Eletrificação dos consumos: uma necessidade urgente


Podemos ter um problema de falta de consumo já em 2030, se não forem tomadas medidas tendentes a promover a eletrificação dos consumos, nomeadamente nos transportes.


O Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC), na sua mais recente revisão de junho de 2023, propõe metas ainda mais ambiciosas para a incorporação de Fontes de Energia Renováveis (FER) no Sistema Elétrico Nacional (SEN), no horizonte de 2030. Por exemplo, objetiva-se uma meta de 14.9 GW de solar Fotovoltaico (FV) centralizado face aos atuais 2.6 GW de 2023 (multiplicação por um fator de quase 6) e mais do que duplicar a potência eólica passando dos 5.4 GW de 2023 para 12.4 GW em 2030. Embora o ritmo de instalação atual de FER possa ser considerado insuficiente, estes planos ambiciosos vão, naturalmente, no bom sentido, porque visam a imperiosa necessidade de descarbonizar o SEN. No entanto, eles só consideram metade da fotografia.

Com a instalação de toda esta potência de origem renovável, a potência instalada no SEN passará de 21 GW (2023) para 47 GW (2030) e, admitindo que o regime de produção é o mesmo de 2023, esta potência produzirá praticamente o dobro da energia elétrica que produziu em 2023. E aqui chegamos ao outro lado da questão: é preciso arranjar consumo elétrico para toda esta energia produzida. A opção de exportar para Espanha não é a solução, não só porque não haveria capacidade de interligação suficiente, mas, principalmente, porque Espanha também está a apostar fortemente na instalação de FER e, por isso, tem o mesmo problema do que Portugal.

Onde poderá estar esse consumo de que tanto precisamos? Para além do consumo “natural” da economia, das famílias e das empresas, há a considerar os consumos não convencionais das centrais hidroelétricas com bombagem, dos veículos elétricos (VE), dos eletrolisadores para produção de hidrogénio (H2), de baterias, de novos grandes consumidores, com projetos em desenvolvimento. Convém salientar que o auto consumo residencial, de serviços e industrial, que está a ser promovido no âmbito do foto voltaico de pequena dimensão instalado nos telhados dos edifícios, contribui para a redução do consumo a ser abastecido pelo SEN, o que vem em sentido contrário do que se pretende.

Para avaliar a dimensão do problema, vamos ilustrar com dois casos de estudo, começando com uma simulação simples. Suponhamos que o ano de 2023 se repete em 2030 em termos de regime de produção das várias fontes. Admitamos que o consumo é o previsto nos documentos oficiais, isto é, o Relatório de Monitorização e Segurança do Abastecimento do SEN 2024-2040 (RMSA-E 2023), publicado pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) com dados fornecidos pela Redes Energéticas Nacionais (REN), que é o operador da rede de transporte. Dos vários cenários de evolução do consumo analisados no documento, escolhamos o Cenário Central Conservador (CCC) que assume crescimentos moderados da economia, da eficiência energética, dos VE, e uma progressão mais lenta do auto consumo. Nesta situação, teríamos uma energia elétrica em excesso de cerca de 55% do consumo “natural”, o que é um valor considerável, que se afigura excessivo para ser totalmente usado em bombagem de água, produção de H2, baterias e exportado para Espanha, mesmo considerando um grande aceleramento destes consumos.

Para endereçar o problema de um ponto de vista científico, uma equipa do Instituto Superior Técnico realizou um estudo em que, partindo de pressupostos semelhantes e usando modelos e ferramentas adequados, teve como objetivo avaliar as necessidades de potência flexível em 2030. Primeiramente, calculou-se a carga residual, isto é, o consumo subtraído da produção não flexível (FV, eólica, hidroelétricas de fio-de-água, cogeração), tendo-se concluído que existia, dependendo das horas do ano, um excesso de energia de 42% e um déficit de 22%, ambos referidos ao consumo “natural”, em 2030. Em seguida, introduziram-se as soluções de flexibilidade: hídrica com albufeira com e sem bombagem, produção de H2 com eletrolisadores, baterias e interligações, todas operadas na sua máxima capacidade. Consideraram-se capacidades otimistas das soluções de flexibilidade, nomeadamente nas baterias, e considerou-se que estas soluções estavam integralmente dedicadas ao serviço da estabilidade do SEN, ignorando-se condições de mercado, o que são considerações bastante otimistas e que não ocorrerão. No final, apesar de toda a boa vontade colocada no estudo, ainda se obteve um valor de energia sobrante de 4% do consumo “natural” em 2030, que não foi possível despachar, e que constitui um problema.

Estes dois exemplos mostram que podemos ter um problema de falta de consumo já em 2030, se não forem tomadas medidas tendentes a promover a eletrificação dos consumos. Isto passa, por exemplo, pela eletrificação dos transportes, não só os ligeiros de passageiros, que tem de ser incentivada, mas também os transportes coletivos, transporte de mercadorias, e mesmo, navios e aviões, utilização de bombas de calor elétricas no aquecimento residencial e comercial, uso de fornos de indução e maquinaria elétrica na indústria, equipamentos agrícolas elétricos. E, principalmente, temos de ser mais ambiciosos na introdução de eletrolisadores e tornar-nos um ator principal no mercado emergente do hidrogénio. O estudo do Técnico considerou uma potência instalada de eletrolisadores de 2.9 GW em 2030 (Cenário Conservador do RMSA-E 2023), mas temos de ambicionar ter os 8 GW previstos no Cenário Ambição. Só assim teremos condições para fechar o ciclo da descarbonização, atuando simultaneamente do lado da produção, onde estamos bem posicionados, e do lado do consumo, onde estamos muito atrasados, considerando os valores residuais atuais de baterias e eletrolisadores instalados no SEN.

Professor do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e Computadores do Instituto Superior Técnico e investigador
do INESC-ID

Eletrificação dos consumos: uma necessidade urgente


Podemos ter um problema de falta de consumo já em 2030, se não forem tomadas medidas tendentes a promover a eletrificação dos consumos, nomeadamente nos transportes.


O Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC), na sua mais recente revisão de junho de 2023, propõe metas ainda mais ambiciosas para a incorporação de Fontes de Energia Renováveis (FER) no Sistema Elétrico Nacional (SEN), no horizonte de 2030. Por exemplo, objetiva-se uma meta de 14.9 GW de solar Fotovoltaico (FV) centralizado face aos atuais 2.6 GW de 2023 (multiplicação por um fator de quase 6) e mais do que duplicar a potência eólica passando dos 5.4 GW de 2023 para 12.4 GW em 2030. Embora o ritmo de instalação atual de FER possa ser considerado insuficiente, estes planos ambiciosos vão, naturalmente, no bom sentido, porque visam a imperiosa necessidade de descarbonizar o SEN. No entanto, eles só consideram metade da fotografia.

Com a instalação de toda esta potência de origem renovável, a potência instalada no SEN passará de 21 GW (2023) para 47 GW (2030) e, admitindo que o regime de produção é o mesmo de 2023, esta potência produzirá praticamente o dobro da energia elétrica que produziu em 2023. E aqui chegamos ao outro lado da questão: é preciso arranjar consumo elétrico para toda esta energia produzida. A opção de exportar para Espanha não é a solução, não só porque não haveria capacidade de interligação suficiente, mas, principalmente, porque Espanha também está a apostar fortemente na instalação de FER e, por isso, tem o mesmo problema do que Portugal.

Onde poderá estar esse consumo de que tanto precisamos? Para além do consumo “natural” da economia, das famílias e das empresas, há a considerar os consumos não convencionais das centrais hidroelétricas com bombagem, dos veículos elétricos (VE), dos eletrolisadores para produção de hidrogénio (H2), de baterias, de novos grandes consumidores, com projetos em desenvolvimento. Convém salientar que o auto consumo residencial, de serviços e industrial, que está a ser promovido no âmbito do foto voltaico de pequena dimensão instalado nos telhados dos edifícios, contribui para a redução do consumo a ser abastecido pelo SEN, o que vem em sentido contrário do que se pretende.

Para avaliar a dimensão do problema, vamos ilustrar com dois casos de estudo, começando com uma simulação simples. Suponhamos que o ano de 2023 se repete em 2030 em termos de regime de produção das várias fontes. Admitamos que o consumo é o previsto nos documentos oficiais, isto é, o Relatório de Monitorização e Segurança do Abastecimento do SEN 2024-2040 (RMSA-E 2023), publicado pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) com dados fornecidos pela Redes Energéticas Nacionais (REN), que é o operador da rede de transporte. Dos vários cenários de evolução do consumo analisados no documento, escolhamos o Cenário Central Conservador (CCC) que assume crescimentos moderados da economia, da eficiência energética, dos VE, e uma progressão mais lenta do auto consumo. Nesta situação, teríamos uma energia elétrica em excesso de cerca de 55% do consumo “natural”, o que é um valor considerável, que se afigura excessivo para ser totalmente usado em bombagem de água, produção de H2, baterias e exportado para Espanha, mesmo considerando um grande aceleramento destes consumos.

Para endereçar o problema de um ponto de vista científico, uma equipa do Instituto Superior Técnico realizou um estudo em que, partindo de pressupostos semelhantes e usando modelos e ferramentas adequados, teve como objetivo avaliar as necessidades de potência flexível em 2030. Primeiramente, calculou-se a carga residual, isto é, o consumo subtraído da produção não flexível (FV, eólica, hidroelétricas de fio-de-água, cogeração), tendo-se concluído que existia, dependendo das horas do ano, um excesso de energia de 42% e um déficit de 22%, ambos referidos ao consumo “natural”, em 2030. Em seguida, introduziram-se as soluções de flexibilidade: hídrica com albufeira com e sem bombagem, produção de H2 com eletrolisadores, baterias e interligações, todas operadas na sua máxima capacidade. Consideraram-se capacidades otimistas das soluções de flexibilidade, nomeadamente nas baterias, e considerou-se que estas soluções estavam integralmente dedicadas ao serviço da estabilidade do SEN, ignorando-se condições de mercado, o que são considerações bastante otimistas e que não ocorrerão. No final, apesar de toda a boa vontade colocada no estudo, ainda se obteve um valor de energia sobrante de 4% do consumo “natural” em 2030, que não foi possível despachar, e que constitui um problema.

Estes dois exemplos mostram que podemos ter um problema de falta de consumo já em 2030, se não forem tomadas medidas tendentes a promover a eletrificação dos consumos. Isto passa, por exemplo, pela eletrificação dos transportes, não só os ligeiros de passageiros, que tem de ser incentivada, mas também os transportes coletivos, transporte de mercadorias, e mesmo, navios e aviões, utilização de bombas de calor elétricas no aquecimento residencial e comercial, uso de fornos de indução e maquinaria elétrica na indústria, equipamentos agrícolas elétricos. E, principalmente, temos de ser mais ambiciosos na introdução de eletrolisadores e tornar-nos um ator principal no mercado emergente do hidrogénio. O estudo do Técnico considerou uma potência instalada de eletrolisadores de 2.9 GW em 2030 (Cenário Conservador do RMSA-E 2023), mas temos de ambicionar ter os 8 GW previstos no Cenário Ambição. Só assim teremos condições para fechar o ciclo da descarbonização, atuando simultaneamente do lado da produção, onde estamos bem posicionados, e do lado do consumo, onde estamos muito atrasados, considerando os valores residuais atuais de baterias e eletrolisadores instalados no SEN.

Professor do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e Computadores do Instituto Superior Técnico e investigador
do INESC-ID