Aqueduto das Águas Livres. O que esconde um dos maiores símbolos nacionais?

Aqueduto das Águas Livres. O que esconde um dos maiores símbolos nacionais?


Vemo-lo quando passamos por ele de carro, a pé, ou de transportes públicos. A lenda do assassino Diogo Alves faz-nos imaginar mil cenários sombrios. No entanto, o Aqueduto das Águas Livres conta muitas histórias. O jornal foi explorar o misterioso mundo dos antigos reservatórios de águas.


Quem mora em Lisboa, de certeza que já passou pelo Aqueduto das Águas Livres inúmeras vezes. Muita gente ouve falar dele através da macabra história do assassino Diogo Alves que se acredita ter cometido vários crimes neste local entre 1836 e 1839. Conta-se que o galego se escondia com os outros elementos do seu bando nas claraboias para assaltar quem por ali passava. Depois de roubar os valores, atirava as vítimas para as margens da ribeira de Alcântara. No entanto, muitos desconhecem os mistérios e curiosidades deste que é considerado um dos símbolos da capital.

Uma ideia ‘genial’ de D. João V

Mariana Castro Henriques, diretora do Museu da Água, é a nossa guia. São 10h30 e já se veem alguns turistas a entrar. Paramos primeiro em frente ao painel explicativo para entender a estrutura da construção desta obra. 

O Aqueduto das Águas Livres, que é composto por 125 arcos, pertence ao Museu da Água que tem cinco espaços abertos ao público: o Aqueduto das Águas Livres no Vale de Alcântara, a Mãe d’Água das Amoreiras (o reservatório final do aqueduto), o Reservatório da Patriarcal, no Príncipe Real, a Estação Elevatória a Vapor dos Barbadinhos, em Santa Apolónia, e a Galeria Subterrânea do Loreto que faz parte do conjunto águas livres. “A extensão total do Aqueduto são 58 km. Isso inclui o troço principal e vários secundários que alimentavam o troço principal. Todo o sistema hidráulico perfaz esses 58 km. Chegando a Lisboa, temos o sistema de distribuição, com galerias subterrâneas que levavam a água aos chafarizes no século XVIII e XIX e que, mais tarde, tiveram outras ligações até no abastecimento domiciliário”, explica. 

De acordo com a responsável, a ideia de captação das Águas Livres remonta à insuficiência no abastecimento de água no interior da cidade de Lisboa, com especial enfoque para a zona ocidental, no Bairro Alto, onde o problema se tornou mais evidente com o crescimento urbano de finais do século XVI. “No reinado de D. João V esta situação agravou-se e, neste contexto, a 12 de maio de 1731, o Rei de Portugal fez publicar o Alvará que ordena o começo dos trabalhos do Aqueduto das Águas Livres”, começa por contar. Segundo Mariana Castro Henriques, era um pedido já antigo e “claro que se podia ter feito uma obra menos emblemática, mas não seria próprio de D.João V que gostava de fazer coisas sempre em grande”.  A construção foi financiada por um imposto designado por Real d’Água que taxava bens essenciais como a carne, o azeite e o sal.

Percorremos aquilo que outrora serviu de ponte. O Aqueduto nasce na zona de Sintra, em Belas, onde há nascentes e era alimentado por 77 nascentes de água. “É um sistema de captação de água, de transporte e de distribuição, construído no século XVIII entre 1731 e 1799”, continua. Foi construído por fases e, só em 1746, chega a água a Lisboa, na zona das Amoreiras, para abastecer o grande reservatório do Aqueduto que é a Mãe d’Água. Desse reservatório, a água era distribuída para a cidade.

Em termos de construção, é uma estrutura de pedra, construída por 1300 homens e foram vários os arquitetos envolvidos, onde se destacam os engenheiros militares portugueses Manuel da Maia e Custódio Vieira, bem como o arquiteto militar húngaro Carlos Mardel. “O arquiteto Carlos Mardel também esteve envolvido, mas na parte de baixo das Amoreiras, nos últimos arcos e depois na primeira fase do reservatório da Mãe d’Água. Normalmente eram militares, engenheiros ou arquitetos e muitos estrangeiros. Era hábito chamar profissionais de fora para participarem nas construções. D. João V gostava muito de fazer isso. Embelezava a obra. A partir de 1746 continua a obra, mas com aquedutos subsidiários, claraboias e outros requintes”, revela.

Como os trabalhadores da obra vinham de “todos os sítios”, tinham de ser instalados. “Foram então criados bairros e muitos terão ficado. A cidade foi crescendo à volta do Aqueduto. Na zona das Amoreiras temos um crescimento das fábricas: dos pentes, do sabão, dos tecidos. Isso impactou na expansão da cidade. Problema… Expansão da cidade, traz um maior consumo da água. A dada altura, o aqueduto não conseguia dar vazão às necessidades das pessoas”, justifica Mariana Castro Henriques.

Os túneis subterrâneos

Entramos por uma porta verde de madeira. A chave custa a abri-la. Ao contrário daquilo que se possa pensar, a água do Aqueduto não circulava por fora: “Circulava aqui dentro”, afirma a diretora do Museu enquanto entra no túnel. “E não circula aqui no meio… Circula pelos lados. Estas são as duas caleiras laterais. Como podem ver não era um enorme fluxo de água”, aponta. A caleira central é de visitação e manutenção do espaço. As claraboias servem para arejar, com alguma proteção. “Isto é um circuito gravítico, a água vem das nascentes, dos aquedutos subsidiários que entram neste troço central, que o alimentam e que vai correndo até a cidade de Lisboa. Tem uma inclinação que faz o transporte, não há máquinas associadas. Isto é uma canalização monumental, mas na prática, o funcionamento é relativamente simples”, garante.

De acordo com a diretora do Museu da Água, há uma contínua manutenção, mas o objetivo nunca será que este fique “como novo”.  “É uma infraestrutura centenária”, frisa, enquanto caminhamos pelos túneis com a lanterna na mão.

O arco grande e a distribuição da água

Voltamos à parte de fora do Aqueduto. Desta vez, estamos virados para o Tejo. Ao longe, vemos a ponte 25 de Abril. O objetivo é ficarmos em cima do arco grande. “Quando foi construído, esta zona exterior funcionava como uma ponte que ligava a cidade de Lisboa. As pessoas vinham de um meio mais rural, muitas vezes para fazer comércio. Vendiam legumes e fruta, por exemplo”, detalha a responsável.

O maior arco do Aqueduto tem 65 metros de altura e, em termos de construção, foi o mais complexo. “São 29 mil palmos. As medições eram feitas assim. Os trabalhadores recebiam em função dos metros que construíam. O palmo era de 22 cm (era o palmo médio de um homem), revela Mariana Castro Henriques.

Mas de que forma a água chegava efetivamente às pessoas?

Inicialmente a água era distribuída para os chafariz (recorde-se que à época não havia água canalizada). O sistema de água domiciliária surge no século XIX e não para todas as casas. “O que é que acontecia? Existiam os aguadeiros – os vendedores de água. Eram eles que iam aos chafariz com os seus barris, enchiam e andavam pela cidade a vender”, conta ainda. É importante lembrar que o consumo de água não tinha nada a ver com os dias de hoje. “No início do Aqueduto, por pessoa consumia-se 7,5 litros de água. Hoje temos um consumo médio de 103 litros… As questões de higiene eram completamente diferentes. Antigamente bebia-se muito menos água. O maior uso de água que fazemos é doméstico, seja nas questões higiénicas como cozinha e casa de banho. Antes usavam para cozinhar, nas questões de higiene usava-se muito menos e não se lavava a roupa em casa. Hoje gastamos demais!”, lamenta.

Na reta final do aqueduto ainda em funcionamento, começou-se a fazer o sistema domiciliário.  “Não sabemos quanto é que se pagava aos aguadeiros… Não temos um número real que possamos identificar. Podiam pagar em géneros, por exemplo”, acredita Mariana Castro Henriques. Além disso, havia situações muito particulares. Algumas quintas fora de Lisboa tinham água com nascentes. Alguns dos donos dessas quintas, de acordo com a diretora do museu, tinham casas também em Lisboa e cediam água da sua nascente para ser construído um aqueduto subsidiário. “Esse aqueduto ia alimentar o aqueduto geral. Era então negociada uma parte dessa água que era entregue ao dono da quinta na sua casa em Lisboa. Era um negócio”, explica. O Aqueduto também abastecia conventos, hospitais e alguns palácios.

“Agora o túnel vai começar a enterrar”, avisa Mariana ao entrarmos por outra das portas verdes. Vamos passar por baixo do viaduto Eduardo Pacheco, ao lado do reservatório de Campo de Ourique e depois vamos entrar na zona das Amoreiras. Corredores que nos dão a impressão de seres infindáveis. Uma pessoa rapidamente se perde se não tiver um bom conhecimento da obra. Ainda assim, a experiência é única.

Aqueduto desativado mas movimentado

O Aqueduto foi desativado nos anos 60. Depois continuou a ser usado como apoio ao abastecimento de água. “Começou a passar aqui alguma canalização do sistema de abastecimento da água da cidade”, sublinha. Nesta fase, o projeto que está em cima da mesa é voltar a aproveitar as águas das nascentes, transportá-las através do Aqueduto, naturalmente não pelas caleiras existentes, mas por uma tubagem simples que é instalada, mas que permite reaproveitar a água para outros consumos como rega, bombeiros, etc. “Esta água pode ser utilizada do ponto de vista da sustentabilidade. Vamos dar-lhe outra função e outra vida”, garante a responsável.

A última paragem é o Reservatório da Mãe d´Água das Amoreiras, tal como já referido, projetado em 1746, pelo arquiteto húngaro Carlos Mardel. Neste momento – devido à experiência imersiva sobre o pintor Van Gogh – vemos vários girassóis gigantes que flutuam na água. No interior do edifício destaca-se o tanque de água, com profundidade de 7,5 metros. No topo é possível aceder ao terraço panorâmico sobre a cidade de Lisboa. Na frente ocidental do reservatório está instalada a Casa do Registo, onde eram controlados os caudais de água dirigidos aos chafarizes, às fábricas, aos conventos e às casas nobres. Classificado, desde 1910, como Monumento Nacional.

Atualmente, o Aqueduto é utilizado para inúmeras atividades como concertos, entrevistas, gravação de séries, filmes, videoclips, etc. “Recebemos muitas escolas, muitos portugueses e muitos estrangeiros, Os estrangeiros têm uma grande curiosidade, não fosse este muito conhecido lá fora”, remata Mariana Castro Henriques.