1755. O ‘para sempre memorável e terrível terramoto que se abateu’ sobre Lisboa

1755. O ‘para sempre memorável e terrível terramoto que se abateu’ sobre Lisboa


Assim o descrevia a lápide de Thomas Chase, um sobrevivente ao terramoto que fugiria para Inglaterra, onde viveria mais 33 anos. O 1.º de novembro de 1755 ficou para a história como o dia em que a terra tremeu e um tsunami varreu a cidade de Lisboa, depois consumida por incêndios.


Com uma população a rondar os 275 mil habitantes, Lisboa era em meados do século XVIII uma das maiores metrópoles da Europa, só perdendo em dimensão para Londres, Paris e Nápoles. E era das mais ricas, também. O ouro continuava a afluir do Brasil em catadupas, o que se traduzia na opulência dos palácios, dos conventos e das igrejas, mas também nos coches sofisticados, antepassados dos nossos Bentleys e Porsches, que circulavam pelo Rossio ou Belém. Na recém-inaugurada Ópera do Tejo, expoente da arquitetura barroca e símbolo da nova Lisboa, estava prestes a estrear-se a ópera Ataserse, do compositor napolitano Leonardo Vinci (não confundir com o autor da Mona Lisa), inspirada na vida do Rei da Pérsia Ataxerxes I, do século V a.C. Todos os papéis femininos eram desempenhados por castrati.

Mas nesta cidade de fortes contrastes o luxo e o requinte viviam paredes-meias com a sujidade e a pobreza. Os mendigos e os aleijados faziam parte da paisagem tal como os belos palácios e os edifícios imponentes. E depois havia toda aquela mistura de gentes que enchia as ruas de vida: vendedoras de fruta e de hortaliça, lavadeiras, escravos negros, homens de negócios, religiosos, açougueiros, lacaios,  barbeiros, comerciantes, cocheiros, artesãos, pescadores… Naquela manhã amena de sábado, 1 de novembro de 1755, nenhum deles podia imaginar o quanto o seu mundo estava prestes a mudar.

“Nunca se tinha visto um dia de Todos-os-Santos tão bonito”, escreveu Suzanne Chantal n’A vida quotidiana em Portugal ao tempo do terramoto (ed. Livros do Brasil). “A poeira que cobria os caminhos era espessa e morna como veludo. Enovelava-se sob os cascos dos cavalos. […] Em volta do fontenário de Neptuno, no Rossio, os aguadeiros mal tinham tempo de se sentar para respirar e enxugar o pescoço com os grandes lenços, antes de erguer sobre a cabeça coberta de suor um barril vermelho com pegas de ferro. Chamavam-nos de todo o lado, pelas janelas das casas onde os burgueses vestiam os fatos domingueiros para irem à missa cantada”.

Havia cerimónias religiosas ao longo de todo o dia e logo pela manhã as igrejas já estavam cheias até à porta. Um pouco antes das 9h40, o industrial Jacome Ratton deu-se conta, sem compreender, da “agitação dos animais de tracção, os cães que corriam disparados pelas ruas, os ratos que abandonavam as suas tocas, os pássaros em louca revoada”, assinala Mary del Priore em O Mal sobre a Terra (ed. Objectiva).

Até que um tremendo rumor, “rugido taõ medonho como o de um espantoso Trovão”, tomou conta da cidade inteira.

“A casa rachava à minha volta” Um membro da comunidade britânica encontrava-se no seu quarto quando a terra começou a tremer, deixando-nos este testemunho: “Senti a casa começar a tremer com suavidade, aumentando gradualmente com um barulho precipitado, como o som de carruagens conduzidas com violência a alguma distância; e foi isso o que eu de início imaginei ser a causa do barulho e tremor que ouvia e sentia. Mas ao aumentarem ambos gradualmente, e ao observar os quadros no meu quarto a bater contra as paredes, levantei-me e percebi logo que era um terramoto; e nunca tendo antes sentido o seu tremor, fiquei um bocado a observar as suas convulsões com muita serenidade; até que, por causa do tremer, julguei que o quarto começasse a ondular, o que me fez correr para outro interior, mais para o centro da casa; mas, nessa altura, o movimento era tão violento que eu me mantinha em pé com dificuldade.

Toda a casa rachava à minha volta, as telhas chocalhavam lá no cimo; as paredes despedaçavam-se por todos os lados; as portas de uma estante bastante grande que havia no meu quarto, e que estavam fechadas à chave, abriram-se violentamente e os livros caíram das prateleiras, mas eu já estava no quarto contíguo; e ouvi aterrorizado os gritos e choros de pessoas vindos de todos os lados”.

Durante dois minutos, talvez mais, o chão foi sacudido quase sem interrupções.

“Aparentemente os edifícios começaram a ruir a partir do segundo minuto do sismo. O vaivém das paredes tinha deixado os telhados sem sustentação”, descreve Rui Tavares n’O pequeno livro do grande terramoto (ed. Tinta da China). “As telhas caíam, e depois delas os travejamentos e tudo o que nelas estava suspenso, incluindo os candelabros acesos das igrejas. A queda dos telhados matou, feriu ou imobilizou imediatamente grande parte dos fiéis que se encontravam nas igrejas – além de por vezes lhes ter tapado as saídas – enquanto as chamas dos candelabros se propagavam rapidamente às madeiras. Nas ruas, as pessoas eram atingidas por pedaços de revestimento, telhas soltas, até varandas e paredes inteiras”.

No total, os abalos terão durado uns sete ou oito minutos. Muitas pessoas ainda não percebiam o que se tinha passado, acreditando que estavam a testemunhar a chegada do fim do mundo.

Enquanto nas capelas das igrejas ardiam muitas velas por causa do feriado religioso, nas casas o almoço estava ao lume. Tudo isto fez com que ao abalo se seguissem terríveis incêndios.

E ainda não era tudo.

A devastação do tsunami “O grande pânico dos incêndios ocorreria umas horas depois. Para já, os lisboetas parecem terpensado que o pior tinha passado, se é que conseguiam pensar em alguma coisa”, continua Rui Tavares. “Muitos desceram até à ribeira, ao Tejo e às suas praias. O nível do mar estava abaixo do normal na maré baixa. Houve até quem escrevesse, mais tarde, que se tinha visto o fundo do rio. […] Meia hora depois do sismo já um tsunami de cerca de 15 metros de altura fizera enormes estragos nas costas marroquina, andaluza, algarvia e alentejana.

Certas cidades algarvias, como Lagos, Portimão e Faro, foram mais danificadas pelo tsunami do que pelo terramoto, embora se encontrassem também perto do epicentro. Em Albufeira, parte da população foi arrastada para o mar. Em Lagos, as ondas destruíram muralhas e partes de fortalezas, mas foi na cidade andaluza de Cádis que os efeitos das ondas foram mais notados, uma vez que a cidade se encontra ligada ao continente por um istmo que foi completamente varrido pelas águas.

A parte central de Lisboa encontra-se semi-resguardada de fenómenos deste tipo pelo formato da embocadura do Tejo. Apesar de tudo, quando a onda gigante chegou à capital do reino tinha ainda seis metros de altura, o que foi suficiente para causar estragos consideráveis. Arrastou consigo um grande número de embarcações. […] Toda essa madeira, inteira ou despedaçada, deve ter entrado pelas ruas da cidade, principalmente nas freguesias de São Paulo, mais baixas e expostas ao rio, rangendo e estalando à passagem. Quando a onda regrediu deixou estes desperdícios que mais tarde serviriam de combustível para as chamas”.

As perdas materiais foram colossais: a Ópera do Tejo novinha em folha, a Patriarcal, o Paço da Ribeira com a sua biblioteca de 70 mil volumes, o tesouro e arquivos da Casa da Índia, coleções inestimáveis de pintura. As estimativas apontam para cerca de 50 mil mortos.

A sinfonia iluminista de Pombal A frase é comummente atribuída ao Marquês de Pombal, mas terá sido D. Pedro de Almeida, marquês de Alorna, quem a proferiu:_“Enterrar os mortos, cuidar dos feridos, e fechar os portos”. Em todo o caso, Sebastião José de Carvalho e Melo – que até aí era um “ministro a prazo”, nas palavras do seu biógrafo Pedro Sena-Lino – assumiu-se como uma figura quase providencial. “As pessoas tinham medo de ficar em Lisboa, sobretudo quando se aproximou o 1 de dezembro de 1756 [1.º aniversário do terramoto], ele obrigou as pessoas a ficarem na cidade, forçou os vendedores a irem vender para não haver fome, para que o processo de reconstrução se mantivesse”, disse Sena-Lino em entrevista ao Nascer do SOL em 2020.

Na cidade, “os nobres e os burgueses afortunados mandavam construir barracas de madeira, a exemplo da família real”, notou José-Augusto França em Lisboa Pombalina e o Iluminismo (ed. Bertrand).

A par destes “acampamentos” da moda, ia nascendo uma nova cidade em alvenaria, uma espécie de sinfonia iluminista cuja partitura Pombal dirigia como maestro. Manuel da Maia, Eugénio dos Santos e Carlos Mardel eram os seus principais intérpretes. As ruelas estreitas e cheias de desvios dariam lugar a ruas e avenidas largas, compondo um traçado de paralelas e perpendiculares. O receio de um novo sismo levou à invenção do sistema de gaiola, um esqueleto de madeira que dava estabilidade ao edifício. “A passagem da construção civil do plano artesanal a um plano que se poderia chamar pré-industrial […] é um dos factos económicos mais consideráveis desta época em Portugal”, assinalou França no seu clássico de 1983.