A desculpabilização das escaladas dos protestos


Em Portugal, ao longo das últimas décadas temos assistido à emergência de um certo laxismo de geometria variável com afirmações de flexibilização das regras sociais.


Viver em comunidade implica regras, estipuladas por quem de direito e assumidas pelas partes integrantes como pressuposto das vivências individuais e nas interações das esferas de liberdade. É essa a base do contrato social que vigora há séculos na formatação das Nações e na estruturação das suas comunidades e dos direitos, deveres, liberdades e garantias dos cidadãos. A banda larga das configurações das esferas individuais de liberdade permite acolher as diversas perspetivas ideológicas, com modelações de peso do indivíduo e do Estado, através das suas instituições, mas terão de existir sempre mínimos, sob pena do modelo de organização da sociedade se transformar num quadro de selva, em que tudo é possível.

Em Portugal, ao longo das últimas décadas temos assistido à emergência de um certo laxismo de geometria variável com afirmações de flexibilização das regras sociais, das expressões de boa educação à observância da legislação em vigor, tudo em nome de uma afirmação individual, não para ganhar mais margem para a esfera de cada um, mas para exigir de terceiros ou o Estado façam ou respondam a algo de particular. Do ego à circunstância, passando pela afirmação de quem os fins justificam os meios já tivemos quase tudo, com a esmagadora maioria dos portugueses a manterem-se, no essencial, dentro do compromisso com as regras do contrato social, apesar de recaídas esporádicas para tentarem contornar as convenções nos quotidianos, sem danos nas dinâmicas correntes.

Há mesmo partidos que projetam na observância das regras desse contrato social, a máxima do “há governo, somos contra”, promovendo sucessivos ensaios de contestação às vigências, a toque da ideologia, da partidarite ou do afago de interesses corporativos e particulares. Este fenómeno que em 50 anos de democracia aconteceu com ascende à esquerda, tem-se generalizado nos últimos anos com ascendente à direita ou em função da governação desta, como acontece com greves que nunca aconteceram com outra solução governativa, apesar do quadro de rendimentos e funcionamento dos serviços públicos ou concessionados serem similares. Há uma evidente instrumentalização do protesto, para fins partidários e políticos, numa sociedade em que o diálogo na diversidade, a tolerância e o compromisso são cada vez mais bens escassos, enleados que estamos na pulverização, radicalismo e presunção de superioridade do “eu” em relação ao outro.

Como acontece com a emergência de novos contextos, com a direita a instrumentalizar e os populismos a cavalgarem as oportunidades geradas pelas narrativas teóricas, pelos escândalos políticos e pela insuficiência das respostas para as pessoas, boa parte da esquerda está perdida. Agarra-se à ideologia, ao quadro mental de ação para responder, mas não chega. Agora nos bairros, na habitação, na crise climática e noutros temas sem respostas consistentes, à falta de adesão à oferta partidária cria movimentos cívicos, um pouco à imagem da esmagadora maioria das comissões de utentes, colonizadas pelo PCP. Enquanto se procura levantar do impacto da circunstância, ter estado no poder como protagonista ou suporte sem respostas sustentadas para demasiadas coisas, com os serviços públicos num estado deplorável, consagra-se o vale tudo, até a desculpabilização dos protestos dos bombeiros sapadores em clara ilegalidade.

Em democracia, regras são regras. Lá porque os motivos do protesto podem fazer sentido, num quadro em que o Estado decide sem critério inteligível, dando a uns e não a outros, não significa que perante a ausência de respostas se possa perturbar a ordem pública, lançar petardos e ativar tochas de fumos, ilegalidades gerais também com lamentáveis expressões noutras contestações e nos estádios de futebol, com relevantes delapidação do património destes na liquidação das multas. Perdidos nos novos contextos, comprometidos com a promoção de uma certa bandalheira social, de compromissos mínimos individuais com as regras sociais, uma certa esquerda pode conviver bem com este vale tudo que mina a coesão, porque a maioria dos cidadãos configura-se à observância das regras, à previsibilidade e a pressupostos de tudo o resto. É que no limite desta tese de aceitação geral todas as configurações de protesto, o contribuinte descontente com os serviços públicos prestados teria legitimidade para deixar de pagar impostos enquanto não tivesse o acesso e a qualidade a que tem direito. E lá se ia a base fundamental para a existência de políticas de redistribuição social, de combate às desigualdades e de construção de oportunidades de afirmação individual e desenvolvimento comunitário.

São bonitas as proclamações de combate político e partidário à extrema-direita, às suas derivas e aos populismos, mas os olhos nos olhos perante as consequências nunca poderão invalidar a urgência do ataque às causas que geraram os mercados de afirmação destes fenómenos. Persistir em não perceber isso, depois de ter tido o poder governativo para o fazer e de ter maioria parlamentar para ser consequente com as causas ao invés de verborreia perante as consequências, é continuar à margem do que se impõe, para resgatar o compromisso com as pessoas e preservar a democracia. O PS pôde fazer no governo não o fez. O PS, apesar de ser mais difícil na oposição, deve fazê-lo, não o está a fazer. Aliás, uma vez mais depois de 2011, sem qualquer margem para avaliação crítica do verão passado, com sentido de ajuste ou correção, dificilmente a circunstância se superará com mais do mesmo. Pode até a história repetir-se.

NOTAS FINAIS

O LEGADO DE SOARES. Não há modelação ou perspetiva tentada que macule a centralidade de Mário Soares na afirmação da democracia em Portugal, o sistema cheio de defeitos, com virtudes desvalorizadas a carecerem de mimo, que permitem amplas latitudes de opinião. O legado tem de ser mais do que a sua mera invocação verbal, tem de ser a substância da visão, do sentido da política, do respeito pela diferença, da moderação, do compromisso em nome de valores maiores, do combate além das circunstâncias, da qualificação do debate político e da coragem no pensamento e na ação. Para nós, só haverá sempre a liberdade, dizer sim ou dizer não, mas é preciso cuidar dela, concretizar novas sementeiras e resgatar as culturas anteriores.

O CENTENÁRIO. Não foi correto, na cerimónia da Gulbenkian, que o representante institucional do Partido Socialista que Mário Soares fundou, o secretário-geral, não tivesse estado entre os oradores, tendo falado o residente do Conselho Europeu, o Presidente da República e até José Pacheco Pereira. Poderá haver razões, visto de fora, não fez sentido.

A desculpabilização das escaladas dos protestos


Em Portugal, ao longo das últimas décadas temos assistido à emergência de um certo laxismo de geometria variável com afirmações de flexibilização das regras sociais.


Viver em comunidade implica regras, estipuladas por quem de direito e assumidas pelas partes integrantes como pressuposto das vivências individuais e nas interações das esferas de liberdade. É essa a base do contrato social que vigora há séculos na formatação das Nações e na estruturação das suas comunidades e dos direitos, deveres, liberdades e garantias dos cidadãos. A banda larga das configurações das esferas individuais de liberdade permite acolher as diversas perspetivas ideológicas, com modelações de peso do indivíduo e do Estado, através das suas instituições, mas terão de existir sempre mínimos, sob pena do modelo de organização da sociedade se transformar num quadro de selva, em que tudo é possível.

Em Portugal, ao longo das últimas décadas temos assistido à emergência de um certo laxismo de geometria variável com afirmações de flexibilização das regras sociais, das expressões de boa educação à observância da legislação em vigor, tudo em nome de uma afirmação individual, não para ganhar mais margem para a esfera de cada um, mas para exigir de terceiros ou o Estado façam ou respondam a algo de particular. Do ego à circunstância, passando pela afirmação de quem os fins justificam os meios já tivemos quase tudo, com a esmagadora maioria dos portugueses a manterem-se, no essencial, dentro do compromisso com as regras do contrato social, apesar de recaídas esporádicas para tentarem contornar as convenções nos quotidianos, sem danos nas dinâmicas correntes.

Há mesmo partidos que projetam na observância das regras desse contrato social, a máxima do “há governo, somos contra”, promovendo sucessivos ensaios de contestação às vigências, a toque da ideologia, da partidarite ou do afago de interesses corporativos e particulares. Este fenómeno que em 50 anos de democracia aconteceu com ascende à esquerda, tem-se generalizado nos últimos anos com ascendente à direita ou em função da governação desta, como acontece com greves que nunca aconteceram com outra solução governativa, apesar do quadro de rendimentos e funcionamento dos serviços públicos ou concessionados serem similares. Há uma evidente instrumentalização do protesto, para fins partidários e políticos, numa sociedade em que o diálogo na diversidade, a tolerância e o compromisso são cada vez mais bens escassos, enleados que estamos na pulverização, radicalismo e presunção de superioridade do “eu” em relação ao outro.

Como acontece com a emergência de novos contextos, com a direita a instrumentalizar e os populismos a cavalgarem as oportunidades geradas pelas narrativas teóricas, pelos escândalos políticos e pela insuficiência das respostas para as pessoas, boa parte da esquerda está perdida. Agarra-se à ideologia, ao quadro mental de ação para responder, mas não chega. Agora nos bairros, na habitação, na crise climática e noutros temas sem respostas consistentes, à falta de adesão à oferta partidária cria movimentos cívicos, um pouco à imagem da esmagadora maioria das comissões de utentes, colonizadas pelo PCP. Enquanto se procura levantar do impacto da circunstância, ter estado no poder como protagonista ou suporte sem respostas sustentadas para demasiadas coisas, com os serviços públicos num estado deplorável, consagra-se o vale tudo, até a desculpabilização dos protestos dos bombeiros sapadores em clara ilegalidade.

Em democracia, regras são regras. Lá porque os motivos do protesto podem fazer sentido, num quadro em que o Estado decide sem critério inteligível, dando a uns e não a outros, não significa que perante a ausência de respostas se possa perturbar a ordem pública, lançar petardos e ativar tochas de fumos, ilegalidades gerais também com lamentáveis expressões noutras contestações e nos estádios de futebol, com relevantes delapidação do património destes na liquidação das multas. Perdidos nos novos contextos, comprometidos com a promoção de uma certa bandalheira social, de compromissos mínimos individuais com as regras sociais, uma certa esquerda pode conviver bem com este vale tudo que mina a coesão, porque a maioria dos cidadãos configura-se à observância das regras, à previsibilidade e a pressupostos de tudo o resto. É que no limite desta tese de aceitação geral todas as configurações de protesto, o contribuinte descontente com os serviços públicos prestados teria legitimidade para deixar de pagar impostos enquanto não tivesse o acesso e a qualidade a que tem direito. E lá se ia a base fundamental para a existência de políticas de redistribuição social, de combate às desigualdades e de construção de oportunidades de afirmação individual e desenvolvimento comunitário.

São bonitas as proclamações de combate político e partidário à extrema-direita, às suas derivas e aos populismos, mas os olhos nos olhos perante as consequências nunca poderão invalidar a urgência do ataque às causas que geraram os mercados de afirmação destes fenómenos. Persistir em não perceber isso, depois de ter tido o poder governativo para o fazer e de ter maioria parlamentar para ser consequente com as causas ao invés de verborreia perante as consequências, é continuar à margem do que se impõe, para resgatar o compromisso com as pessoas e preservar a democracia. O PS pôde fazer no governo não o fez. O PS, apesar de ser mais difícil na oposição, deve fazê-lo, não o está a fazer. Aliás, uma vez mais depois de 2011, sem qualquer margem para avaliação crítica do verão passado, com sentido de ajuste ou correção, dificilmente a circunstância se superará com mais do mesmo. Pode até a história repetir-se.

NOTAS FINAIS

O LEGADO DE SOARES. Não há modelação ou perspetiva tentada que macule a centralidade de Mário Soares na afirmação da democracia em Portugal, o sistema cheio de defeitos, com virtudes desvalorizadas a carecerem de mimo, que permitem amplas latitudes de opinião. O legado tem de ser mais do que a sua mera invocação verbal, tem de ser a substância da visão, do sentido da política, do respeito pela diferença, da moderação, do compromisso em nome de valores maiores, do combate além das circunstâncias, da qualificação do debate político e da coragem no pensamento e na ação. Para nós, só haverá sempre a liberdade, dizer sim ou dizer não, mas é preciso cuidar dela, concretizar novas sementeiras e resgatar as culturas anteriores.

O CENTENÁRIO. Não foi correto, na cerimónia da Gulbenkian, que o representante institucional do Partido Socialista que Mário Soares fundou, o secretário-geral, não tivesse estado entre os oradores, tendo falado o residente do Conselho Europeu, o Presidente da República e até José Pacheco Pereira. Poderá haver razões, visto de fora, não fez sentido.