Martinet, um náufrago sem lugar

Martinet, um náufrago sem lugar


“A grande vida” de Jean-Pierre Martinet é um pequeno livro que a editora Cutelo atirou, como um petardo de riso e trevas, para as estantes das livrarias. Uma novela escrita numa linguagem fervorosa sobre um mundo coberto de borralho como uma fogueira apagada


Num mundo excitado até à desfiguração, nenhuma vontade aparece que não seja um mero capricho, um devaneio na ebulição que nos devora, uma névoa dentro de outra névoa. Eliot alertou-nos que o mundo não terminaria com um estrondo, mas num gemido. E se o mundo, recusando-se a dar a ver o momento da sua extinção, já tiver acabado, se a devastação não estiver à nossa frente, mas à nossa volta? Então, a obsessão com o fim, as suas infinitas representações, são meras distrações do deserto onde vivemos. “Sobre um barco que naufraga, anota Armel Guerne, o pânico surge de toda a gente, sobretudo os marinheiros, falarem obstinadamente a língua da navegação; e ninguém falar a língua dos naufrágios.” Seria preciso reconhecer a desolação, situá-la no nosso tempo, traçar-lhe os traços com precisão. Aprender a fisionomia do desastre, retratar os sinais da erosão, nos gestos, nos rostos, nas coisas. A ruína não é uma mera extinção das coisas, mas um esvaziamento que subjuga a possibilidade de um começo. Na novela “A grande vida”, editada pelas edições Cutelo, de Jean-Pierre Martinet, seguimos os passos de Adolphe Marlaud numa ratoeira onde as saídas de emergência dão para o vazio, como disse Guégan. Numa das ruas mais desoladas de Paris, entre o cemitério e a loja de artigos funerários. Um cadafalso que é apesar de tudo o seu lugar, “Há mais de quinze anos que a Rua Froidevaux era a minha prisão. Eu era um detido modelo. Se era frequente queixar-me da minha condição, o facto é que nunca me revoltava. Não procurava evadir-me.(…) deslocava-me nela como no interior de mim próprio.” Para onde fugiria do que não cessa de acontecer? Pior do que viver numa prisão é não saber que se está numa. Principalmente não se deixar perder no delírio da esperança. Nada leva mais depressa à morte no deserto do que o fascínio de uma ilusão. O romance “Jérôme” de Martinet começa da seguinte forma: “A Solange repetia-me frequentemente, nos últimos tempos, como quase todos os anos em meados de abril, que em breve teríamos de desconfiar da doçura do ar. Acima de tudo, não ceder a ela, não se deixar levar pela nostalgia do amor e das carícias, porque senão estamos fodidos. Fodidos, percebes Jérôme? A sua voz chegava-me abafada e distante, como a de alguém que já tinha morrido, mas cada palavra se gravava na minha memória. Sim, continua ela, é melhor respirar o fedor dos canais, pelo menos, com a sua água podre e toda a imundície que transportam, não mentem. Que a primavera morra, que não volte mais.”

Adolphe Marlaud é um homem que exerce o que parece ser o seu único privilégio, o desaparecimento. Desejar o menos possível, viver o menos possível, “de bom grado teria dado tudo o que possuía para me tornar num homem invisível ou num singelo fantasma.” Sem sentimentos que o protejam de ser abalroado, é atravessado pelos acontecimentos, pelo que resta da noite, sem se deixar fascinar. Na sala de espera que é a Rua Froidevaux não há fronteira entre a morte e a vida. Uma morgue, chama-lhe, é o lugar do seu exílio, entre os mortos e os vivos, muito mais certos os primeiros do que os segundos. “Morrer é proibido. Repetem incessantemente, é preciso viver, é preciso viver(…) Não sei. Para mim a vida é apenas um rumor ao longe, uma visão tão imprecisa como um sonho.” escreve no seu primeiro romance. O mundo tornou-se um espectro, um acumular de marcas e sinais, uma vida que se prolonga depois de tudo ter acabado. Adolphe é cinzento, diz-nos duas vezes, uma ao começo: “à força de passar rente aos muros do cemitério tinha-lhes ganho a cor.” outra para o fim da novela: “No entanto, se se quisesse podia-se caminhar junto às pedras acizentadas, como eu”, um tom quase neutro, como o fumo, o pó e a parede… cinzento pedra, rato, como a névoa e o céu de Paris. O cinzento é imperdoável, exilado do pensamento distributivo. Sujo demais para alcançar algum tipo de perdão das instituições que reivindicam o branco como distintivo. Desmaiado demais para que a noite o engula. Gerhard Richter descreve-nos de um traço os principais atributos de Adolphe: “Para mim, o cinzento é o acolhedor e único equivalente possível para a indiferença, o não compromisso, a ausência de opinião, a ausência de forma. Mas o cinzento, tal como a ausência de forma e o resto, só pode ser real enquanto ideia e, por isso, tudo o que posso fazer é criar uma nuance de cor que significa cinzento mas não o é.”

A passividade nunca é suficientemente passiva, há sempre um resto, algo que escapa. A única vez que Adolphe se mostra um ser desejante é quando nos fala da loja de artigos fúnebres onde trabalha. As jovens viúvas, debruçadas sobre o outro reino, arrancavam-no do torpor. Com uma sagacidade incomparável, Martinet, revela-nos a sua paixão pela língua, como a tradição que o vivifica atravessa o corpo do seu personagem. No único parágrafo em que o desejo de Adolphe surge, liga-o de modo copioso à literatura. “Citava Bossuet, o meu autor preferido.(…) Obtinha erecções fabulosas.” e, quando a jovem viúva o aconselhou a reler o “Tratado da Concupiscência” ficou extático de surpresa: “A verdade numa alma e num corpo” de que falava Rimbaud era então isto?”. Bossuet não aparece apenas porque as orações fúnebres se enquadram ao lugar onde o engate acontece, mas, como escrevera Valéry:”Na ordem dos escritores, não vejo ninguém acima de Bossuet, ninguém mais seguro das suas palavras, mais forte nos seus verbos, mais enérgico e mais flexível em todos os actos do discurso, mais corajoso e mais feliz na sintaxe e, em suma, mais senhor da língua, isto é, de si próprio […] Bossuet diz o que quer. Ele é essencialmente voluntário, como todos os chamados clássicos. Ele procede por construção, enquanto nós procedemos por acidente; ele especula sobre a expetativa que cria, enquanto os modernos especulam sobre a surpresa.” Martinet foi um crítico severo da corrente vigente na altura, dos salões e do clube liderado por Sollers, nunca teve nenhum interesse em entrar no meio cultural, muito pelo contrário, bastaria ler umas páginas de “Jérôme” para ver como os pintava a todos: “Esses depósitos de merda que se tomam por deuses. Sacos de mijo de sangue de esperma. Sargaço também. Com aquela carne macia e vulnerável que lhes dá palmadinhas e lhes cobre os ossos. Mas quase sempre sorrateiros, ignorantes e odiosos, apesar do seu cheiro marinho e do seu cabelo fino de algas.” A única tradição que lhe interessa, a que lhe dá tusa, como a Adolphe, é a que o electrifica, a carne viva da língua, de Bossuet a Faulkner, não de um modo estéril, mas aquela com que se debate, com a qual se destrói e se constrói. Se continua a não ser bem recebido, é porque realiza sem pedir permissão o que o seu muito amado Bossuet pergunta: “Ser-me-á permitido abrir hoje um túmulo perante o Tribunal, e será que olhos tão delicados não se ofenderão com tão fúnebre objecto?”

Este homem que se subtrai à gravidade, que quase não pesa sobre a terra, vai fatalmente atrair uma mulher-colosso, como nas leis do magnetismo um corpo neutro atraí um corpo carregado. Madame C. a mulher planeta, esse corpo turbulento como o oceano, a devoradora. Sôfrega de apetite, faz dele um homem-falo, desembaraça-se da necessidade do seu desejo, sem precisar do seu entusiasmo, engole-o na sua neutralidade. É raptado, como em pequeno quando foi apanhado por uma grua. Ela é o globo “de onde sobe continuamente um fumo espesso, os vapores negros que se elevam das paixões tenebrosas, e que nos escondem o céu e a luz.”(Bossuet), o contrapeso daquele que fez de si um nada. “Compreendia o terror dos habitantes de Pompeia quando a lava do Vesúvio caíra sobre eles.” O que ganhou a cor dos mortos era agora sepultado nessa “campa escancarada, tenebrosa, vagina de ogre, túmulo de sono e de noite, noite dos pântanos, pântanos do silêncio, silêncio de morte.” de onde saía como se voltasse a nascer para o meio dos destroços, expulso, “sozinho no soalho como um rei deposto,” entregue à mudez das coisas que restam. Não há saída para o exilado. A tentativa de desaparecer só o leva a sofrer menos, não para escapar ao que está irremediavelmente fechado. Ninguém está imune ao desastre universal. “O cancro do tempo comeu-nos a todos.” diz Martinet.

O humor desvela a miséria do homem, a miséria do homem despoleta o humor. “Instalado no bem-estar da sua queda, que fará depois? Poderá escolher entre duas formas de salvação: a fé e o humor.”(Cioran). Adolphe está destinado ao humor, sem qualquer hipótese de salvação. É um sobrevivente do fim do mundo, e isso é algo que se recusa a todos os sentidos que lhe queiramos dar. Atolado num presente sombrio, resta-lhe gerir a sua decomposição. No livro do Apocalipse, Deus refere-se aos indiferentes nos seguintes termos: “Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca.” Mas, o mundo que se segue à catástrofe, é o mundo onde o divino limpou a boca e deu em debandada. Quando não há mais nada, há uma ironia amarga. A grande vida começa depois, onde riso e o desespero se misturam, onde as forças se sobrepõem sem porquê.