Ventura, um pastor tresmalhado?


Pelas técnicas de comunicação que usa, o líder do Chega também daria um magnífico pastor evangélico à moda brasileira ou americana.


1. Não há dúvida que André Ventura é a vedeta nacional do momento. A sua popularidade é tal que nem os ataques dominicais do bobo do regime o afetam. Antes o fortalecem, coisa que ele agradece penhoradamente. Gozá-lo é dar-lhe força. André é único na política. Inteligente, culto, formado com distinção e sagaz, é oportunista no bom sentido. Chega e sobra para os adversários diretos. Percebe mais a dormir do que a maioria deles acordados e rodeados de consultores. Sabe onde está o nicho do momento. E avança sobre ele, adaptando o discurso. Está como o bacalhau especial para o paloco, não deixando de prometer fiel amigo a pataco. As recentes sondagens atiram o mestre André para os píncaros, incomodando os adversários institucionais, PS e PSD, ainda que a uma distância razoável. Obteve uma transformação profunda das tradicionais intenções de voto em pouco tempo. Ao contrário do PRD, com quem tentam compará-lo para alguns efeitos, o seu Chega não nasceu de um “complot” na Presidência da República. Nada disso! Ventura fez-se à estrada sozinho como dissidente do PPD/PSD. Criou um cisma e cismou na sua razão. O seu discurso, a sua atitude, a sua liderança é caudilhista. Ali, não há lugar para outro protagonista de topo. Ao longo do tempo, aumentou significativamente o número de seguidores. Tem uma linha própria que agora flexibilizou e reorientou com novos temas para chamar mais simpatizantes e potenciais eleitores. Precisa apenas de militantes e simpatizantes. Da doutrina do momento e da tática trata ele sozinho, percebendo o momento de lançar um tema ou de se colar a um estado de alma do cidadão comum. Religioso, André Ventura lembra, inevitavelmente, os pastores evangélicos americanos e brasileiros que abundam no mundo lusófono. Com as palavras certas, promessas sucessivas da vitória do bem sobre o mal, convence e agrega multidões discretas através das televisões e das redes sociais, que usa como ninguém em Portugal. As sondagens mostram-no bem. Os seus votantes tanto podem vir da esquerda pobre, da miséria envergonhada urbana, do operariado desempregado, como da direita confortável. Embora provavelmente muitos sejam antigos abstencionistas e indiferentes zangados. Um elemento revelador do crescimento de Ventura é a circunstância de quem tenciona dar-lhe o voto já não se sentir inibido de o dizer. Tal como os pregadores evangélicos, acha-se ungido pelo divino. Ele é o único detentor da verdade que proclama. Ali não há acólitos especiais nem se partilha palcos. Assegura que respondeu a um chamamento, o que ajuda a criar uma imagem de pureza e de missão. O político Ventura tem, porém, um problema óbvio. Ninguém que o rodeia se evidencia através da capacidade mínima para exercer funções de Estado. Verdade se diga que esse não é tema do momento, uma vez que o Chega cresce pelo protesto, o moralismo e a denúncia da sucessão de casos, casinhos e casões. E ainda beneficia de ser catapultado pela hostilidade militante que a comunicação social lhe dedica, através dos jornalistas. É uma inestimável boleia, como se viu em França com a família Le Pen. Se realmente andar perto dos 20% nas legislativas, Ventura vai evitar deixar-se condicionar. Não quererá integrar uma eventual coligação à direita. Um líder como ele não pode aceitar ir para o governo e sujeitar-se a um primeiro-ministro do PSD (talvez só a Passos Coelho). Seria suicidário perder o palco do Parlamento, que domina como ninguém, e ficar diretamente responsabilizado por uma governação que não dependa basicamente do seu egocentrismo. Não é jogo que lhe convenha. O seu desenho estratégico (atual) é obter uma votação que permita controlar e condicionar a governação através do uso do veto parlamentar que lhe facilite puxar ou dar linha, condicionando de fora. Como “trouble maker” do regime, Ventura vai provavelmente dar muitas dores de cabeça ao Presidente Marcelo, a partir da noite de 10 de março, se as sondagens estiverem certas. Seria um despique político entre os dois mais “expertos” do momento. A menos que os portugueses indecisos e alguns adeptos da estabilidade optem, inopinadamente, por dar a volta aos estudos e imponham uma estabilidade democrática. Foi o que fizeram há dois anos. Na altura resgataram António Costa da teia da geringonça, dando-lhe de bandeja uma maioria absoluta que ele deixou cair com estrondo.

2. Mais uma vez as sondagens foram desmentidas, com a vitória da AD nos Açores. Bolieiro e os seus aliados cresceram. Somaram mais votos do que tinham tido anteriormente, impondo uma derrota clara ao PS. Ficaram a apenas três assentos da maioria absoluta, que é de 29. Todavia, a AD só faz maioria parlamentar à direita com o Chega. Bolieiro e a AD querem governar sozinhos com a maioria relativa obtida. Para serem derrubados teria de haver uma aliança negativa PS/Chega, eventualmente com outros partidos. As eleições dos Açores não têm extrapolação direta para as legislativas, mas são um bálsamo para Luís Montenegro e a sua estratégia. O Chega foi quem mais cresceu, mas lá não é quem mais ordena. Ficar de fora durante um tempo pode permitir a Ventura continuar a amealhar descontentes regionais. Inviabilizar já a AD e forçar novas eleições teria provavelmente um efeito perverso para o Chega. Desde 1992 que o PSD não vencia nos Açores, na altura com Mota Amaral. Em síntese, Montenegro e Nuno Melo saíram por cima, o que lhes dá ânimo nacional. O Bloco perdeu um deputado, os comunistas ficam fora do parlamento regional e a maior derrota é dos liberais, que perdem peso político. Nada ganharam por deitar o governo abaixo. A IL está manifestamente em perda de credibilidade nacional por falta de estratégia e pelas suas violentas guerras intestinas.

3. Desde ontem decorrem os debates televisivos entre os líderes partidários, num período que se alonga até dia 21. Segue-se, a partir de 25, a campanha eleitoral oficial com regras mais rígidas, indo-se às urnas a 10 de março. O tempo entre a queda de um governo e a votação é saturante para o cidadão comum. Numa época em que a televisão e as redes sociais são dominantes na formação da opinião, os debates serão importantes na construção de soluções ou de impasses, embora não decisivos. Há sempre vários fatores externos que condicionam a opinião pública. Basta citar um: as ações da Justiça e o seu impacto mediático.

4. A simples evocação das eleições legislativas não se realizarem por uma ação de boicote policial, é arrepiante. A hipótese admitida por Armando Ferreira, um sindicalista sério e não extremista, foi uma figura de retórica, como bem sabe quem o conhece. Mas se o boicote sucedesse mesmo, o Estado teria meios de impedir tamanha ação antidemocrática. O certo é que já se viu pelo boicote de um jogo de futebol, através de auto-baixas fraudulentas, a violência que gera a falta da PSP e da GNR nas ruas. Mais certo ainda é que a responsabilidade da situação recai sobre António Costa e o PS, que andaram a endrominar polícias e guardas republicanos anos a fio. Semearam ventos e agora compete-lhes descalçar a bota.

5. Foi lamentável ver Mário Centeno antecipar-se a Fernando Medina para reclamar louros da descida da dívida pública para 98% do PIB. É de mau caráter. Centeno ajudou no seu consulado ministerial, como todos reconhecem. João Leão também e ficou calado. Outros ministros das finanças, anteriores ao atual governador do Banco de Portugal, fizeram o mesmo. Centeno mostrou que o Presidente Marcelo agiu bem ao rejeitá-lo para primeiro-ministro, como queria António Costa. Há perfis de tal modo egocêntricos que não são aconselháveis para a alta política.

6. Jornalista de referência do Expresso durante anos, fundador de uma das principais agências de comunicação do país, Miguel Almeida Fernandes iniciou-se no romance escrito. O Diplomata relata a história de amor entre dois jovens nos anos 80, período sobre o qual o autor faz uma reflexão oportuna. Percebe-se que aproveitou a sua passagem pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde foi chefe de gabinete de Jaime Gama, para se inspirar. Um primeiro passo bem-sucedido e imperdível.

Ventura, um pastor tresmalhado?


Pelas técnicas de comunicação que usa, o líder do Chega também daria um magnífico pastor evangélico à moda brasileira ou americana.


1. Não há dúvida que André Ventura é a vedeta nacional do momento. A sua popularidade é tal que nem os ataques dominicais do bobo do regime o afetam. Antes o fortalecem, coisa que ele agradece penhoradamente. Gozá-lo é dar-lhe força. André é único na política. Inteligente, culto, formado com distinção e sagaz, é oportunista no bom sentido. Chega e sobra para os adversários diretos. Percebe mais a dormir do que a maioria deles acordados e rodeados de consultores. Sabe onde está o nicho do momento. E avança sobre ele, adaptando o discurso. Está como o bacalhau especial para o paloco, não deixando de prometer fiel amigo a pataco. As recentes sondagens atiram o mestre André para os píncaros, incomodando os adversários institucionais, PS e PSD, ainda que a uma distância razoável. Obteve uma transformação profunda das tradicionais intenções de voto em pouco tempo. Ao contrário do PRD, com quem tentam compará-lo para alguns efeitos, o seu Chega não nasceu de um “complot” na Presidência da República. Nada disso! Ventura fez-se à estrada sozinho como dissidente do PPD/PSD. Criou um cisma e cismou na sua razão. O seu discurso, a sua atitude, a sua liderança é caudilhista. Ali, não há lugar para outro protagonista de topo. Ao longo do tempo, aumentou significativamente o número de seguidores. Tem uma linha própria que agora flexibilizou e reorientou com novos temas para chamar mais simpatizantes e potenciais eleitores. Precisa apenas de militantes e simpatizantes. Da doutrina do momento e da tática trata ele sozinho, percebendo o momento de lançar um tema ou de se colar a um estado de alma do cidadão comum. Religioso, André Ventura lembra, inevitavelmente, os pastores evangélicos americanos e brasileiros que abundam no mundo lusófono. Com as palavras certas, promessas sucessivas da vitória do bem sobre o mal, convence e agrega multidões discretas através das televisões e das redes sociais, que usa como ninguém em Portugal. As sondagens mostram-no bem. Os seus votantes tanto podem vir da esquerda pobre, da miséria envergonhada urbana, do operariado desempregado, como da direita confortável. Embora provavelmente muitos sejam antigos abstencionistas e indiferentes zangados. Um elemento revelador do crescimento de Ventura é a circunstância de quem tenciona dar-lhe o voto já não se sentir inibido de o dizer. Tal como os pregadores evangélicos, acha-se ungido pelo divino. Ele é o único detentor da verdade que proclama. Ali não há acólitos especiais nem se partilha palcos. Assegura que respondeu a um chamamento, o que ajuda a criar uma imagem de pureza e de missão. O político Ventura tem, porém, um problema óbvio. Ninguém que o rodeia se evidencia através da capacidade mínima para exercer funções de Estado. Verdade se diga que esse não é tema do momento, uma vez que o Chega cresce pelo protesto, o moralismo e a denúncia da sucessão de casos, casinhos e casões. E ainda beneficia de ser catapultado pela hostilidade militante que a comunicação social lhe dedica, através dos jornalistas. É uma inestimável boleia, como se viu em França com a família Le Pen. Se realmente andar perto dos 20% nas legislativas, Ventura vai evitar deixar-se condicionar. Não quererá integrar uma eventual coligação à direita. Um líder como ele não pode aceitar ir para o governo e sujeitar-se a um primeiro-ministro do PSD (talvez só a Passos Coelho). Seria suicidário perder o palco do Parlamento, que domina como ninguém, e ficar diretamente responsabilizado por uma governação que não dependa basicamente do seu egocentrismo. Não é jogo que lhe convenha. O seu desenho estratégico (atual) é obter uma votação que permita controlar e condicionar a governação através do uso do veto parlamentar que lhe facilite puxar ou dar linha, condicionando de fora. Como “trouble maker” do regime, Ventura vai provavelmente dar muitas dores de cabeça ao Presidente Marcelo, a partir da noite de 10 de março, se as sondagens estiverem certas. Seria um despique político entre os dois mais “expertos” do momento. A menos que os portugueses indecisos e alguns adeptos da estabilidade optem, inopinadamente, por dar a volta aos estudos e imponham uma estabilidade democrática. Foi o que fizeram há dois anos. Na altura resgataram António Costa da teia da geringonça, dando-lhe de bandeja uma maioria absoluta que ele deixou cair com estrondo.

2. Mais uma vez as sondagens foram desmentidas, com a vitória da AD nos Açores. Bolieiro e os seus aliados cresceram. Somaram mais votos do que tinham tido anteriormente, impondo uma derrota clara ao PS. Ficaram a apenas três assentos da maioria absoluta, que é de 29. Todavia, a AD só faz maioria parlamentar à direita com o Chega. Bolieiro e a AD querem governar sozinhos com a maioria relativa obtida. Para serem derrubados teria de haver uma aliança negativa PS/Chega, eventualmente com outros partidos. As eleições dos Açores não têm extrapolação direta para as legislativas, mas são um bálsamo para Luís Montenegro e a sua estratégia. O Chega foi quem mais cresceu, mas lá não é quem mais ordena. Ficar de fora durante um tempo pode permitir a Ventura continuar a amealhar descontentes regionais. Inviabilizar já a AD e forçar novas eleições teria provavelmente um efeito perverso para o Chega. Desde 1992 que o PSD não vencia nos Açores, na altura com Mota Amaral. Em síntese, Montenegro e Nuno Melo saíram por cima, o que lhes dá ânimo nacional. O Bloco perdeu um deputado, os comunistas ficam fora do parlamento regional e a maior derrota é dos liberais, que perdem peso político. Nada ganharam por deitar o governo abaixo. A IL está manifestamente em perda de credibilidade nacional por falta de estratégia e pelas suas violentas guerras intestinas.

3. Desde ontem decorrem os debates televisivos entre os líderes partidários, num período que se alonga até dia 21. Segue-se, a partir de 25, a campanha eleitoral oficial com regras mais rígidas, indo-se às urnas a 10 de março. O tempo entre a queda de um governo e a votação é saturante para o cidadão comum. Numa época em que a televisão e as redes sociais são dominantes na formação da opinião, os debates serão importantes na construção de soluções ou de impasses, embora não decisivos. Há sempre vários fatores externos que condicionam a opinião pública. Basta citar um: as ações da Justiça e o seu impacto mediático.

4. A simples evocação das eleições legislativas não se realizarem por uma ação de boicote policial, é arrepiante. A hipótese admitida por Armando Ferreira, um sindicalista sério e não extremista, foi uma figura de retórica, como bem sabe quem o conhece. Mas se o boicote sucedesse mesmo, o Estado teria meios de impedir tamanha ação antidemocrática. O certo é que já se viu pelo boicote de um jogo de futebol, através de auto-baixas fraudulentas, a violência que gera a falta da PSP e da GNR nas ruas. Mais certo ainda é que a responsabilidade da situação recai sobre António Costa e o PS, que andaram a endrominar polícias e guardas republicanos anos a fio. Semearam ventos e agora compete-lhes descalçar a bota.

5. Foi lamentável ver Mário Centeno antecipar-se a Fernando Medina para reclamar louros da descida da dívida pública para 98% do PIB. É de mau caráter. Centeno ajudou no seu consulado ministerial, como todos reconhecem. João Leão também e ficou calado. Outros ministros das finanças, anteriores ao atual governador do Banco de Portugal, fizeram o mesmo. Centeno mostrou que o Presidente Marcelo agiu bem ao rejeitá-lo para primeiro-ministro, como queria António Costa. Há perfis de tal modo egocêntricos que não são aconselháveis para a alta política.

6. Jornalista de referência do Expresso durante anos, fundador de uma das principais agências de comunicação do país, Miguel Almeida Fernandes iniciou-se no romance escrito. O Diplomata relata a história de amor entre dois jovens nos anos 80, período sobre o qual o autor faz uma reflexão oportuna. Percebe-se que aproveitou a sua passagem pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde foi chefe de gabinete de Jaime Gama, para se inspirar. Um primeiro passo bem-sucedido e imperdível.