Lisboa».
Torna-se na voz da rádio do PCP, como era conhecida a estação clandestina do Comintern, é chefe de redação, jornalista e locutora, mantém-se num frenesim. Após oito meses de sublevação franquista, em junho de 1937, a ampla frente antifascista desmorona-se. Os antigos companheiros do PCE, anarquistas e sindicalistas, são descartados. Os trotskistas, esses, são inimigos a abater.
Carolina estava entre a nova vaga. Tudo o que viria a seguir seria violência fratricida a omitir: «Ainda em Valência, assisti aos Plenos de Março e Julho de 1937 do PCE, onde encontrei a ‘Pasionaria’, que já conhecia da Rússia. Nesses plenos, apenas foram tratados assuntos da política espanhola acerca da guerra. Como os bombardeamentos interromperam as emissões, fui para Madrid em fins de agosto de 1937, onde fiquei no estúdio da extinta Rádio Madrid, instalado no edifício do Mundo Obrero, que foi ligado à emissora através da Telefónica».
UM CASO COM O GENERAL MODESTO
À distância, os canhões troavam e os motores dos aviões de combate marcavam o quotidiano. Tudo se vivia com grande intensidade. Carolina está de novo apaixonada. Não sendo de uma beleza clássica, havia algo de muito provocante nela: muito alta, dava a impressão de que o seu corpo estava para além do seu controlo. Continua a exercer um imenso fascínio na classe masculina. Magda Fonseca, treinada desde sempre para não dar a conhecer as confissões alheias, recorda a chama da prima: «Contou-me uma paixoneta com alguém em Espanha. Um republicano. Alguém das brigadas republicanas».
Maria Adelaide Carvalho, a primeira mulher de Rúben de Carvalho – grande emblema cultural do PCP -, assistiu aos efeitos que Carolina exercia sobre homens e mulheres e revela o mistério: «Teve um caso com o importante líder do exército republicano, o general popular, o Modesto. O que era normal. A Carolina era uma sedutora. Homens e mulheres apaixonavam-se por ela».
Fora Dolores Ibarruri quem a apresentara a Juan Guilloto León, ou ‘Modesto’, como passou à História o famoso general popular que deu água pela barba ao ‘generalíssimo’ Franco na batalha do Ebro. Formado na Academia Militar Frunze do Exército Vermelho, era tão eficiente no campo de batalha como nas suas conquistas. As mulheres pelavam-se por ele, e vice-versa, o que por vezes terminava mal. Ernest Hemingway, que está em Madrid como correspondente de guerra, enciumado e de revólver em punho, chega a desafiar Modesto para o jogo imprevisível da roleta-russa. Martha Gellhorn, a mulher do escritor, numa festa bem regada no antigo Hotel Gaylord, cometera a imprudência de comentar que o espanhol era um homem atraente. Foi um grupo de amigos, mais ébrios do que os dois galos de combate, quem evitou a tragédia.
‘ACREDITEI QUE SERIA FUZILADA’
Mas o avanço devastador dos franquistas põe fim ao romance de Carolina. O destino da República estava por um fio. Na fronteira, Modesto dirige as grandes batalhas para impedir a marcha dos fascistas e, em Madrid, a portuguesa mantém-se no seu posto. A revolução fora traída. Os soviéticos deixam a Espanha sozinha. Estaline é visto como o coveiro da revolução. No início de 1939, os partidos da Frente Popular destroem-se entre si. Com uma retaguarda tão caótica e dividida, nenhuma guerra podia ser ganha. Em março, o coronel Segismundo Casado, numa aliança com oficiais do exército e alguns setores das forças políticas, convencidos que poderão amolecer Franco e evitar o massacre que se avizinhava, negoceiam a paz. O golpe de Estado era uma bênção para os nacionalistas. A moeda de troca é a caça aos comunistas. É a debandada de combatentes, entre eles, os portugueses. Oficiais, políticos e pessoas desesperadas e receosas de represálias atravessam a fronteira para França.
Carolina, essa, leva o seu ideal ao limite. Decide permanecer e não se limita a ficar na retaguarda. Com os grupos de tropas comunistas que combatem Casado dispersos pela cidade, arrisca a cabeça. Oferece-se aos dirigentes do PCE para os coordenar: «No dia 12 de março, quando me encontrava num posto de comando instalado na antiga sede do partido, fui feita prisioneira». No final desse mês, com as tropas de Franco a ocuparem Madrid, a história muda. Carolina nunca é apanhada desprevenida. Tem documentação falsa para todas as ocasiões: «Fui interrogada e, apesar de ter sido espancada, disse que era jornalista belga ao serviço da agência telegráfica AIMA, apresentei uma carta de trabalho da agência. Neguei sempre ter qualquer outro tipo de atividade. Fui ameaçada de morte e cheguei a acreditar que seria fuzilada!».
EM ESPANHA, COMEU RATOS
Em Espanha faltava tudo e, nas prisões, lançava-se mão ao que havia para sobreviver. A partir deste momento, o fio da narrativa muda de mãos e é Magda Fonseca quem conduz a história: «Carolina dizia muitas vezes que sofreu menos aqui, na PIDE, do que em Espanha. Veio com as pernas cheias de cicatrizes da sarna, comeu ratos, tudo o que se possa supor. Não tinham o que comer e era aquilo que houvesse».
Contra todas as expectativas, apesar dos fuzilamentos em massa, a sorte move-se a seu favor. É transferida para uma prisão em Valência de Alcântara, coladinha a Portugal, e daí, sem que os nacionalistas prestem cavaco à PVDE, é colocada em liberdade na fronteira.
Não vem sozinha. Faz-se acompanhar de uma figura misteriosa, que sairá de Portugal como entrou. Nem o PCP, que o protegeu, chegou a decifrar a sua verdadeira identidade. Nicolas Gargoff, como foi apresentado, seria búlgaro – e, tal como ela, com obediência apenas à Internacional Comunista. Quando um ano depois Carolina é de novo presa pela PVDE, acabaria por trair e entregar vários camaradas, mas guarda a sete chaves a identidade deste companheiro de viagem: «Quando atravessei a fronteira, vim acompanhada por um suíço que disse ser agente secreto da URSS e deu indícios de perturbação mental. Já em Lisboa, li nos jornais que um estrangeiro, dando indícios de alienação mental, tinha vagueado por uma aldeia fronteiriça e dizia que queria voltar para a Espanha vermelha e apareceu morto junto a um rio».
Na prisão de Valência de Alcântara partilhara a cela com prostitutas e artistas de circo que lhe cedem algumas roupas. Disfarçada, de saltos altos, capa de cetim, aterra numa aldeola perto de Portalegre. Magda, que só a conheceria após a travessia, narra o seu expediente: «Aí, descobriu um contrabandista que tinha um carro de aluguer. Vinha acompanhada pelo búlgaro e disse ao motorista que o marido não falava português. O outro viu logo de onde eles vinham. Ela não tinha um tostão, mas disse-lhe que, se ele os levasse a Lisboa, a mãe lhe pagaria o que ele pedisse. E assim foi. Ele chegou cá e pediu o que quis. E a minha tia ameaçou-o: ‘Se alguma vez abrir a boca, o senhor vai pagar este dinheiro muitas vezes’. A Carol e o Nicolas Gargoff entraram pela porta da frente. Depois de um banho e nova roupa, saíram pela escada de serviço e foram-se esconder em casa da minha mãe».
‘NÃO CONTAR NADA DAS NOSSAS VIDAS’
Carolina está agora com 27 anos. Magda tem quase seis, a mesma idade da sua filha Helena, de quem não tinha notícias desde que abandonara a URSS. A imagem da prima, no primeiro dia em que pisou a sua casa, fica-lhe, como uma gravura, inscrita nas caves da memória: «Lembro-me nitidamente quando chegou a casa da minha mãe: era uma senhora alta, de olhos verdes, lindíssima».
A pequena Magda crescera a utilizar nomes de código num quase luto familiar e, apesar da idade, já se habituara a pouco falar e a procurar códigos nos outros para obter respostas a perguntas que não se faziam. «Quase desde que nasci que me habituaram a não falar muito sobre as outras pessoas, a esquecer os nomes delas e a não contar nada da nossa vida. O meu pai estava preso no Tarrafal, a irmã, a minha tia Dalida, estava nas Mónicas, e o meu avô paterno no Aljube. Quando a Carolina chegou, disseram-me que se chamava Regina e proibiram-me de dizer que ela estava na nossa casa. Quanto ao Nicolas Gargoff, que não sabia uma palavra de português, a minha mãe, que era das FJCP, por encargo do partido passeava com ele pela Baixa, como se fossem namorados. Até que, um dia, recebeu instruções para o levar até à Rocha de Conde de Óbidos. Soube depois que ele tinha embarcado num cargueiro. Para onde? Não sei. Quem era? Também não. Um mistério, como havia muitos naquela época».
As notícias nesse verão não podiam ser piores. Estaline aliara-se a Hitler. Muitos comunistas digeriam mal a vergonha, mas a maioria não questionava a sua estratégia. Para Carolina, que só tomaria consciência de alguns dos seus equívocos tardiamente, a guerra, porém, traz-lhe uma dor adicional: não via a filha há cerca de três anos e ia perder-lhe por muito tempo o rasto. Por ela vacilaria entre os caminhos do heroísmo e os abismos da traição. Magda, com esse sofrimento da prima entrincheirado na memória, vem de novo ao palco: «Estivemos muito tempo sem saber da menina. Com as tropas alemãs às portas de Moscovo, eles remeteram as crianças para o interior, para uma República qualquer, em que ninguém sabia delas. Felizmente. Foram assim salvas da guerra, porque eles eram todos filhos de republicanos, sobretudo os que tinham combatido na guerra civil de Espanha».
FIM DA PRIMEIRA PARTE