O mundo atual em que vivemos tem algoritmos que influenciam preferências, redes sociais que amplificam debates e onde a a inteligência artificial (IA) ganha mais protagonismo no fabrico de políticas, o clássico modelo de participação cívica parece estar a ser desafiado. Sim, a democracia moderna está a enfrentar um paradoxo inesperado.
Não há muito tempo, a tecnologia que evoluía era vista como a boa ponte para uma democracia mais acessível e inclusiva. Hoje apresenta-se com um complexo desafio.
Como poderemos equilibrar a inovação tecnológica com a preservação dos nossos valores democráticos fundamentais?
O acesso global a qualquer debate público foi algo que as ferramentas digitais revolucionaram. Hoje, qualquer cidadão pode participar em consultas online, pode assinar petições eletronicamente e pode discutir remotamente propostas políticas. A democratização virtual, porém, apresenta algumas nuances importantes de serem repensadas. Enquanto os likes e as partilhas podem ter a sensação superficial que devidamente têm, há outras iniciativas inovadoras que ao mesmo tempo estão a aparecer para aprofundar o envolvimento da sociedade na participação cívica moderna que falamos.
Em Portugal, o programa SIMPLEX, implementado desde 2006, tem simplificado o funcionamento da administração pública e sobretudo tem melhorado a eficiência dos nossos serviços públicos. É consensual que veio aumentar a transparência e a facilidade no acesso dos cidadãos às suas necessidades. O Portal do Cidadão, lançado em 2004, oferece hoje uma vasta gama de serviços online, permitindo transações mais eficientes e transparentes. Estas iniciativas demonstram como a tecnologia pode, de facto, fortalecer os processos democráticos quando bem implementada.
Quaisquer eleições recentes, seja a mais recente dos Estados Unidos da América ou qualquer outra na Europa, evidenciaram o poder dos algoritmos na formação/construção da opinião pública. As redes sociais dão prioridade aos conteúdos que criar adesão, cliques e partilhas, muitas vezes levando a posições extremistas e criando bolhas informativas difíceis de conter. Este fenómeno levanta questões cruciais sobre a integridade e moderação do debate democrático nesta era ou vida democrática mais digital.
No entanto, a tecnologia também oferece soluções e não só desafios. Na nossa União Europeia, por exemplo, o Parlamento Europeu está a testar o Archibot. O Archibot é um sistema que utiliza a IA para digitalizar e tornar os documentos mais antigos possíveis de pesquisar, facilitando a pesquisa e a comparação de informações históricas. Isto demonstra como a IA pode ser utilizada para aumentar a transparência e o acesso à informação, de forma mais correta e sem deturpação, elementos essenciais para uma democracia saudável.
Há mais exemplos sobre este tema. Aliás, o que já não falta são exemplos. Países como a Estónia já utilizam IA para gerir serviços públicos e informar os eleitores do seu país das decisões políticas dos seus governantes. Apesar dos benefícios práticos, confiar de maneira tão amplas em meros algoritmos para ajudar de forma tão direta a resolver questões de governação levanta questões éticas fundamentais. Um sistema democrático deve refletir valores humanos e garantir que as decisões sejam compreendidas e aceites pelos cidadãos.
Portugal pertence ao denominado grupo de países líderes digitais na Europa (D9+), sendo um grupo informal de Estados-membros “like minded”, que partilham ideias e interesses semelhantes e que se assumem como os Estados-membros mais desenvolvidos a nível digital na UE, e que Portugal até assumirá a presidência já no segundo semestre de 2025. Deveríamos ter mais consciência e atenção a estes grupos importantes para a sociedade que vivemos e a democracia que queremos. Este grupo reúne países com administrações públicas digitalmente avançadas e tem a clara oportunidade de liderar na implementação ética de soluções tecnológicas na governação. A troca de melhores práticas entre estes países (o grupo D9+ integra presentemente 13 Estados-membros: Suécia, Dinamarca, Finlândia, Estónia, Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo, Irlanda, Espanha, Portugal, Polónia, Eslovénia e República Checa) pode servir como modelo para outros membros da UE, demonstrando como a tecnologia pode ser usada para melhorar a eficiência governamental sem comprometer os princípios democráticos. Ganhamos todos e ganhará a democracia transparente, credível e com valores humanos presentes.
E como falar em democracia sendo português sem pensar já nas eleições autárquicas de 2025 em Portugal? Poucas dúvidas de que este ato eleitoral será um marco no uso de tecnologia em campanhas políticas. Os Partidos políticos já começam a explorar ferramentas de IA para segmentar públicos e personalizar mensagens. Embora eficazes, estas estratégias levantam questões sobre transparência e ética. E não é neste período que esta ideia vai mudar.
A ausência de regulamentação específica sobre o uso de IA em contextos eleitorais coloca em risco a integridade democrática. No entanto, Portugal tem a oportunidade de liderar neste aspeto, se pensarmos na oportunidade que temos, aproveitando a sua posição no grupo D9+ e as iniciativas da UE, como o AI Act, para desenvolver um quadro legal ao nível de regulamentos para que seja robusto e o mais ético possível no uso de tecnologia em processos democráticos.
O nosso desafio enquanto sociedade não é impedir a inovação e o avanço da tecnologia, aliás, a tecnologia tem impulsionado e de que maneira o nosso planeta, o nosso desafio é enquadrar eticamente estes avanços. A União Europeia deu um passo importante ao criar um quadro legal comum para a IA, com especial foco na inovação responsável.
Contudo, regular não basta também.
É fundamental educar e capacitar os nossos cidadãos para compreenderem como os algoritmos influenciam as suas realidades e, também por isto, exigirmos transparência.
Em Portugal, iniciativas de cidadania digital, como a inclusão de competências digitais nos currículos escolares, são passos importantes nesta direção. Mas há mais. Os portugueses podem e devem ser agentes ativos neste processo, podem participar mais ativamente através de plataformas como o Portal do Cidadão, podem monitorizar os processos democráticos e a aplicação política que o Estado executa e as Autarquias Locais, e até podem investir na sua própria educação digital.
Queremos, em suma, um futuro humanista com sabedoria para utilizar as oportunidades digitais.
A democracia, embora imperfeita, continua a ser o melhor sistema para garantir a voz de todos. Não há questão sobre isto, nem humana nem artificial. A tecnologia, quando bem utilizada, pode fortalecer este propósito que todos defendemos, ampliando a participação e facilitando os processos de forma que fiquem mais eficientes e transparentes.
O desafio que enfrentamos é garantir que o progresso tecnológico esteja sempre ao serviço das pessoas e dos valores democráticos, com ética, transparência e rigor.
O futuro da democracia no século XXI dependerá da nossa capacidade de criar um equilíbrio entre a inovação tecnológica e a preservação dos valores humanos fundamentais que sustentam uma sociedade livre e justa. Sejamos ambiciosos, mas com consciência humana sempre.