Que intensidade desmedida é esta que vivemos nestes tempos? Não só no Parlamento com aqueles decibéis excessivos, como nas nossas ruas onde agora até uma mera campanha publicitária aparentemente inofensiva, como a de uma castanha assada, por tornar-se num epicentro de uma controvérsia cultural. Esta recente polémica em torno da campanha publicitária da Control, que rapidamente passou de uma tentativa de humor provocador a uma alegada “ofensa transfóbica”, deixa profundas questões sobre os limites do humor, a liberdade de expressão e o caminho que estamos a construir enquanto sociedade tolerante.
Antigamente creio que a maioria dos debates se restringiam aos grandes temas da política, da economia e a questões efetivamente fraturantes dos diretos civis. Agora parece que até já abrangem detalhes de comunicação e publicidade. Mas não vejamos isto, por si só, como algo negativo. Isto demonstra também a evolução do senso crítico da sociedade em que vivemos. Porém, é fundamental avaliarmos quando a crítica se transforma em censura.
O grande escândalo da comunicação foi uma imagem de uma castanha assada, a casca entreaberta, acompanhada da frase “O pior é quando a descascas e vês que tem minhoca”. Falamos de um trocadilho, sabendo que para a marca que o fez e já o faz há centenas de semanas (com razoável dimensão e muito bom humor, para o seu target, digamos) era apenas mais um trocadilho. Já devem ter mais de mil bem-sucedidos. Mais um trocadilho que, à primeira vista de qualquer leitor, poderia ser visto como inofensivo. Mas bastou um olhar mais crítico, uma perspetiva mais sensível, para que fosse acusado de transfobia, levando a marca Control a apagar a publicação e a emitir um pedido de desculpas público.
Mas vivemos numa sociedade que não pode rir?
É um grande desafio equilibrar uma sociedade que se quer plural, sabemos disso. É um desafio termos as várias sensibilidades individuais respeitadas sem que para isso haja a necessidade de silenciamento de outras quaisquer perspetivas divergentes. Numa sociedade que se quer plural, o desconforto deve ser aceite como parte da diversidade sem limitar a liberdade criativa inclusive. Não podemos partir do princípio de que tudo o que nos desagrada deve ser eliminado só porque nós não gostamos. E quem gosta?
Mas não vale tudo, óbvio.
É necessário separar desconforto legítimo – onde certos trocadilhos podem reforçar preconceitos enraizados – do desconforto momentâneo, que pode ser uma reação pessoal e subjetiva. Em qualquer um destes casos, a solução não deve ser imediata. Devemos perceber que divergências resolvem-se com diálogo em que tanto as críticas quanto as validações têm espaço para existir.
Num hipotético mundo ideal, o desconforto poderia até ser o início de um diálogo construtivo, não o fim abrupto de uma ideia.
Ricardo Araújo Pereira escreveu por estes dias que “o pior é quando não gostamos de algo e achamos que temos o direito de o eliminar.” Este sentimento de alguém que é humorista resume sem humor nenhum o ponto fulcral desta questão: vivemos numa sociedade onde o gosto pessoal e as sensibilidades individuais se estão a tornar censores coletivos.
E podemos falar sem levar com ideologias – favoráveis ou desfavoráveis – de como o “wokismo” está a ficar um problema?
Parece que vivemos numa permanente vigilância social em redor de temas sensíveis, por vezes apelidada de ‘wokismo’, e isto reflete a procura (sempre muito utópica) por maior inclusão e igualdade ou equidade. No entanto, quando esta atenção extrema começa a restringir o debate e a criatividade… não está no lado certo do debate.
Embora a tal vigilância social tenha contribuído para avanços significativos no combate a discriminações, é preocupante à data quando isto ultrapassa a esfera da crítica e entra numa lógica de censura por mera opinião contrária.
Uma sociedade que elimina qualquer conteúdo potencialmente ofensivo perde a oportunidade de questionar ideias, debater limites e até crescer com as diferenças.
Mas é importante valorizar e considerar o papel das redes sociais na extrapolação de indignações sociais. Muitas vezes, conteúdos começam a ser criticados fora do seu contexto original, e o julgamento de praça pública pode não refletir nuances ou intenções. Nesse ambiente muito polarizado, tornou-se essencial que as marcas e as suas campanhas de comunicação e publicidade sejam resilientes. E, sobretudo, estejam bem preparadas para explicar as suas decisões, em vez de cederem automaticamente à pressão.
A campanha da castanha da marca Control foi humorística? Isso depende do ponto de vista. Mas foi um ataque direto a um grupo? Isso é discutível. Creio que não. Se cada mensagem, cada piada, cada campanha de marketing ou publicidade tiver de passar por uma “comissão de moralistas” informal para garantir que ninguém se sente desconfortável, acabaremos com uma sociedade em que nada mais será dito, escrito ou visto em imagem. O humor, por definição, vive do exagero, do absurdo e claro, da provocação. Não é suposto agradar a todos – e está tudo bem.
Curiosamente, ou não, aqueles que mais pedem a eliminação de conteúdos que consideram ‘ofensivos’ são, muitas dessas vezes, quem mais subestima a complexidade do respeito pela diferença de opiniões. Este respeito deve permitir a coexistência de sensibilidades diversas, de opiniões diferentes, de visões antagónicas, de tudo isso que diverge, promovendo um equilíbrio construído entre liberdade de expressão e a responsabilidade social.
Paradoxalmente, se respirarmos com calma e dermos a nós próprios o luxo de pensar, estes episódios de controvérsia podem ser uma oportunidade para as marcas reavaliarem as suas práticas e adotarem uma comunicação mais consciente, sem que isso signifique sacrificar a criatividade ou o humor. É uma oportunidade, mas uma oportunidade dita e escrita, jamais silenciada, apagada ou eliminada como a recente castanha.
Neste caso, os que se sentiram ofendidos pela campanha da castanha tinham todo o direito de o expressar. Óbvio. A marca Control, por sua vez, tinha o direito de decidir se mantinha ou não a publicação.
No final, esta história de uma campanha de marketing sobre uma castanha não é apenas sobre publicidade ou preservativos, mas sobre como caminhamos e evoluímos na complexidade de uma sociedade em profunda transformação e com muito mais acesso a tudo. Se quisermos preservar o espaço para o humor, o debate e a criatividade, e a ideia de cada um, é fundamental que avancemos para um modelo de sociedade onde a convivência e a liberdade de expressão podem ter espaço de debater a responsabilidade social e, até, avancem juntas.
O equilíbrio não está em agradar a todos, está em encontrar formas de expressar ideias e opiniões sem desrespeitar ou excluir ninguém. No fundo, penso eu, o caso da castanha da Control convida-nos a refletir não só sobre a publicidade, mas também sobre o rumo das nossas interações enquanto sociedade. Estamos a construir pontes ou muros? Estamos a criar diálogos bons ou a escolher silêncios seguros maus? Não nos calemos, sabemos que sair da zona de conforto faz crescer. E sabemos que o desconforto é muitas vezes a faísca da evolução.
Se conseguirmos transformar um qualquer desconforto em oportunidades de conversa/debate e aprendizagem mútua entre quem discorda, talvez a sociedade vá evoluir e não volte a precisar de episódios infelizes de escolhas entre a criatividade versus a sensibilidade. Ambas devem existir em harmonia numa sociedade plural.
Porque, no final destas contas todas e várias opiniões, a sociedade é como a castanha: às vezes, tem minhocas. E isso não é razão para a deitarmos fora.