Os gloriosos ‘malucos’ do deserto no Rali Dakar

Os gloriosos ‘malucos’ do deserto no Rali Dakar


O Dakar sempre foi uma prova única. As equipas oficiais procuram a glória, mas houve também quem tivesse enfrentado dunas esmagadoras e a dureza da África negra com carros e motos incríveis só pelo prazer da aventura. Há histórias inacreditáveis que José Megre tão bem definiu como ‘visões dakarianas’.


O Dakar 2024 começa hoje em Al Ula, na Arábia Saudita. Os 778 concorrentes têm pela frente um percurso de 7.891 quilómetros, dos quais 4.727 são feitos ao cronómetro ao longo de 15 dias. A edição deste ano recupera um pouco do espírito original do Paris-Dakar com uma etapa maratona de quase 600 quilómetros, sem assistência, e com uma noite passada do deserto do Empty Quarter, uma das zonas mais inóspitas do mundo, com dunas a perder de vista, e onde praticamente não há vida. Nada melhor do pegar neste exemplo para regressar às origens da prova, que mais do que uma competição é uma aventura humana. O Paris-Dakar ganhou notoriedade com a presença das grandes marcas, mas foram os aventureiros dos tempos modernos que tornaram a prova um mito pela sua ousadia, coragem e determinação, nalguns casos com resultados inacreditáveis.

A primeira edição em 1979 atravessou cinco países (França, Argélia, Nigéria, Mali e Senegal) ao longo de 19 extenuantes dias e 10.000 quilómetros. As grandes equipas ainda não tinham descoberto o Dakar e foram os destemidos pilotos amadores que deram “sumo” à prova em tecnologias de ponta como GPS e com recurso à navegação à vista, os irmãos Claude e Bernard Marreau apresentaram-se à partida com o franzino Renault 4L e ficaram conhecidos pelas “Raposas do Deserto”.  Gastaram 700 horas e uma boa parte do orçamento na preparação do 4L Sinpar. Para agravar a situação, a taxa de inscrição deixou-os com apenas 1.000 francos para tentar chegar a Dakar. O carro tinha o motor do Renault 5 Alpine de competição com 140 cv, transmissão 4×4, chassis reforçado, amortecedores verticais presos ao chassis, depósito de combustível extra montado no porta-bagagens e linha de escape por cima do tejadilho. Foram a grande surpresa da prova ao vencerem uma etapa e terminarem em 2.º entre os automóveis e 5.º na classificação conjunta de auto, motos e camiões.

Uma das histórias mais extraordinárias aconteceu com os motards Bernard Simonot e Yvan Tcherniavsky que, em 1980, levaram duas Vespa P200 de Paris até Dakar, atravessaram sete países e percorreram 10.000 quilómetros. As pequenas scooters da Piaggio tinham um motor de 200 cc modificado, pneus adequados para o deserto e um depósito de combustível suplementar atrás do banco do piloto. Simonot e Tcherniasvsky chegaram ao Lago Rosa, em Dakar, no 28.º e 30.º lugares na classificação de motos e não foram os últimos. Os pilotos tiveram a assistência de cinco Land Rover conduzidos por pilotos conceituados.

Entre as participações mais excêntricas está a de Thierry De Montcorgé, que alinhou com um Rolls Royce Corniche na edição de 1981. O francês apostou com os amigos em que seria capaz de fazer o Dakar com um dos seus luxuosos carros e esteve quase a ganhar a aposta. O Corniche foi adaptado para o deserto e teve de dispensar algum equipamento como o mini-bar. O motor V12 de 6.7 litros original foi trocado por um V8 3.5 da Chevrolet com 350 cavalos e recebeu um sistema de tração integral do Toyota Land Cruiser. Fez uma prova surpreendente, mas foi desclassificado por ter chegado 20 minutos atrasado ao controlo final quando lutava pelo 13º lugar da geral.

A edição de 1984 contou com o Jules Proto II, um estranho protótipo sem portas (as janelas abriam como escotilhas) com motor V8 de 350 cv e caixa de velocidade do Porsche 935. Embora tivesse seis rodas, apenas quatro eram de tração, já que o segundo eixo traseiro servia apenas para colocar peças de substituição. Desistiu no deserto do Sahara com o chassis partido. Em 2008, foi vendido num leilão por 65 mil euros. Uma das tentativas mais ambiciosas de completar o Dakar teve lugar em 2007, quando os irmãos Georges, Philippe e Gilles Marques alinharam com um Citröen 2 CV de 1963. Reforçaram o chassis e a suspensão e montaram dois motores do Citröen Visa que dava uma potência de 101 cv. A equipa desistiu devido a uma quebra na suspensão.

Outro carro a fazer sucesso foi o PanDakar conduzido por Giulio Verzeletti e Antonio Cabini na edição de 2017. O Fiat Panda 4×4 Cross tinha um motor diesel 2.0 de 180 cv e recebeu inúmeras modificações técnicas para participar da prova. Foi o primeiro modelo Fiat a terminar o rali mais icónico do mundo com quase 9.000 quilómetros.