“Fazer de Pai Natal não pode ser apenas vestir o fato e fazer adeus”

“Fazer de Pai Natal não pode ser apenas vestir o fato e fazer adeus”


Há mais de 20 anos que Severino Moreira e Fernando Matias vestem  o fato vermelho nesta altura  do ano para  ouvir os pedidos e desabafos das crianças que se sentam nos seus colos e, de olhos brilhantes, contemplam as suas barbas.


Nesta altura do ano, parece que tudo se transforma. Há quem diga que as pessoas ganham outra disposição, sorrindo umas para as outras ao passar, e se tornam mais solidárias. As ruas também parecem outras, mais iluminadas. Apesar do frio, o cheiro a castanhas aquece a alma, tal como as feiras de Natal que se espalham por todo o país. Esta é, sem dúvida, uma altura mágica, onde o imaginário voa e onde as crianças são as protagonistas. E, claro, que apesar do passar das décadas, a figura do velhote gordinho, vestido de vermelho, com umas longas barbas brancas, continua bastante viva na casa daqueles que fazem com que a sua história perdure no tempo. Mas quem são as pessoas por trás da fantasia? Por que é que esta atividade – fazer de Pai Natal – é tão prazerosa? Quais as histórias que ficam das crianças que se sentam no colo destes “avôzinhos” que ouvem pedidos e desabafos?

Cada vez menos Pais Natais Apesar de ser algo que todos os anos acontece em muitas cidades e vilas do país, parece que com o passar do tempo tem-se tornado cada vez mais difícil encontrar pessoas que se queiram dedicar à atividade. O setor de animadores de Pais Natais registou um crescimento de 30% na procura nos primeiros 20 dias de novembro, face ao mesmo período do ano passado, revelam dados da Fixando, que alerta para a falta de oferta no setor. Já em outubro houve um aumento de 33%, face a outubro de 2022, e as previsões da empresa indicam que, até ao final do mês, a procura possa atingir um aumento de 120%. No entanto, de acordo com o comunicado da empresa, em outubro, apenas 46% dos clientes conseguiram encontrar um Pai Natal disponível, em comparação com os 67% de 2022. E, em novembro, o cenário agravou-se, com apenas 31% dos clientes a conseguir encontrar um Pai Natal.

Tendo em conta os pedidos recebidos e as atuais taxas de resposta, as projeções da Fixando alertam para a necessidade de cerca de mais mil Pais Natais para dar resposta aos pedidos que o setor irá receber até ao final do ano: dos 550 especialistas que prestam este serviço através da Fixando, por exemplo, apenas 3% estão atualmente a aceitar novas marcações para esta época de Natal. Note-se que, face a 2022, o número de eventos de Natal planeados para dezembro aumentaram em 70% – uma consequência do fim da pandemia e do aumento de atividades e eventos.

Segundo Alice Nunes, diretora de novos negócios da Fixando, vestir-se de Pai Natal deveria ser visto como uma oportunidade de conseguir um rendimento extra. “Ser Pai Natal tornou-se uma oportunidade acessível pois, com apenas um fato, uma barba e gosto por crianças, é possível prestar estes serviços, sendo uma forma de conquistar um rendimento extra durante a época festiva”, explicou citada no comunicado, adiantando ainda que, em média, o setor paga 130 euros por serviço pela realização destes trabalhos.

O Pai Natal dos afetos Severino Moreira é capaz de ser o Pai Natal mais conhecido do país. Tem 74 anos e foi bancário durante 32. A par da sua atividade bancária – segundo o próprio, “era daquelas pessoas que fazia na vida o que não queria” –, foi locutor de rádio, correspondente de um jornal e também fazia muito teatro amador. “Estas atividades, parecendo que não, equilibravam-me emocionalmente. Na primeira oportunidade que tive de abandonar a banca, fi-lo. Pensei que nesse momento ia poder fazer um bocadinho aquilo que gosto”, começa por contar ao i. Entretanto, inscreveu-se em duas ou três agências, com as quais ainda trabalha, e começou a fazer figurações em novelas e filmes. “É disto que eu gosto. Fundamentalmente mantenho-me ocupado! Faz-me muita aflição pensar nas pessoas que não têm atividade nenhuma. Claro que vai chegar a minha vez. Quando me der uma forte, lá vou eu. Mas quando isso acontecer, vai ser uma grande tristeza para mim”. 

Esta “brincadeira” começou no seio familiar. “Eu sou o mais velho de nove irmãos. Em família, sempre festejámos ruidosamente o Natal. A dada altura alguém se lembrou que alguém tinha de fazer de Pai Natal. Eu como sempre usei barba – obviamente não esta que tenho agora, era um bocadinho mais pequena (o tipo de barba com que eu fazia o Capitão Iglu) –, escolheram-me a mim!”, continua. Quando começou, apenas usava um fato de treino vermelho e colocava um bocadinho de algodão na barba. Entretanto, quando se reformou e se inscreveu nas agências, teve a “grande sorte” de fazer um anúncio para uma empresa, como Pai Natal. “Depois o Colombo, como precisava de um Pai Natal, referenciou logo esse acontecimento e contratou-me. Há 23 anos que lá estou. No princípio não quis aceitar, porque não me via num centro comercial de dia tantas horas… Mas acabei por lhe ganhar o gosto! Ia lá ficar apenas um ano, mas estou lá até hoje! Gostei tanto da experiência. Continuo a adorar o contacto com as pessoas”, revela Severino, garantindo que as pessoas nem imaginam o que há de profundo na ligação que cria com quem o visita. “Elas ligam-se muito a isto. Tenho famílias que os filhos cresceram comigo”, acrescenta, admitindo que o que mais o comove neste momento são as jovens mães que aparecem com os seus bebés e que já tiraram fotos consigo no passado, quando elas próprias eram crianças. 

Interrogado sobre as histórias mais especiais, Severino afirma não conseguir escolher, já que todos os dias há muita magia nos encontros: “Tenho situações absolutamente hilariantes, outras reconfortantes, umas mais tristes e profundas”. Com a barba, por exemplo, tem várias. Às vezes, até tem de fazer esforço para não se rir. “Uma vez, um grupo de miúdos veio ter comigo. Um deles teimava perante os outros que a minha barba era natural. Os outros diziam que não. Esse que defendia que a barba era natural, chegou-se ao pé de mim e disse: ‘Oh Pai Natal, posso ver se a tua barba é natural?’. Eu deixo sempre… Ele pendurou-se em mim! Fiquei com a cara mal tratada! Queria confirmar!” conta Severino soltando uma grande gargalhada. 

Para si, os momentos mais insólitos são aqueles que se ligam a alguma violência familiar. “Acho que para aqueles que encontram alguma credibilidade nesta personagem, aquilo é um confessionário. ‘Pai Natal, quando fores lá a casa ralha com o meu pai para não bater mais na minha mãe’. Já ouvi coisas assim… No ano antes da pandemia, apareceu-me uma criança, que devia ter os seus quatro anos, que me disse: ‘Não me deixes ir para casa do meu pai!’. Perguntei-lhe porquê e ele respondeu-me que à noite ele não o deixava fechar a janela e que ficava frio. Ele não devia gostar de ir para casa do pai… O grande sofrimento que se gera é a minha incapacidade de fazer alguma coisa. A única coisa que posso fazer é proporcionar àquela menina ou menino, o melhor momento possível. Um momento de aconchego”, desabafa com a voz trémula. “Fazer de Pai Natal não pode ser apenas vestir o fato e fazer adeus. Aliás eu encontrei encanto nisto precisamente pelo contacto com as pessoas. As pessoas desabafam!”, sublinha Severino. Para si, é fácil contagiar as pessoas porque intimamente ele próprio vive intensamente o Natal. “O Pai Natal existe na missão. Eu encontro alguns resultados nisso”, reforça. 

E não são apenas as crianças que o procuram. “Tenho uma senhora com 80 e poucos anos que vem todos os anos tirar uma fotografia. No primeiro ano chegou-se ao pé de mim muito pouco à vontade. Depois acabou por se abrir. Não tinha dinheiro para dar prendas aos netos, por isso lembrou-se de fazer aquela gracinha. Os netos gostaram tanto que a oferta daquela fotografia passou a ser anual”, brincou, frisando que “na aparente superficialidade do que se vê, vão acontecendo coisas mesmo muito especiais”. “Também tenho pessoas que vêm de longe todos os anos religiosamente tirar a fotografia. Famílias inteiras, pessoas mais idosas. É muito bonito. Há um senhor que espera que os filhos cheguem do estrangeiro para virem todos ter comigo. São mais de 20! É muito emocionante”. 

Interrogado sobre os valores que se praticam neste mercado, Severino não quer falar de números, pois acha “muito deselegante”. Até porque faz muito voluntariado. “Mas costumo dizer: ‘Apontem-me um Pai Natal que tenha ficado rico a fazer isto’. Não há! Isso é uma treta! As pessoas é que às vezes se tentam sobrevalorizar e dizem coisas que não são verdade. Claro que já tive ofertas que se calhar as pessoas não acreditariam, mas é pontual! Não é norma! Eu não estou no Colombo de graça e claro que o que recebo me dá jeito, porque a minha reforma não é nada de especial, mas ninguém fica rico com isto. Eu não ganho nada pelas fotografias que tiram! As pessoas pensam que sim!”, afirma.

Sobre a falta de respostas à procura por Pais Natais”, este acredita que muita gente não está para deixar crescer a barba para, passado um ano, fazer de Pai Natal! Eu passo o ano todo com as barbas, isto dá-me um trabalho! Agora tornei-me assim!”, revela.

O Pai Natal dos rebuçados No concelho de Santiago do Cacém, Fernando Matias, de 75 anos, é uma cara conhecida de todos. “Sabe que normalmente os Pais Natais já são bem velhotes!”, começa por dizer, soltando uma pequena gargalhada. Fernando foi carteiro durante 37 anos. Começou a vestir-se de Pai Natal há 20 anos, por conta própria. “Comecei por andar pela cidade a oferecer rebuçados. Comprei uns três ou quatro quilos e andava a dar às pessoas, ao público nas ruas, dentro das lojas. Foi uma alegria”, afirma, reforçando que o fez porque gosta do contacto com as pessoas. “Nunca tinha feito nada parecido. A partir do segundo ou terceiro ano, arranjei um grupo de seis ou sete pessoas, com crianças incluídas, e durante um três ou quatro anos fazíamos isso”, continuou. Depois, a Câmara Municipal de Santiago do Cacém quis “agarrá-lo”. “Então, comecei a fazer por pedido deles”, disse. 

O que mais o fascina, tal como a Severino, é a alegria das crianças. “Para mim, as crianças são tudo. Na fase da pandemia, por exemplo, chorei muito sozinho, por não poder fazer a atividade. Sou um Pai Natal já conhecido. É muito bom para mim. Gosto de manter o imaginário vivo. Claro que há quem passe por mim e diga: ‘Qual Pai Natal qual quê!’. Mas eu ignoro!”, revela, garantindo que os próprios adultos também gostam. “Ultimamente temos estado privados de tanta coisa que nos faz feliz, o mundo está tão triste, isto faz falta. Espero andar por aqui muitos mais anos!”, deseja. Segundo Fernando, há cada vez mais pessoas que dizem às criancinhas que o Pai Natal não existe. “Isso acaba por desmotivar as pessoas que estão ou pensam entrar na atividade”. 

O que mais o desconcerta é quando recebe no colo crianças sem pais. “Não têm estrutura. Isso para mim é muito triste. Tento dar o amor que consigo. Dou os rebuçados que são só um miminho, mas as pessoas ficam felizes”, conta, frisando que nunca ganhou dinheiro com a atividade. “Se me oferecerem um bom almocinho aceito, mas de resto, não!”. 

“Eu sou quase dos únicos Pais Natais de barba própria! Começo a deixá-la crescer em abril/maio para que ela esteja perfeita nesta altura”, remata.