«É uma vergonha. Deixámos de estar numa democracia, num Estado de direito democrático. Não há presunção de inocência, e a violação do segredo de Justiça é constante e permanente. Ainda por cima toda a gente sabe quem é que está a violar o segredo de Justiça e não há qualquer problema. Está-se a fazer um julgamento na praça pública, no fundo é isto».
A declaração é feita por um alto quadro da PSP, referindo-se às últimas notícias avançadas pela CNN Portugal, que dão conta de que «a investigação da Polícia Judiciária e do Ministério Público à morte de Odair Moniz, no bairro da Cova da Moura, Amadora, já concluiu que o auto de notícia não pode ter sido escrito pelo agente que baleou a vítima, desde logo porque quando o documento foi elaborado, horas depois do incidente e nas instalações da PSP, o polícia em causa não estava sequer na divisão da Amadora, onde prestava serviço, mas a ser interrogado na sede da PJ em Lisboa».
Auto sem assinatura
O canal de televisão diz ainda que «quando o auto de notícia chegou à PJ, para ser junto ao processo onde o agente é investigado por homicídio, ainda não estava assinado pelo próprio, que era suposto ter escrito o documento. São conclusões que chocam de frente com a versão oficial da PSP, que afirmou ter sido o ‘polícia interveniente’ a elaborar o auto». Para o alto quadro da PSP, a história é outra. «Isto é uma vergonha, sempre fomos transparentes. Como é óbvio, os polícias, quer sejam os colegas, quer seja a hierarquia, numa situação destas, e outras semelhantes ou mais complicadas, auxiliam-se mutuamente na elaboração de expediente. APSP sempre disse isso desde o início. O expediente foi acompanhado pela hierarquia, não há aqui nada a omitir». A mesma fonte refuta ainda a notícia que passou na CNN Portugal. «O expediente vai sempre por assinar para a PJ, como é óbvio. E a PJ sabe isso muito bem. O original, assinado, vai para o Ministério Público, com o ofício. Faz-se o expediente, imprime-se, o original é assinado pelo agente autuante, vai para o Ministério Público, e à PJ dá-se conhecimento por email, com um print que é retirado do sistema, que, como é óbvio, não vai assinado».
Declaração de guerra
A relação entre as duas polícias agudizou-se nos últimos tempos, havendo aqui, como em quase tudo, duas leituras opostas. De um lado, estão aqueles que dizem que a Polícia Judiciária nunca perdoou à PSP ter sido esta Polícia a ir com os procuradores a São Bento, aquando da Operação Influencer, que fez cair o Governo maioritário de António Costa. Do outro, estão aqueles que acham que a PSP não deve ter competências na área da investigação e que, por isso, é preciso desacreditá-la.
Em final de outubro, quando os bairros à volta de Lisboa estavam a ferro e fogo, a revelação do testemunho do agente suspeito de ter morto Odair Moniz – um cabo-verdiano que recusou parar a uma ordem policial e que abalroou vários carros, antes de se ter envolvido em confrontos com os dois agentes que estavam no local – acicatou ainda mais os protestos. E a PJ acusa o agente de ter feito um auto de notícia do trágico acidente não coincidente com as declarações que lhes prestou – em causa está a existência ou não de uma faca na mão de Odair Moniz quando este foi morto.
Então, a PSP fez queixa à ministra da Administração Interna, além de ter lavrado o seu protesto numa reunião que decorreu na sede do Sistema de segurança Interna (SSI). Na ocasião, o representante da PSP disse que a violação do segredo de Justiça – insinuando que partiu da PJ – «era incendiária e que punha em causa a segurança de todos os elementos que tinha no terreno».
Mas a situação agora está a atingir outras proporções. «É uma declaração de guerra aberta, acho estranho é não haver nenhuma reação da Justiça, está a violar-se o segredo de Justiça, está a fazer-se um julgamento na praça pública, não há qualquer respeito pela presunção de inocência, está-se a mandar barbaridades cá para fora e ninguém diz nada», atira outro oficial da PSP.
Segundo apurou o Nascer do SOL junto de fontes de Belém, o Presidente da República deverá aproveitar o encontro do voto de boas festas que as forças de segurança lhe irão desejar para questionar as lideranças das duas forças sobre esta ‘guerra’.
Vergonha na cara
O Sindicato Nacional dos Oficiais de Polícia não se quis alongar ao que já tinha dito ao Nascer do SOL em outubro de 2024, mas, após insistências, Bruno Pereira disparou: «Essa gente não tem vergonha na cara ao estar a fazer um julgamento na praça pública. Qual é o propósito, o alcance, a motivação o objetivo? Partilhar com jornalistas mais do que o próprio inquérito já foi partilhado com o próprio advogado do agente, isto é normal? Ainda por cima com considerações altamente especulativas e duvidosas. E sempre em momentos… curiosos. Primeiro, dois dias depois dos tumultos terem começado, quando estes estavam bem agitados, e agora quando o agente ia ser ouvido. Não percebo qual é o interesse de quem anda a injetar veneno e a alimentar a comunicação social com isto. Se o interesse é apurar a verdade dos factos ou é a andar a alimentar a especulação pública, com violações consecutivas e sistemáticas de segredo de justiça. Acho inenarrável. Acho inadjetivável». Em outubro, o líder dos oficiais da PSP já havia afirmado: «Toda e qualquer violação do segredo de justiça não abona a bem da verdade, ela já é discutida há anos, não é de ontem, é de sempre. E continuamos invariavelmente a vê-lo ser violado, num caso como este, a questão ganha contornos ainda mais perigosos, e inadmissíveis. Numa investigação desta natureza, que provocou e teve o condão, infelizmente, de provocar incidentes múltiplos, que assolaram grande parte da área metropolitana de Lisboa, permitir-se uma violação desse mesmo segredo de justiça, libertando cá para fora informações que são questionáveis do ponto de vista da verosimilhança e veracidade, fazendo até um atropelo àquilo que possa ser a gestão do Ministério Público, não me parece ser bom caminho. Não sei quem foi a fonte, ainda que tenha sido citada por quem a revelou em primeira mão, eu não faço julgamentos liminares e sumários de quem possa ter sido, deixarei isso também, mais uma vez, como deixarei o primeiro caso para a Justiça, querendo acreditar que a Justiça fará o seu papel e fará uma investigação isenta, rápida e que delapide qualquer espaço de dúvida relativamente ao caso concreto, e relativamente a quem, eventualmente, tenha partilhado o que não devia, não contribuindo para o bem da investigação».
Segundo a notícia da CNN, «o inquérito corre na secção regional do DIAP de Lisboa, e não no DIAP da Amadora, porque além do homicídio simples, pelo qual o polícia já é arguido, a procuradora centra-se nas suspeitas de falsificação do auto de notícia – que a terem ocorrido vão implicar outras pessoas na hierarquia da PSP da Amadora».
Para fechar, diga-se que a PJ e a PSP efetuaram, isoladamente, ações nos bairros onde ocorreram atos de vandalismo como forma de protesto contra a morte de Odair Moniz. «A PJ foi a Santo António dos Cavaleiros deter dois jovens que terão estado envolvidos no fogo posto do autocarro onde estava o motorista que ficou gravemente ferido. A PSP deteve quatro jovens, dois estiveram envolvidos em assaltos na via pública nas noites dos tumultos, os outros dois foram detidos porque um está acusado de tentativa de homicídio e o outro de roubo agravado », explicou fonte do comando de Lisboa da PSP», que acrescentou: «São crimes de competências de investigação diferentes, o roubo sem arma de fogo é da competência da PSP, se estiver arma de fogo já é da competência da PJ. No caso do incêndio em Santo António dos Cavaleiros, como é fogo posto, é da competência da PJ. É a própria lei que o determina, não há aqui qualquer conflito de competências. Não há qualquer incoerência».