Muito antes de o existencialismo ter sido canalizado na rive gauche já a aparição de Sexta-Feira complicou sobremaneira o projecto moral de Crusoé, um precursor de um trabalho de campo digno do Centro de Estudos Sociais: o canibalismo, a que escapou Sexta-Feira, só é um crime aos olhos de Crusoé, os praticantes, ignorantes da proibição “não comerás o teu semelhante”, não devem ser punidos. Séculos volvidos, e muito por força da vã, revolucionária e francesa crença na força da lei, a moral passou a ser legislada, dispondo o artigo 6º do Código Civil “A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas.” A superioridade moral da lei é uma aporia porque as leis, nos tempos difíceis em que vivemos, são, como em tempos foram os comboios: perigo!, uma lei pode esconder outra. E quando não escondem, modificam, atrelando-se umas às outras, marteladas, por vezes, com uma natureza interpretativa que as faz, insidiosamente, retroagir ao dia que viu nascer Matusalém.
A moral europeia prosperou durante vários milénios por via militar, económica e imperial. A moral do vencedor não costuma ser perguntada pelo vício. Vencida a Europa, primeiro em 1918 e depois, de forma definitiva, em 1945, a moral europeia passou dificuldades devidas à hegemonia da moral alheia. A Europa viveu, amoralmente, entalada entre a “pax americana” e a ocupação soviética. O fim da guerra fria deu à Europa a possibilidade de concorrer no mercado mundial da moral. A Reforma regressou em força e, contra as melhores e sábias evidências proporcionadas pelo catolicismo, a Europa quis moralizar pelo exemplo, assegurando que cumpria dentro de portas uma moral suficientemente robusta para poder contagiar outros, quiçá todos.
Do cruzamento entre a moral e a economia podem resultar grandes acidentes. Quando a moral regional se cruza com a economia internacional, o número de vítimas é exponencial. Na tradição católica o arrependimento tem virtudes regeneradoras. Sendo o arrependimento filho do pecado, permite uma moral bifronte, incluindo a promessa implícita de prática futura do bem.
O arrependimento também tem forma legislativa, sendo uma das características da lei a sinceridade: “Embora a União tenha reduzido substancialmente as suas emissões internas de gases com efeito de estufa, as emissões de gases com efeito de estufa incorporadas nas importações para a União têm vindo a aumentar.” “A fuga de carbono ocorre se, por força de custos relacionados com as políticas em matéria climática, as empresas de certos sectores ou subsectores industriais transferirem a produção para outros países ou as importações deles provenientes substituírem produtos equivalentes que tenham menor intensidade de emissões de gases com efeito de estufa.” “O CBAM [Carbon Border Adjustment Mechanism] deverá assegurar que os produtos importados estão sujeitos a um sistema regulatório que aplique custos de carbono equivalentes aos suportados no âmbito do Comércio Europeu de Licenças de Emissão [de gases com efeito de estufa], resultando num preço do carbono equivalente para as importações e para os produtos nacionais.” Considerandos do Regulamento (UE) 2023/956 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de Maio de 2023, que cria um mecanismo de ajustamento carbónico fronteiriço aplicável às importações de ferro, aço, alumínio, cimento, adubos, electricidade e hidrogénio provenientes de países terceiros.