Se há marca que nem o 25 de Abril nem o ajuste do 25 de Novembro conseguiram erradicar é um certo resquício da prevalência de uma espécie de unção proto divina que alguns, em democracia, procuram exercitar das mais diversas formas, sempre em efetiva ou suportada posição dominante, política ou mediática, mas na negação do pressuposto democrático do respeito pela diversidade e pela opinião do outro. A liberdade e a democracia permitem-nos exercitar a diferença de opinião, de posicionamento e de ação, mas provoca ainda urticária a muita gente conformada com a situação e a circunstância. É assim que, mais de 50 anos depois de Abril, parece que a diferença tem de ser validada pelos feitores vigentes, ao invés de deixarem aos cidadãos a margem de liberdade para a avaliação e a realização dos juízos que configuram as opções. Em tudo que é mediático convencionou-se que é preciso uma palavrinha dos feitores de turno, não já na lógica histórica associada às feitorias ou na carrancuda perspetiva rural do trabalho da terra, mas na modelação do espaço público. No fundo, o sentido é similar. Ele há os feitores profissionais que comentam tudo e mais um par de botas, mas também os feitores políticos, alegadamente donos e senhores dos domínios do exercício, que se permitem, em democracia, a vociferar sentenças de inclusão ou de exclusão cívica, partidária e política para salvaguardar as posições ou as suas perceções de verões passados e das suas consequências. O cálculo da sobrevivência na feitoria partidária, mediática ou política determina que a sua visão individual, real ou percecionada, tem de ser sustentada ou imposta aos primeiros sinais de diferença, de desestabilização dos equilíbrios vigentes e dos interesses instalados. E zás, às primeiras expressões, mesmo que sejam da liberdade de pensamento e de ação, chovem chorrilhos de rótulos, de intenções e de sentenças, especialmente aplicáveis a terceiros, nunca aos próprios. O feitor, por regra, corta pela raiz ou alinha na perpetuação da sua circunstância pessoal ou da narrativa política em que está investido, seja de uma governação que correu muito mal ou de uma que perceciona como sublime, mas com resultados desastrosos na pobreza, no crescimento económico e na capacidade de resposta dos serviços públicos às necessidades dos portugueses, para não falar na miríade de problemas estruturais projetados nos cidadãos, nas comunidades e nos territórios. Os feitores atuais vão mesmo ao ridículo de, na sua pretensa afirmação da sua diferença, real ou artificial, em função de objetivos, querem impedir a expressão de outras diferenças, algo que nos remete para algumas vertigens de distorção dos valores da revolução no pós-Abril.
O problema dos feitores que, por exemplo, se expressaram perante uma eventual possibilidade de candidatura presidencial de António José Seguro em modo de sentença sumária, alicerçada em rótulos, passados e unções, é que ainda não perceberam o quadro clínico da nossa vivência democrática, do compromisso dos cidadãos com a democracia e a razão da emergência sustentada fatores de risco para o sistema, de deslaços entre nós e na nossa relação com o modelo de organização política, social e económica vigente. Não compreenderam o passado, antes e depois de 2014, e muito menos o presente. Não perceberam que o problema não é o A ou B que é diferente, mas a indiferença perante a ausência de respostas e soluções para os problemas das pessoas e dos territórios, a para de uma degradação da política e da falta de uma visão mobilizadora para o país. E sim, é preciso compromisso para o fazer, porque os recursos são finitos e o que ainda não foi corrigido ou feito não cabe na órbita de alcance de nenhum feitor ou de um governo de turno, mesmo por vários mandatos, se focados no quotidiano, sem critério nas opções e em modo de abertura de caixas de pandoras de contentamentos e descontentamentos, que somam aos pré-existentes.
Portugal, no espaço mediático, está carregadinho de feitores que, ungidos pela unção da circunstância de estarem na feitoria, da origem familiar ou geográfica e dos circuitos de bolha que frequentam, sentenciam antes de qualquer esboço de liberdade alheia, esquecendo-se que o passado recente e o presente são o resultado do que andaram para aqui chegar. Meio século depois já dispensávamos os feitores e pensávamos pela nossa cabeça, com o nosso juízo pelo que dito e feito. Esse seria o verdadeiro grande desafio de qualquer cadeira de cidadania na escola e na vida: gerar a capacidade individual de ter filtros próprios, ter espírito crítico e redobrar a exigência com os poderes, com noção dos direitos e os deveres. Até lá, dominarão os feitores, se deixarmos.
NOTAS FINAIS
MISERÁVEL VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. Já deixou de estar debaixo do tapete, mas persiste num registo miserável, reflexo de anos de configurações individuais e comunitárias, da falta de uma malha fina de identificação de sinais e de uma certa banalização da morte nos quotidianos. A intolerância com o fenómeno cresce pela consciência de que estamos a ver apenas a ponta do iceberg.
VIOLÊNCIA COM A HISTÓRIA. A comemoração parlamentar do 25 de novembro que não deve violentar nem beliscar a prevalência fundadora do 25 de Abril, é só mais uma expressão das projeções partidárias na interpretação da história e dos seus factos. Quantas vezes não se recaiu em tentações de tentar recriar o que se perdeu em determinado momento em democracia. Houvesse mais foco na geração de respostas para as circunstâncias da população e para os problemas estruturais do país que novembro nunca faria nem sombra nem sol a Abril.
TRÁGICA VIOLÊNCIA NA ESTRADA. Portugal tem 308 municípios. Em 50 anos de democracia morreram na estrada, em acidentes, 75 mil portugueses. Há 89% dos municípios que têm individualmente menos população do que os cidadãos que morreram na estrada, num país com graves problemas demográficos. Mais uma prova de que só o chicote dos feitores não chega.