Joana Marques Vidal. Voa na tua nuvem de ternura escondida

Joana Marques Vidal. Voa na tua nuvem de ternura escondida


1955-2024. Foi a primeira mulher Prucuradora Geral da República.


São tantos os meus mortos. Cada vez mais na minha vida. Insuportável, a senhora da gadanha, leva um a um os meus amigos. Já não escrevo obituários, escrevo eubituários, porque a cada dia que passa vou ficando mais pobre, mais triste. Ainda não chegou o momento de me sentir conformado porque recuso o conformismo. «Tudo que cessa é morte, e a morte é nossa/Se é para nós que cessa. Aquele arbusto/Fenece, e vai com ele/Parte da minha vida», escreveu Pessoa em nome de Ricardo Reis. A Joana não era um arbustro. Era uma rosa. Tinha pétalas e espinhos. Joaninha, como todos lhe chamávamos. Não me lembro quando a conheci. Conhecia-a toda a minha vida. Era capaz de brusquidão, que aqueles que não a conheciam podiam tomar como rasgos de autoridade. Precisava de a ter num mundo que foi de homens e agora parece invadido por mulheres por todas as portas e janelas. Era-lhe necessária porque assumiu cargos e posições que provocavam invejas e desagradaram muita gente. Morava nela, no entanto, uma doçura específica e conhecia profundamente todos os quartos da casa da amizade.

Não escrevo com objectividade, claro!, Seria impossível fazê-lo. Escrevo com mágoa porque a soube doente e para lá do que poderia ser a minha ajuda ou o meu conforto. Sofreu pelos vistos muito e não merecia esse sofrimento. Escrevo com saudades porque, apesar da diferença de idade, recordo os tempos passados com ela e com os seus irmãos, em Pedaçães, na casa de seus pais, ali à beira de Águeda, terra dos meus avós, minha terra, tão maltratada que tem sido por gerações que destruíram o seu encanto de Águeda-a-Linda, tal como lhe chamou Adolfo Portela. Ou seja, éramos conterrâneos. mas unía-nos mais do que isso. Havia os ideais, a abordagem da Justiça, a sensação de que havia muito para fazer e muito do que foi feito passou pelas suas mãos desde que se tornou magistrada do Ministério Público em 1979, logo no ano seguinte a ter concluído o curso de Direito na Universidade de Lisboa. Começou a carreira como delegada nas comarcas de Vila Viçosa, passando depois pelo Seixal e por Cascais. Foi vogal do Conselho Superior do Ministério Público e, já enquanto procuradora, coordenou os magistrados do Ministério Público do Tribunal de Família de Menores de Lisboa, entre 1994 e 2002. Nos dois anos seguintes, foi diretora-adjunta do Centro de Estudos Judiciários (CEJ). Tínhamos desde há muito uma entrevista combinada. Ficou por fazer. E ela tinha tanto para contar. Era apaixonada e nunca o escondeu quando se tratava de falar da defesa de ideais, da proteção dos menos favorecidos e, sobretudo, das crianças e da especificidade da forma como eram tratadas por uma sociedade visceralmente ferida por clivagens muitas vezes absurdas e incompreensíveis. Ah! Sim. A Joaninha conseguia pôr o dedo nas feridas. Fê-lo sempre. Sem receio e pouco preocupada com aquilo que gostamos de chamar, com uma quase inexpressiva vaidade, a imagem pública. Estava acima dos cargos. Esteve sempre acima dos cargos.

Maria Joana Raposo Marques Vidal nasceu em Coimbra, na freguesia de Santa Cruz, no dia 31 de Dezembro de 1955. Era filha de José Marques Vidal, também ele magistrado do Ministério Público que passou pelas comarcas de Arouca, Ovar e Porto e foi juiz de direito nas comarcas da Moimenta da Beira e São Pedro do Sul; depois exerceu o lugar de procurador da República em Viseu, de onde transitou para a Procuradoria-Geral da República, em Lisboa onde ocupou os cargos de auditor jurídico em vários ministérios, foi membro do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral, membro eleito do Conselho Superior do Ministério Público e vice-procurador-geral, tendo sido também secretário geral do Ministério da Justiça, diretor-geral da Justiça e diretor-geral da Polícia Judiciária durante seis anos. A mãe era também Joana, Maria Joana Lobo de Portugal Sanches de Morais Ribeiro Raposo, a tia Joaninha para todos aqueles pelos quais distribuiu a sua meiguice e a sua doçura. Sobrevivem-lhe quatro irmãos, o João, igualmente magistrado, que foi diretor do DIAP de Aveiro e um dos procuradores do Face Oculta, o Zé, o António Pedro (Tó-Pê) e o Luís.

Lutou durante toda a sua vida profissional, no início ainda num Ministério Público que não andava em roda livre como este dos dias que correm. Aliás era com nítido orgulho que afirmou numa entrevista no final do seu mandato como procuradora-geral da República, primeira mulher a ocupar o cargo abrindo a porta para a sua tão pobre sucessora: «Pus a máquina a funcionar no caminho de modernização do Ministério Público. E o Ministério Público não voltará atrás, não voltará a ser como foi!». Não pôde adivinhá-lo. «Famous last words». Não foi preciso esperar muito para que, depois da sua saída, tratassem de destruir a credibilidade do seu trabalho. A sua não recondução no cargo terá sido um dos maiores erros da vigência de António Costa como primeiro-ministro. A instituição degradou-se violentamente com Lucília Gago, politizou-se e está hoje sob o escrutínio de todos os que sentem que as suas liberdades individuais não são respeitadas por via de uma relação impúdica com certos órgãos de comunicação social que divulgam todas as intervenções levadas a cabo sob as ordens de procuradores pouco preocupados com a destruição gratuita da imagem dos visados.

Os casos que passaram pelas mãos de Joana Marques Vidal foram muitos e vários deles fortemente mediáticos. De repente, aqueles que pensávamos serem intocáveis, protegidos por uma Justiça com um olhar sobranceiro perante anónimos e condescendente perante os poderosos, deixaram de o ser. A Operação Marquês, iniciada em 2014, que investigou a simplicidade com que mais de 23 milhões de euros foram transferidos da Suíça para Portugal por Carlos Santos Silva, amigo de infância do antigo primeiro-ministro José Sócrates, e a promiscuidade das transferências das contas de um para a do outro, foi provavelmente a mais difícil. O caso prossegue molemente, preso nas malhas de uma burocracia judicial com tiques de fascismo, mas pela primeira vez a opinião pública viu-se perante uma realidade que não era prática até então. Depois de ter iniciado as suas funções com a modernização do Ministério Público, dotando-o de ferramentas informáticas e avançando para a digitalização de processos, Joana Marques Vidal deixava a sua marca indelével no edifício da justiça portuguesa. Noutra entrevista, concedida à SIC, não se coibiu de comentar: «Estou surpreendida com a dimensão da corrupção em Portugal. Somos um país onde o problema da corrupção tem uma dimensão que é urgente atacar. Tem de ser encarada como uma questão essencial do Estado de direito democrático. Penso que politicamente a resposta não é eficaz, tem sido muito superficial. Não há uma estratégia nacional contra a corrupção. Não só na resposta judiciária, estou a falar da dimensão cultural e da rejeição que deveria haver por parte de todos».

As investigações foram surgindo quase em fila indiana. Havia indícios sérios em relação a políticos e magistrados. A corrupção infiltrara-se até dentro dos órgãos aos quais cabia erradica-la. José Sócrates foi detido e nunca Portugal assistira à detenção de um político de tamanha envergadura. Seguiram-se os processos do Universo Espírito Santo, dos Vistos Gold (que envolveram o ex-ministro Miguel Macedo), da Operação Fizz (com o procurador Orlando Figueira e arranhando as relações com Angola), do caso Tancos (que envolveu o ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes) ou da Operação Lex contra o então juiz Rui Rangel. Sim, nem juízes escaparam. Algo que vinha a dar razão à procuradora-Sem-Medo quando se espantava com o nível de corrupção em que Portugal havia caído.

Foi Aníbal Cavaco Silva, como Presidente da República, que a nomeou procuradora-geral em 12 de outubro de 2012, para um mandato de seis anos. Foi Marcelo Rebelo de Sousa, como Presidente da República que a agraciou com a Grã Cruz da Ordem Militar de Cristo, «por destacados serviços prestados no exercício das funções em cargos de soberania ou Administração Pública, e na magistratura e diplomacia, que mereçam ser especialmente distinguidos». A Joaninha não precisava de condecorações. Foi condecorada à nascença com um coração bondoso, com uma forma muito sua, às vezes quase tímida, de demonstrar a amizade e o carinho. Tinha, aliás, até em relação à sua ascendência de nobreza um toque de humor muito próprio. Tê-lo-á herdado do pai, mas mais sereno, mais requintado, muito menos agressivo. O poder, deixava-o à beira do caminho, o seu e o dos outros: «Provavelmente porque como não vejo nenhum poder como sagrado, necessariamente nunca vi assim o poder masculino. Sempre vivi com a noção perfeita de que o poder é precário, uma coisa efémera. Hoje está-se num cargo de poder, amanhã não, e não é por aí que devemos reger a nossa vida. Aprendi-o com os meus pais e é uma maneira de estar na vida». Mas não se reduza a sua carreira à Procuradoria-Geral da República. Teve tempo para mais durante os 68 anos que viveu, vendo bem tão curtos perante o que ainda tinha para viver. Meteu um pé nos Açores enquanto exerceu funções como auditora jurídica do representante da República para a Região Autónoma e, ao mesmo tempo, do Ministério Público no Tribunal de Contas da secção regional em Ponta Delgada. Foi igualmente presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima e vice-presidente da Associação Portuguesa para o Direito dos Menores e da Família já que era especialista nesse ramo do Direito. Participou nas comissões legislativas que redigiram a Lei Tutelar Educativa e as alterações ao diploma que regula a adoção.

A última vez que estive com ela foi no funeral do meu pai. Tinham ambos uma grande consideração um pelo outro. Não faltou porque ela era assim, de não faltar. Canalha, o cancro atacou pela calada. Depois foi operada e apanhou uma septicémia por conta da cirurgia, dizem as notícias sem sentimentos. Faz-me falta. Há muita gente que me faz falta mesmo que não seja obrigatório falarmos todos os dias. Faz-me falta na vida e no mundo. Gostava de a saber por cá e que, no Natal ou na Páscoa, nos encontraríamos em Águeda, geralmente na Lótus, e podíamos conversar e prometer almoços que raramente cumpríamos. Fiquei mais pobre e não sei viver na pobreza dos amigos que se vão. Adeus Joaninha. Voa na nuvem da tua ternura escondida.