Todo o planeta está à espera dos resultados das eleições norte-americanas. O resultado é incerto, mas há já claras certezas: Será uma eleição marcada por vincadas divisões, mais profundas que apenas questões ideológicas, e também por um sistema eleitoral arcaico que nem sempre reflete a vontade popular.
Os Estados Unidos da América (EUA) são uma potência mundial, mas enfrentam um sistema eleitoral peculiar que pode levar um Presidente a ser eleito pelo colégio eleitoral e não pela maioria dos votos expressos em urna. Esta realidade democrática norte-americana revela as fraquezas de um modelo eleitoral que persiste antiquado num mundo moderno, e que promove ainda mais incertezas e sedimenta a evidente divisão deste país ao meio.
Mas vamos avaliar a incerteza que começa o seu final na madrugada de hoje. Desde o papel dos latinos e o impacto das declarações racistas de um convidado do ex-Presidente Donald Trump, os ziguezagues políticos da atual Vice-Presidente Kamala Harris, a tensão sobre o tema do aborto, o apoio feminino, a fidelidade do eleitorado Republicano a Trump, a “bolha política” e o papel nada isento das redes sociais e… havia tanto mais a dizer.
Comecemos.
O ex-Presidente Donald Trump “arriscou” há dias, em Nova Iorque, e levou a comício um humorista que literalmente chamou Porto Rico de “ilha de lixo flutuante”. Perdeu apoios na hora. Mas sobretudo ficou evidente a reação negativa de muitos eleitores latinos, fossem apoiantes democratas ou republicanos, na sua generalidade. Os latinos foram maioritariamente solidários com os porto-riquenhos que se viram alvo de racismo básico e primitivo no comício republicano.
Esse assunto trouxe a debate vários dados estatísticos que demonstram uma comunidade latina que tem uma presença significativa em Estados decisivos como a Pensilvânia. E estes eleitores latinos reagiram desfavoravelmente a este ou qualquer outro tipo de discurso republicano segregador. Esse episódio sem humor refletiu bem, muito bem até, a complexidade que é – politicamente – alcançarmos a unidade no seio do eleitorado latino, que, embora diverso, tem suas sensibilidades comuns.
Paralelamente, temos diariamente a divisão social norte-americana em torno do caso da revogação do direito ao aborto, mais conhecido naquele continente por “Roe vs. Wade” que expôs um abismo entre o Partido Republicano e uma parte significativa do eleitorado feminino e independente. A vantagem neste tópico é claramente do Partido Democrata. Se há tema em que Kamala Harris não tem uma opinião hoje e outra amanhã (e em vários tópicos nem opinião clara tem), é sobre o direito das Mulheres ao Aborto nos EUA. A preferência pelo direito ao aborto foi recentemente mais que evidenciada nos Estados tradicionalmente conservadores, demonstrando ainda que o movimento pró-vida do Partido Republicano pode estar já desligado de uma maioria que se opõe a restrições severas ao aborto.
Agora, em contra-ponto com este tema do aborto em que os Democratas levam vantagem popular, vejamos um ponto evidente também de vantagem do Partido Republicado. O nível de lealdade do eleitorado republicano a Donald Trump é uma evidência. Podemos ver nestas semanas que várias figuras históricas dos republicanos, e alguns ex-líderes ou dirigentes com responsabilidade na história deste partido político, optaram por apoiar publicamente Kamala Harris ou dizer que vão abster-se de votar em Trump. Essas movimentos e sinais políticos podem parecer um sinal de fraqueza no apoio a Trump, mas não se pode subestimar o chamado “voto envergonhado” dos eleitores conservadores que, apesar das reservas, preferem manter o status quo como os números de várias sondagens têm demonstrado. No voto envergonhado e na fidelidade eleitoral interna, vantagem evidente para a pouca dúvida que cairá em Donald Trump.
E a “bolha política” e as redes sociais, como é?
Hoje, a América que vota em Harris vê uma realidade completamente diferente da que vota em Trump, parecem dois mundos dentro do mesmo país.
Cada um dos lados (Democrata e Republicano) consome informações que reforçam suas perceções e ideias, o algoritmo – esse famoso “político virtual” que é sempre o culpado de qualquer mau resultado eleitoral – ajuda, dizem, a criar realidades totalmente diferentes. Porém, mais do que aparece no TikTok, Facebook ou outras redes, sobretudo a desinformação e a propaganda digital, exacerbadas pela mudança de diretrizes do Twitter (agora X) sob Elon Musk – apoiante público de Donald Trump – e pela complacência de outras plataformas digitais, criam “bolhas” que isolam os eleitores de uma visão plural. Isto não beneficia ninguém. Muito menos quem quer ser corretamente informado com factos, propostas políticas e reais medidas de cada candidato. Essa fragmentação comunicacional, que é real e não virtual, questiona-nos até que ponto o processo democrático nos EUA reflete uma sociedade verdadeiramente informada e consciente de em quem vai votar.
Porém, há uma parte norte-americana que demonstra bem a “bolha” de ausência de literacia financeira. A questão económica é fundamental para os eleitores, e muito bem, especialmente considerando as pressões na carteira dos eleitores daquele grande país no pós-pandemia.
Hoje, os dados das sondagens e estudos de opinião demonstram que a maioria dos eleitores deseja seguir o discurso populista e tanto ou quanto demagogo do ex-Presidente Trump que refere que a administração Biden retirou poder de compra aos norte-americanos quando, sendo honestos, a questão não pode ser colocada assim. A inflação teve mais poder na carteira dos eleitores do que a administração Biden. Porém, e as televisões ajudam a ouvir da própria boca dezenas – para não dizer centenas – de norte-americano dizem que preferem Trump porque querem uma economia melhor. Será assim?
Há várias questões que demonstram um desequilíbrio que confere certeza à incerteza. O que quero dizer com isto: As sondagens “têm razão”, ou seja, é impossível prever com clareza quem será eleito Presidente.
Nesta terça-feira, 5 de novembro de 2024, mais de 74 milhões de norte-americanos já votaram antecipadamente através de votos por correio ou presencialmente, representando quase metade do total de votos registrados em 2020. É um grande número. Os resultados dependerão crucialmente de sete estados-chave, os ditos “swing states”: Michigan, Pensilvânia, Wisconsin, Arizona, Geórgia, Nevada e Carolina do Norte.
É importante referir que os resultados podem não ser conhecidos na noite de hoje.
Vários Estados não podem começar a contar votos por correio até o dia da eleição, o que pode prolongar o processo de apuração dos resultados. E sabendo que “por um se ganha ou por um se perde”, a declaração oficial do vencedor pode levar horas, dias ou até semanas, dependendo da competitividade da disputa eleitoral norte-americana.
A eleição norte-americana é decidida pelo Colégio Eleitoral, composto por 538 delegados, o que coloca a fasquia para a eleição presidencial nos 270 votos eleitorais. É este o número mágico que Harris e Trump querem para ser eleitos. Como é número par, existe a possibilidade de um empate, uma situação rara, mas prevista na Constituição e na Lei eleitoral dos EUA.
Para termos noção, que pouco se tem falado disto, mas é possível, caso o colégio eleitoral não chegue a uma decisão ao nível dos delegados (empate, aliás, já aconteceu – e logo por três vezes: nas eleições de 1800, de 1824 e de 1836), será o novo Congresso, que tomará posse só a 2 de janeiro, que decidirá quem será o próximo Presidente dos EUA.
Esse mecanismo, que remonta aos primórdios da democracia norte-americana, pode levar a um cenário bizarro em que Presidente e Vice-presidente sejam de partidos opostos, caso as maiorias no Senado e na Câmara sejam diferentes. Temos consciência disto? Este desfecho improvável seria mais uma camada de complexidade num sistema eleitoral que já dá sinais de estar ultrapassado há algum tempo…
Em caso de empate no colégio eleitoral, como já ocorreu 3 vezes no passado, o processo de decisão tem de seguir as regras constitucionais específicas. Ou seja: a Câmara dos Representantes votaria para escolher o Presidente, mas de forma peculiar – cada Estado teria direito a apenas um voto (totalizando 50 votos), independentemente do número de representantes que possua. Simultaneamente, o Senado seria responsável por eleger o Vice-Presidente, com cada Senador a ter direito a um voto. Todo este processo tem de estar concluído até ao dia 20 de janeiro de 2025, data constitucional para a posse do novo Presidente dos Estados Unidos da América. Se até lá não houver decisão, entra em vigor a linha sucessória de emergência: o líder da Câmara dos Representantes assumiria temporariamente a Presidência ou, na sua impossibilidade, o cargo passaria para o Presidente pro tempore do Senado… ui, o que seria.
Enfim, veremos. Para o bem da democracia americana, que não seja preciso empate e haja resultados claros e aceitação dos mesmos por parte de ambos os candidatos. Que não haja apoiantes de Donald Trump a duvidar de resultados ou vestígios de apoiantes de Hillary Clinton que, em menor escala, também o duvidaram no seu tempo.
Para o resto do mundo, o impacto destas eleições vai além das fronteiras norte-americanas. Uma administração de Kamala Harris provavelmente traria uma abordagem mais alinhada com as agendas progressistas globais, mais segura de linguagem política até, enquanto uma nova vitória de Trump e uma repetição de uma administração sua significaria uma continuidade das políticas mais protecionistas e, quiçá, de isolamento. Independentemente do resultado, os EUA sairão desta eleição ainda mais divididos e com cada vez mais questões sociais sobre a sua identidade enquanto nação. O desafio para o/a próximo/a Presidente será não apenas governar, mas também unificar uma nação profundamente polarizada.
As questões económicas, as tensões raciais, a política externa e a integridade do próprio processo democrático norte-americano (e não só) vão estar no centro das atenções de todos nos próximos quatro anos. O mundo observa atentamente. Estamos todos conscientes de que quaisquer decisões tomadas em Washington têm repercussões globais. Enquanto aguardamos os resultados, uma coisa é certa: estas eleições vão marcar um ponto de inflexão na história americana e, por extensão, na história mundial. Por curiosidade saibamos que Kamala Harris, aos 59 anos, poderá ser a primeira Mulher, assim como a primeira pessoa de ascendência sul-asiática a servir como Presidente dos EUA. Também Donald Trump, aos 78 anos, poderá ser o Presidente mais velho da história a ser eleito, terminando hipoteticamente o então seu mandato aos 82 anos.
Boa sorte, Estados Unidos da América. Bem precisa, enquanto país, para combater o país dividido a meio que temos assistido. Que vença a democracia.