‘Ambiente na AR nunca foi tão doentio’

‘Ambiente na AR nunca foi tão doentio’


O ambiente na Assembleia da República está agreste, mas noutros tempos houve outras tempestades. Antigos deputados garantem que o que mudou foi a educação. Será?


O ambiente na Assembleia da República está irrespirável? O tema está na ordem do dia e os sinais de mal-estar acentuaram-se desde que, na semana passada, uma afirmação de André Ventura sobre o povo turco provocou fortes críticas, não só ao deputado do Chega, mas, sobretudo, ao presidente da Assembleia da República (PAR), José Pedro Aguiar-Branco, que se recusou a ser o «censor dos deputados».

«Os turcos não são conhecidos por serem o povo mais trabalhador do mundo…». Esta foi a frase proferida por André Ventura, num debate sobre o novo aeroporto de Lisboa. A ausência de uma advertência por parte do PAR foi o gatilho para os partidos à esquerda no Parlamento desencadearem uma onda de críticas a Aguiar-Branco e de queixas sobre o ambiente pesado que se vive por estes dias nos corredores da casa da democracia.

Para agravar o ambiente já crispado, Isabel Moreira, deputada do Partido Socialista, veio a público denunciar que, quando passam junto à bancada do Chega, ou mesmo nos corredores de São Bento, várias deputadas, entre as quais a própria Isabel Moreira, são alvo de ofensas e enxovalhos. A deputada diz que os impropérios são proferidos entre dentes e quando não há outras testemunhas, razão pela qual ainda não houve queixas formais.

Desde que foi feita a denúncia, a discussão instalou-se em definitivo no espaço público e os deputados do Chega e o próprio André Ventura já vieram desmentir que fossem os autores das referidas ofensas, reclamando para si o estatuto de ofendidos, já que estão constantemente a ser alvo de acusações no plenário e fora dele.

A novidade é a ‘falta de educação’

Ouvidos pelo Nascer do SOL, Nuno Magalhães, ex-líder parlamentar do CDS, e José Manuel Pureza, ex-líder parlamentar do Bloco de Esquerda, confirmam que os tempos estão diferentes e que a nova aritmética em São Bento justifica em parte o que se está a passar.

Para Nuno Magalhães, no entanto, a maior fragmentação no Parlamento e o peso da bancada do Chega, não justificam tudo e em particular a falta de cultura e de tolerância democrática. «O ambiente começou a degradar-se a partir de 2015», diz o antigo deputado centrista, que esteve na Assembleia da República durante duas décadas. «Até 2015 havia uma capacidade de diálogo e de compromisso que se verificava da esquerda à direita», refere Nuno Magalhães, que a título de exemplo conta como um dia fez um entendimento com o então líder da bancada comunista que estabelecia que os deputados do CDS não se referiam às bancadas do PCP e do BE como ‘extrema-esquerda’ e a esquerda também não se referia aos centristas como ‘extrema-direita’. «Foi um entendimento que fizémos e que interessava aos dois». Nessa altura, refere o ex-deputado, havia uma regulação que passava muito por «uma regulação dos líderes das bancadas» que segundo Nuno Magalhães desapareceu em 2015, muito por causa do processo que condiziu à ‘geringonça’ e que deixou marcas na Parlamento. A tudo isto junta-se a entrada de André Ventura, que, com o aumento de peso que tem vindo a registar de eleição para eleição, terá tornado tudo mais complicado e o ambiente mais agreste.

«Preocupa-me a despreocupação ao nível da urbanidade básica, a desqualificação do debate de propostas e a falta de educação». A frase é de José Manuel Pureza, que sublinha que no Parlamento «sempre houve debate rijo», o problema para o antigo deputado do Bloco não são tanto os décibeis, mas o tom e a forma.

José Manuel Pureza salvaguarda, no entanto, que a análise para quem está de fora pode ser enganadora. «O que vemos é uma seleção da realidade parlamentar, a vida na Assembleia da República vai muito para lá dessa realidade». O ex-deputado vê na aritmética parlamentar a principal razão para que o ambiente tenha mudado. Pureza diz que com a atual composição da Assembleia da República, é normal que haja mais tensão, uma tensão que atribui à dimensão da bancada do Chega e à própria estratégia do partido de André Ventura no hemiciclo, encontrando aí o espaço ideal para encenar mensagens ao seu eleitorado.

AR sempre foi palco de declarações fortes

De forma mais desapaixonada, ouvimos também esta semana o testemunho de alguns não deputados, que ao fim de muitos anos de vida parlamentar desdramatizam a gravidade do momento que se vive em São Bento.

Uma destas testemunhas lembra os tempos em que o deputado socialista Raul Rego «berrava quando ouvia alguma coisa de que não gostava e ninguém o conseguia calar». Este é apenas um de entre muitos exemplos de figuras ou episódios que noutros tempos poderiam ter levado a discussões e queixas como as que se ouvem por estes dias.

Os primeiros tempos de Francisco Louçâ no Parlamento, ou as célebres intervenções de Natália Correia ou até os ‘corninhos’ de Manuel Pinho, são muitos os episódios ou momentos em que, no passado, se poderia ter feito um alerta sobre o ambiente pesado na Assembleia da República.

Uma das vozes ouvida pelo Nascer do SOL lembra a tentativa do antigo deputado social-democrata Pacheco Pereira, que propôs limitar os movimentos dos jornalistas no espaço da Assembleia da República, como um episódio que «pôs muito mais em causa o exercício da democracia do que o que aqui se passa hoje em dia». Nessa altura, refere, «aconteceu uma coisa inédita na nossa democracia, com uma greve de jornalistas que fez blockout ao Parlamento e quase colocou em risco as comemorações do 25 de Abril». O episódio que nos foi descrito como o mais grave que ocorreu até hoje na casa da democracia não tem qualquer paralelo com o ambiente que hoje se vive em São Bento: «Nessa altura, o próprio Presidente da República (Mário Soares) interveio para que se encontrasse uma solução».

Mas há ou não mais ofensas pessoais do que no antigamente, designadamente nos corredores da AR? Também aqui não encontrámos relatos claros. Uma das pessoas ouvidas pelo nosso jornal diz que, de facto, o «debate é mais truculento do que em anteriores legislaturas», mas este facto é atribuído à nova composição parlamentar e não a maiores ofensas ou desrespeitos. «Já ninguém se lembra do que os outros deputados faziam ao Acácio Barreiros (UDP). Sempre que ele falava riam-se dele».

Os muitos anos que as testemunhas que ouvimos levam de trabalho parlamentar ajudam a desdramatizar os acontecimentos dos últimos dias e, sobretudo, a repartir ou distribuir as culpas pelas várias bancadas.

O discurso de Isabel Moreira na semana passada foi altamente ofensivo para os deputados do Chega. No discurso que decorreu na semana passada aquando do debate sobre a proposta do partido de André Ventura para processar o Presidente da República, a deputada socialista que foi a relatora dos trabalhos da comissão constituída para avaliar a queixa do Chega, aproveitou para se dirigir aos deputados da bancada mais à direita do parlamento em tom provicador: «Uma valentia do tamanho de um pin mole e murcha, tímida. São todos muito valentes». A frase proferida do púlpito da Assembleia da República gerou sonoros protestos da bancada do Chega, mas, na altura, como no dia seguinte, quando Ventura se referiu ao povo turco, o presidente da Assembleia da República deixou o debate prosseguir, limitando-se apenas a acalmar os ãnimos. «E fez muito bem», referem-nos, defendendo que tudo aquilo faz parte da dialética parlamentar que sempre existiu em São Bento.

Em resumo, os que há muitos anos assistem aos trabalhos parlamentares, mas não participam neles, consideram que nada de anormal se está a passar e, que daqui a alguns anos, já ninguém se vai lembrar dos episódios dos últimos dias.

São também estes que em maioria consideram que Aguiar-Branco faz bem em não intervir demasiado, a menos que o caso seja mesmo grave, coisa que nenhuma das vozes por nós ouvida considerou ser o caso.

«Não há nenhum caos na Assembleia nem concordo com a ideia de que acabou a democracia», dizem-nos, ao mesmo tempo que criticam a sugestão de Aguiar-Branco para criar a figura do ‘voto de repúdio’. «Isso seria o caos na organização dos trabalhos e no final teria sempre que ser Aguiar-Branco a decidir».