Se a pobreza energética é uma realidade presente e transversal a várias camadas da população portuguesa, nos bairros sociais o problema ganha outros contornos, ainda mais alarmantes.
Apesar dos avanços a nível da reabilitação urbana, ainda há milhares de famílias a viver em barracas, bairros sociais degradados e outras construções sem condições mínimas de habitabilidade. Com o inverno a aproximar-se, o maior receio de quem vive nestas situações é só um: sobreviver ao frio.
“As habitações nos bairros sociais não estão preparadas para o Inverno que aí vem. Um aspeto comum nestes bairros é o desinvestimento nos materiais utilizados na construção destas casas, que, na sua maioria, já são antigas, e vão ficando num estado degradado ao fim de anos sem qualquer tipo de manutenção”, afirma Paula Pereira, assistente social no Centro Social Paroquial do Cristo Rei, que trabalha diretamente com pessoas do Bairro Social Cor-de-Rosa, do Bairro Branco e do Bairro da Nossa Senhora da Conceição, na Margem Sul do Tejo. “Há muitos casos de pessoas que passam frio. Grande parte destas famílias não tem capacidade financeira para ter gastos elevados com o aquecimento das casas.”
Na última década Portugal tem estado entre os quatro países da União Europeia em que mais famílias (24,4% em 2019) têm declarado viver em casas com infiltrações, humidade ou apodrecimento nas janelas ou pavimentos, segundo o Eurostat. “Há casas que estão num estado que ultrapassa o limite aceitável, com tetos e paredes completamente pretas, que acabam por ser até prejudiciais à saúde, principalmente de pessoas com problemas respiratórios”, revela a assistente social.
Para Paula Pereira, o maior problema está na baixa qualidade construtiva das habitações, na ausência ou ineficiência de sistemas de climatização e no desinvestimento e falta de manutenção pelas entidades competentes. Neste caso, a maioria das habitações está sob a alçada do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), que “não tem feito o suficiente”.
“Há falta de uma manutenção que permitisse alguns reajustes de forma a tornar as casas mais eficientes a nível energético. Se houvesse um maior investimento no isolamento das habitações, a nível das janelas e portas, seria uma forma de tornar as habitações mais climatizadas”.
As consequências para a saúde de viver numa casa fria há muito que são conhecidas e, para uma população marginalizada e exposta fatores de risco, a situação torna-se ainda mais preocupante. Além do aumento do risco de mortalidade e do agravamento de doenças preexistentes, a exposição constante ao frio pode ainda causar ou agravar problemas ao nível de saúde mental.
Nos bairros sociais em Lisboa, as realidades são díspares e há casos em que a pobreza energética chega a situações limite, colocando em risco a subsistência de famílias inteiras. No Bairro do Zambujal e na Cova da Moura, “há famílias que no Inverno ao dia 12 já não têm gás, famílias que cozinham arroz nas escadas dos prédios para os vizinhos. Isto são sofrimentos incríveis”, revelava Carlos Simões, dirigente da Academia do Johnson, no Bairro do Zambujal, em entrevista ao Nascer do SOL, no passado dia 24 de outubro.
Prédios sem luz e moradores “presos” em casa
Do alto das escadas do prédio de nove andares onde vive, Adília Paiva, de 65 anos, já não esconde o cansaço de quem há cinco meses é obrigada a subir e a descer escadas diariamente, desde que os dois elevadores do prédio avariaram. “Já estou com problemas nos joelhos de tanto subir e descer. Quando venho carregada com sacos de compras torna-se impossível”, desabafa a moradora de um dos lotes do Bairro do Armador, antiga zona M de Chelas. Ainda com sequelas de um AVC que sofreu aos 45 anos e que a deixou com dificuldades em andar, Adília acorda todos os dias às 5h da manhã para ir trabalhar e enfrenta nove andares de escadas, muitos deles sem iluminação. “Arrisco-me a cair das escadas e a arranjar um problema grave”, reclama. “Há muitos vizinhos mais velhos, alguns com 90 anos, e outros com cadeira de rodas, que deixaram de poder sair de casa”.
É o caso de Isidro Rocha, de 71 anos, que vive no sétimo andar e, tanto ele como a mulher, já só saem de casa “quando é mesmo necessário”.
“É um castigo para descer e subir as escadas com sacos de compras. Sou diabético e a idade já não perdoa”, desabafa. “Há uma vizinha que tem muitos problemas de saúde e precisa de ser levada às consultas e agora não consegue sair de casa. A família é que lhe tem trazido comida. Não há forma de arranjarem uma solução para isto. A empresa de manutenção dos elevadores e a Gebalis dizem que ainda não têm previsão de arranjo.”
Com a época festiva a aproximar-se, Isidro receia passar o Natal longe da família. “Já avisei os meus familiares que ainda estamos sem elevador e, se continuar assim, não vêm passar o Natal connosco, o que é compreensível”.
O bairro social do Armador, em Marvila, é constituído por 118 lotes, sendo 69 propriedade da Câmara Municipal de Lisboa e 49 de outros promotores. “Sei de pelo menos mais dez prédios aqui no bairro sem elevador e ninguém resolve nada”, revela Adília Paiva.
O caso não é único (nem de hoje). Em início de outubro, as comissões de moradores e utentes de saúde de Marvila já se tinham manifestado nos Paços do Concelho, em Lisboa, para denunciar avarias em cerca de três dezenas de elevadores de vários lotes do bairro do Condado e infiltrações nas casas.
De acordo com o documento entregue à Câmara Municipal de Lisboa, muitos dos moradores “dependem de familiares e da solidariedade de vizinhos” para ter alguma mobilidade e satisfazer necessidades básicas”. “O abandono de Marvila tem de ter limites, tem de parar. Temos de ter direito à dignidade e à mobilidade nas nossas habitações”, lê-se no documento entregue.
O i pediu esclarecimentos à Gebalis, a empresa pública que gere os bairros municipais de Lisboa, estando a aguardar resposta.