Nos anos a seguir à Segunda Guerra Mundial, o escritor francês Michel Carrouges escreveu um livro chave para entender a sobrevivência dos mitos no universo das máquinas, ao fazer uma das primeiras leituras conceptuais a partir da obra de Marcel Duchamp La mariée mise à nu par ses célibataires, même ou, simplesmente, O grande vidro (1915-1923), tratando-se de uma peça enigmática composta a partir de duas lâminas de vidro, uma sobre a outra, comparecendo na parte de cima uma figura abstracta, que seria a noiva, e na parte de baixo, uma porção de outras figuras (feitas de cabides, tecido e outros materiais), dispostas em círculo, ao lado de uma engrenagem (retirada de um moinho de café). A esta parte inferior, Duchamp designou-a por “máquina solteira”, e foi este o termo reivindicado por Carrouges como um fio condutor para a crítica literária no livro “As máquinas celibatárias”, publicado originalmente em 1954, em que o autor cataloga uma série de exemplos literários de máquinas impossíveis, inúteis, delirantes ou com dispositivos aparentemente incompreensíveis. São essas prodigiosas máquinas imaginárias que caem num vazio, e ficam por isso solteiras, sem filhos nem família, multiplicando apenas uma série de ficções nos intervalos da ciência. Desde autómatos e robôs, a androides, ciborgues, clones, máquinas de guerra, máquinas de sexo, etc.
Foi uma forma de agrupar uma série de elementos premonitórios da literatura no final do século XIX até meados do século XX. Este repertório literário abrangia autores como Franz Kafka, Raymond Roussel, Alfred Jarry, Guillaume Apollinaire, Jules Verne, Villiers de L'Isle-Adam, Irène Hillel-Erlanger, Adolfo Bioy Casares, Lautréamont e Edgar Allan Poe.
Na edição ampliada, que saiu em 1976, foi incluída uma breve correspondência entre Carrouges e Duchamp, sendo que, numa das cartas, este manifestava a sua admiração pela súbita e clara aproximação feita entre o dispositivo do grande vidro e aquele encontrado em Na Colónia Penal, de Kafka.
Estas máquinas celibatárias imaginadas por escritores e artistas correspondiam já a um certo anseio de que o engenho do homem fosse capaz de construir um aparelho que gira eternamente e sem esforço e que, na medida em que se apresenta como um duplo ou um substituto do esforço do homem, lhe permite aliviar-se de tarefas ingratas, e ser a base de um modelo que o libertaria da sua posição de subalternidade. Operando de forma imune às leis que regem o universo físico e fisiológico, estas máquinas representavam elas mesmas formas alucinadas do aparelho psíquico e do seu funcionamento, respondendo ao desejo do homem de escapar à usura e à degradação do tempo, garantindo a imortalidade ao recusar-se à procriação, e, portanto, a ser substituído. Se o próprio Freud viria a servir-se de um modelo mecânico para explicar a estrutura do “aparelho” psíquico, não é difícil enquadrar esse salto para uma actividade ininterrupta e imperturbável, que poderia devotar-se então a uma existência orientada para puros fins artísticos.
Num ensaio reunido no volume Sal Vertido, em 1988, Ernesto Sampaio lembrava que variantes de máquinas solteiras são os diversos maquinismos concebidos pelo homem ao longo da história para fazer arte, e vinca que já Jonathan Swift, ao imaginar um aparelho para compor frases aleatórias, se antecipara às ambições contemporâneas de certos investigadores que tentam produzir poemas ou obras plásticas por meio de computadores. Contudo, o momento crucial deste ensaio surge quando Sampaio nota que, superada a necessidade de procriar, “a máquina, no seu perfeito celibato, não pode ter outra função que não seja a de criar sem sentido, repetindo infinitamente o mesmo movimento, no meio de um mundo abandonado. Com estas máquinas, a arte torna-se um sucedâneo da vida recusada. Entregue a si própria, no autismo do seu circuito fechado, produz formas cujo risco e gratuitidade lhe conferem um estatuto estético.” A intuição de Sampaio leva-o a antecipar que esses aparelhos viessem a oferecer “o gozo narcisista de um prazer auto-erótico que combina a solidão (o celibato) e a repetição mecânica (a masturbação)”. O ensaísta vai mais longe e, a propósito da expressão “veuve”, com que Robert Muller qualifica a bicicleta, recorda que o “argot” (gíria) francês fala da “Veuve poignet” para designar as práticas onanistas e também usa “veuve” para nomear a guilhotina. “O inconsciente popular exprime assim espontaneamente dois dos grandes efeitos da máquina solteira: por um lado, o prazer solitário, e pelo outro o castigo supremo infligido pela instância da Lei”, nota Ernesto Sampaio.
Não é difícil a partir daqui traçar uma aproximação entre a actividade degenerada destas máquinas e a chamada Inteligência Artificial generativa, como o ChatGPT, que, no fundo, absorve grandes bibliotecas em quadros estatísticos e estabelece padrões que lhe permitem simular uma conversação, limitando-se a compor as frases que têm maior probabilidade de gerar confiança e segurar o diálogo. Mas, num regime económico que “subordinou os fins da existência aos meios de subsistência e tornou-nos parafusos das nossas ferramentas”, e no qual actualmente “consumimos e vivemos de maneira a que os meios consumam os fins”, como prenunciou Karl Kraus, em vez de este avanço tecnológico poder abrir caminha a um cenário idílico, devemos manter as maiores suspeitas em relação à possibilidade destes modelos virem a funcionar para um efeito de subjugação. Depois de um século em que as grandes utopias para justificar regimes autoritários tornaram possíveis programas de extermínio, chegámos hoje a uma espécie de exaustão moral e àquele estado de ausência de fantasia que, em parte, explica o facto de um número crescente de pessoas confiarem em elementos do engenho técnico e não à própria inteligência humana, nomeadamente às novas tecnologias, as actuais possibilidades de transcendência. Ora, sempre que nos precipitamos na adopção de alguma nova tecnologia capaz de provocar um enorme abalo na organização das nossas vidas, contra o cepticismo e a necessária cautela, impõe-se o furor religioso dessas hostes para quem o progresso tecnológico se reveste de um elemento redentor, como se até Deus hoje só nos pudesse ser devolvido pela máquina.
Com o anúncio da generalização dos modelos de inteligência artificial generativa, repetiam-se por todo o lado as promessas ingénuas de que estes modelos poderiam pôr fim à pobreza, ajudar a curar doenças, resolver a crise climática, libertar-nos das tarefas mais entediantes e repetitivas, tornando os nossos empregos mais significativos e estimulantes. Por fim estaria ao nosso alcance um quotidiano livre da dependência assalariada no sentido de reforçar o tempo livre, os períodos de lazer e contemplação, ajudando-nos a recuperar a humanidade que perdemos para a mecanização, e a romper com os ciclos diários repetitivos e que nos levam a ter existências cada vez mais solitárias, ajudando por isso a fazer frente à epidemia de perturbações mentais e a recuperar os laços de solidariedade social. Estes algoritmos iriam também tornar a actividade governamental mais racional e responsável… Estaríamos, assim, em processo de contagem decrescente para sermos todos alvo de uma promoção das condições de vida, passando a habitar um admirável mundo novo.
Num ensaio que dedicou ao tema, a ensaísta canadiana Naomi Klein até admite que as potencialidades desta poderosa ferramenta poderiam ser usadas para desempenhar uma série de tarefas enfadonhas, e utilizadas em benefício de todos nós, bem como ajudar a resolver o colapso ambiental, e uma série de outros desafios que enfrentamos. “Mas, para que isso aconteça, estas tecnologias teriam de ser utilizadas no âmbito de uma ordem económica e social muito diferente da nossa, que tivesse como objectivo a satisfação das necessidades humanas e a protecção dos sistemas planetários que sustentam toda a vida. (…) Mas pelo contrário, de momento esta ferramenta apenas está a ser usada para maximizar a extracção de riqueza e de lucro – tanto dos seres humanos como do mundo natural – uma realidade que nos levou àquilo que poderíamos considerar como a fase tecno-necro do capitalismo. Nesta realidade de poder e riqueza hiperconcentrados, a IA – longe de corresponder a todas essas alucinações utópicas – tem muito mais probabilidades de se tornar um instrumento temível de desapropriação e espoliação progressiva.”
No fundo, e de momento, só podemos falar de extraordinárias possibilidades que serão suprimidas, à medida que os financeiros e os capitães da indústria mais desprovidos de escrúpulos adquirem um poder ainda maior de impor o servilismo, e isto enquanto a dependência dos algoritmos assinala o momento em que somos empurrados de forma tantas vezes involuntária para esta era da simulação, em que se acelera de forma dramática a substituição da vida real, uma era um elemento artificial passa a dominar os mais ínfimos aspectos da vida humana. E, mais uma vez, parece que a maldição mais comum nestas alturas, é deixarmo-nos levar de boa-fé numa hipocrisia colectiva, hábil em colocar mal os problemas para melhor legitimar as odiosas soluções que certos grupos de interesses pretendem pôr em prática.
A verdade é que os simulacros e os algoritmos já coordenam hoje elementos decisivos da organização económica e social. Como assinala o pensador italiano Franco “Bifo” Berardi numa recente entrevista concedida à revista Electra, nos últimos trinta anos assistimos a uma constante aceleração do ritmo produtivo que é acima de tudo aceleração do ritmo cognitivo, da atenção. Isto é uma nova forma de alienação, é uma psicopatia, um sofrimento mental que é sobretudo um efeito da aceleração abstracta da relação de trabalho, cada vez mais veloz.”
Num momento em que, como este autor vinca, vivemos a aceleração como uma condição de sofrimento e de patologia crescente, vemos aparecer esse autómato cognitivo global do tipo ChatGPT, o qual tem capacidade de absorver quantidades absurdas de informação e extrair densas redes probabilísticas. Se a razão humana é norteada pela emoção, e a consciência é um modo de absorção e relação afectiva, estes modelos são apenas capazes de mimetizar certos padrões do comportamento humano, e, mais à frente, de condicionar certos impulsos. Funcionam sobretudo como redes de uma memória universal, e irão gerar um processo de substituição dos critérios e dos regimes de aferição baseados no comportamento da inteligência humana por modelos de eficácia e aceleração em que os algoritmos irão codificar e corrigir ou anular as falhas e tudo aquilo que seja contrário ao fim pretendido. São por isso mecanismos de uma optimização que tenderá a impor-se com absoluta indiferença pelo sofrimento humano desde que os objectivos sejam alcançados.
Berardi diz mesmo que nos devemos virar para a hipótese de ficção científica, preparando-nos para “a eliminação da raça humana como raça corporal, desejante, que será substituída”.
Diz ele que a aventura humana vai continuar, mas vai continuar numa espécie de reprodução da memória do que foi a raça humana no passado. Ou seja, não restarão propriamente novas aberturas, o acaso será extirpado dos processos à medida que tudo for contabilizado e previsto, de forma a, no essencial, tentar bloquear a incerteza que faz com que se encare o futuro com esperança. Dar-se-á assim um eclipse do messiânico, do elemento de renovação, dessa projecção utópica e que exprime um acesso do homem à perfectibilidade, a um estado superior e, verosimilmente, duradouro de razão e de justiça.
Por sua vez, Noam Chomsky frisa que a chamada inteligência artificial entra em linha com uma série de processos de extrativistas, e sinaliza como há uma tentação de submeter o campo da atenção a um regime totalitário, que começa por informatizar o conhecimento humano e dispor dele segundo os interesses e as lógicas de lucro empresariais. “A mente humana não é, como o ChatGPT e os seus congéneres, uma máquina estatística e glutona de centenas de terabytes de dados em busca de obter a resposta mais plausível para uma conversa ou a mais provável para uma questão científica. Pelo contrário, a mente humana é um sistema surpreendentemente eficiente e elegante que opera com uma quantidade limitada de informação. Não tenta inferir correlações a partir de dados, mas tenta criar explicações. (…) Deixemos então de lhe chamar ‘Inteligência Artificial’ e chamemos-lhe aquilo que é e faz: um ‘software de plágio’, uma vez que não cria nada, mas copia obras existentes, de artistas existentes, alterando-as o suficiente para escapar às leis dos direitos de autor. Este é o maior roubo de propriedade intelectual de que há registo desde que os colonos europeus chegaram às terras dos nativos americanos.”
Já Berardi lembra que um elemento decisivo nesta transformação digital em curso, e que, no seu entender, representa uma verdadeira mutação antropológica, prende-se com um corte entre a linguagem e a corporeidade. “A humanidade aprendeu a linguagem através de um corpo, com uma voz, a voz da mãe ou de alguém que ocupa o lugar dela, a mãe entendida como um corpo que faz aceder à linguagem.” Berardi remete ainda para um livro de Agamben intitulado Il linguaggio e la morte, onde este defende que a voz é o ponto de contacto entre a carne e o significado.
Para “Bifo” aquilo a que vimos assistindo nas primeiras décadas deste nosso século é a uma transformação na própria aquisição da linguagem e na defunção do aspecto afectivo que antes caldeava esta aprendizagem: “a criança aprende mais palavras de uma máquina digital, ou de um ecrã e, geral, do que da voz humana. Penso que esta é a mudança mais profunda a que estamos a assistir. Quando hoje falamos de solidariedade política, de solidão ou de precariedade, devemos pensar sempre no facto de o sujeito social ser, em primeiro lugar, um sujeito que aprendeu mais palavras com a máquina do que com a mãe. E esta é uma transformação de tipo psíquico, porque a aprendizagem da linguagem não é uma coisa técnica, funcional, operativa. É essencialmente um processo afectivo de confiança na palavra, que traz consigo o significado do mundo. Se substituímos a aprendizagem afectiva pela aprendizagem funcional, como é a aprendizagem pelos meios digitais, temo que possamos perder a capacidade de crer no significado do mundo, de crer de modo profundo, crer eroticamente, carnalmente, digamos assim. Creio que esta última geração é frágil por razões económicas e sociais, mas sobretudo por razões linguísticas, afectivas, que têm que ver com a perda de fé no significado do mundo. Esta última geração já não é capaz de apreender o mundo com a carne, apreende-o apenas de maneira funcional. Esta mutação sociológica torna-se depois económica, social, etc.”
Nesta análise, Berardi socorre-se de um livro póstumo do antropólogo italiano Ernesto De Martino, La fine del mondo, sublinhando que a noção do fim do mundo se dá a partir do momento em que os signos que utilizamos para falar da realidade já não significam nada. “Deste modo, o fim do mundo é um problema de significação. Há um novo mundo que se está a criar. Esse mundo é o da Inteligência Artificial, que não tem necessidade do corpo, o corpo pode morrer, mas a máquina continua eternamente o seu trabalho.”