Livro de Feitiços


É fácil fazer uma analogia entre a Escola de Magia e Feitiçaria de Hogwarts e uma escola de engenharia. Ambas recebem alunos com imenso potencial, quer sejam filhos de feiticeiros ou de Muggles, mas é o trabalho com os professores e com os colegas que os levam ao domínio dos processos de fazer magia.


Faz no próximo mês 27 anos que foi publicada a primeira edição do livro “Harry Potter e a Pedra Filosofal”. Apesar da quase inexistente campanha de publicidade da editora Bloomsbury, o primeiro livro da série Harry Potter foi um estrondoso sucesso graças ao passa-palavra entre os jovens leitores. No Natal de 1997, seis meses após a publicação, foi-lhe atribuído o prémio Nestlé Smarties Book Prize por votação dos leitores com idades entre os 9 e os 11 anos. Foi por esta altura que alguns colegas britânicos me falaram deste livro que estava a atrair os jovens de novo para a leitura. Curioso com o fenómeno, e apesar do meu filho mais velho ter na altura apenas dois anos, encomendei o livro para mim próprio.

Recordo-me que uma das ideias mais extraordinárias que encontrei neste livro foi a da necessidade de uma escola para feiticeiros. Nas histórias de fantasia que conhecia, os poderes sobrenaturais ou eram inatos ou obtidos pelo acesso indevido a um livro de feitiços de um mago menos cuidadoso. Neste aspeto, o livro é uma pérola para um educador. Não basta ler as palavras mágicas do livro usado pelo professor Flitwick, é preciso dizer o “Wingardium leviosa” com um “gar” lento e suave e não esquecer o movimento de pulso rápido e seco da mão que segura a varinha. É fácil fazer uma analogia entre a Escola de Magia e Feitiçaria de Hogwarts e uma escola de engenharia. Ambas recebem alunos com imenso potencial, quer sejam filhos de feiticeiros ou de Muggles, mas é o trabalho com os professores e com os colegas que os levam ao domínio dos processos de fazer magia.

O escritor, futurista e inventor Arthur C. Clarke expressou bem a ligação entre magia e tecnologia na sua terceira lei: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia”. Os modelos de linguagem de grande escala, conhecidos como LLMs e de que o ChatGPT é um exemplo, são o caso mais recente de uma tecnologia que parece magia. Estes programas de computador que, para facilitar, chamarei de IA, não se comportam como os outros que conhecemos: têm um comportamento estranhamente parecido com o de uma pessoa. Em vez dos menus e botões a que está habituado, nestes programas tem de usar um texto, chamado de prompt, para instruir a resposta que pretende obter, indicando a tarefa, pergunta ou contexto específico que produza um resultado coerente e relevante para si.

Apesar de ninguém ter uma visão completa sobre o potencial destes modelos de IA, parece claro que irão ter, ou já têm, capacidade para fazer uma grande parte do nosso trabalho. Foi esta preocupação que levou Ethan Mollick, um professor de inovação e de empreendedorismo da Universidade da Pensilvânia, a escrever o livro “Co-Intelligence: Living and Working with AI”. Um dos conceitos que introduz no livro é o da “fronteira irregular”, a linha invisível que separa as tarefas que a IA realiza com facilidade e confiança, daquelas que faz de forma errada ou incerta. Por exemplo, estes modelos geram com facilidade um poema, mas dificilmente produzem um texto com um número exato de palavras. É importante que identifique os limites da fronteira irregular nas suas áreas de atividade. A experiência mostrará as tarefas em que o apoio de um modelo de IA é eficaz e aquelas em que dará mais trabalho do que proveito.

Uma das estratégias que deve usar com estes modelos é a de definir a personalidade que este deverá assumir para dar a resposta pretendida. Como são treinados com grandes quantidades de texto, os modelos de IA tendem a responder de forma genérica e impessoal. Se atribuir ao modelo uma persona, dando no contexto diferentes elementos pessoais, obterá respostas mais interessantes. Se for uma professora poderá usar diferentes personas para representar os seus diferentes tipos de alunos, por exemplo: “Tu és o João, um estudante do 12º ano, tens algumas dificuldades em matemática, mas vais ajudar a tua professora a preparar uma aula sobre probabilidade condicionada.”

A forma de trabalhar com IA também depende do tipo de tarefa que pretende realizar. Há as chamadas tarefas centauro onde a separação do trabalho da pessoa e da máquina se pode fazer com bastante clareza. Pode, por exemplo, escolher os métodos estatísticos a usar, ficando a IA responsável pela sua aplicação ao conjunto de dados e representação gráfica dos resultados. Há outras tarefas que necessitam de uma maior colaboração entre o humano e o tecnológico. Por exemplo, poderá começar por pedir à IA exemplos de frases para iniciar um parágrafo. Dessas escolhe a que lhe servirá de base para escrever o seu parágrafo. Pode depois solicitar alternativas de reescrita em diversos estilos onde se baseará para dar a forma final. Mollick dá o nome de tarefas ciborgues às que necessitam destas alternâncias, que correspondem a travessias da “fronteira irregular”.

O processo de desenvolver as instruções para o modelo de IA, chamado de engenharia do prompt, pode exigir várias iterações. Em cada versão deve verificar se o resultado está correto e é útil, se precisa de dar mais contexto ou de impor restrições adicionais para ter uma resposta mais explícita. Quando o resultado for satisfatório valerá a pena guardar o texto dos seus prompts num documento que poderá voltar a usar numa tarefa semelhante ou para servir de base a um novo prompt. É comum chamar aos arquivos de prompts como grimório, ou livro de feitiços.

A última das quatro regras de Mollick para a co-inteligência é assumir que o modelo de IA que está a usar será o pior que alguma vez usará. O rápido progresso da tecnologia dos LLMs faz prever que muitas das limitações atuais serão brevemente ultrapassadas. Esta regra lembra-nos que a IA irá ser capaz de fazer cada vez mais tarefas, anteriormente consideradas como sendo exclusivas dos humanos. É, por isso, importante aproveitar já todos os seus benefícios apanhando cedo este comboio. Poderá fazê-lo na plataforma 9 e 3/4 da estação de Santa Apolónia.

Professor do Instituto Superior Técnico

Livro de Feitiços


É fácil fazer uma analogia entre a Escola de Magia e Feitiçaria de Hogwarts e uma escola de engenharia. Ambas recebem alunos com imenso potencial, quer sejam filhos de feiticeiros ou de Muggles, mas é o trabalho com os professores e com os colegas que os levam ao domínio dos processos de fazer magia.


Faz no próximo mês 27 anos que foi publicada a primeira edição do livro “Harry Potter e a Pedra Filosofal”. Apesar da quase inexistente campanha de publicidade da editora Bloomsbury, o primeiro livro da série Harry Potter foi um estrondoso sucesso graças ao passa-palavra entre os jovens leitores. No Natal de 1997, seis meses após a publicação, foi-lhe atribuído o prémio Nestlé Smarties Book Prize por votação dos leitores com idades entre os 9 e os 11 anos. Foi por esta altura que alguns colegas britânicos me falaram deste livro que estava a atrair os jovens de novo para a leitura. Curioso com o fenómeno, e apesar do meu filho mais velho ter na altura apenas dois anos, encomendei o livro para mim próprio.

Recordo-me que uma das ideias mais extraordinárias que encontrei neste livro foi a da necessidade de uma escola para feiticeiros. Nas histórias de fantasia que conhecia, os poderes sobrenaturais ou eram inatos ou obtidos pelo acesso indevido a um livro de feitiços de um mago menos cuidadoso. Neste aspeto, o livro é uma pérola para um educador. Não basta ler as palavras mágicas do livro usado pelo professor Flitwick, é preciso dizer o “Wingardium leviosa” com um “gar” lento e suave e não esquecer o movimento de pulso rápido e seco da mão que segura a varinha. É fácil fazer uma analogia entre a Escola de Magia e Feitiçaria de Hogwarts e uma escola de engenharia. Ambas recebem alunos com imenso potencial, quer sejam filhos de feiticeiros ou de Muggles, mas é o trabalho com os professores e com os colegas que os levam ao domínio dos processos de fazer magia.

O escritor, futurista e inventor Arthur C. Clarke expressou bem a ligação entre magia e tecnologia na sua terceira lei: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia”. Os modelos de linguagem de grande escala, conhecidos como LLMs e de que o ChatGPT é um exemplo, são o caso mais recente de uma tecnologia que parece magia. Estes programas de computador que, para facilitar, chamarei de IA, não se comportam como os outros que conhecemos: têm um comportamento estranhamente parecido com o de uma pessoa. Em vez dos menus e botões a que está habituado, nestes programas tem de usar um texto, chamado de prompt, para instruir a resposta que pretende obter, indicando a tarefa, pergunta ou contexto específico que produza um resultado coerente e relevante para si.

Apesar de ninguém ter uma visão completa sobre o potencial destes modelos de IA, parece claro que irão ter, ou já têm, capacidade para fazer uma grande parte do nosso trabalho. Foi esta preocupação que levou Ethan Mollick, um professor de inovação e de empreendedorismo da Universidade da Pensilvânia, a escrever o livro “Co-Intelligence: Living and Working with AI”. Um dos conceitos que introduz no livro é o da “fronteira irregular”, a linha invisível que separa as tarefas que a IA realiza com facilidade e confiança, daquelas que faz de forma errada ou incerta. Por exemplo, estes modelos geram com facilidade um poema, mas dificilmente produzem um texto com um número exato de palavras. É importante que identifique os limites da fronteira irregular nas suas áreas de atividade. A experiência mostrará as tarefas em que o apoio de um modelo de IA é eficaz e aquelas em que dará mais trabalho do que proveito.

Uma das estratégias que deve usar com estes modelos é a de definir a personalidade que este deverá assumir para dar a resposta pretendida. Como são treinados com grandes quantidades de texto, os modelos de IA tendem a responder de forma genérica e impessoal. Se atribuir ao modelo uma persona, dando no contexto diferentes elementos pessoais, obterá respostas mais interessantes. Se for uma professora poderá usar diferentes personas para representar os seus diferentes tipos de alunos, por exemplo: “Tu és o João, um estudante do 12º ano, tens algumas dificuldades em matemática, mas vais ajudar a tua professora a preparar uma aula sobre probabilidade condicionada.”

A forma de trabalhar com IA também depende do tipo de tarefa que pretende realizar. Há as chamadas tarefas centauro onde a separação do trabalho da pessoa e da máquina se pode fazer com bastante clareza. Pode, por exemplo, escolher os métodos estatísticos a usar, ficando a IA responsável pela sua aplicação ao conjunto de dados e representação gráfica dos resultados. Há outras tarefas que necessitam de uma maior colaboração entre o humano e o tecnológico. Por exemplo, poderá começar por pedir à IA exemplos de frases para iniciar um parágrafo. Dessas escolhe a que lhe servirá de base para escrever o seu parágrafo. Pode depois solicitar alternativas de reescrita em diversos estilos onde se baseará para dar a forma final. Mollick dá o nome de tarefas ciborgues às que necessitam destas alternâncias, que correspondem a travessias da “fronteira irregular”.

O processo de desenvolver as instruções para o modelo de IA, chamado de engenharia do prompt, pode exigir várias iterações. Em cada versão deve verificar se o resultado está correto e é útil, se precisa de dar mais contexto ou de impor restrições adicionais para ter uma resposta mais explícita. Quando o resultado for satisfatório valerá a pena guardar o texto dos seus prompts num documento que poderá voltar a usar numa tarefa semelhante ou para servir de base a um novo prompt. É comum chamar aos arquivos de prompts como grimório, ou livro de feitiços.

A última das quatro regras de Mollick para a co-inteligência é assumir que o modelo de IA que está a usar será o pior que alguma vez usará. O rápido progresso da tecnologia dos LLMs faz prever que muitas das limitações atuais serão brevemente ultrapassadas. Esta regra lembra-nos que a IA irá ser capaz de fazer cada vez mais tarefas, anteriormente consideradas como sendo exclusivas dos humanos. É, por isso, importante aproveitar já todos os seus benefícios apanhando cedo este comboio. Poderá fazê-lo na plataforma 9 e 3/4 da estação de Santa Apolónia.

Professor do Instituto Superior Técnico