(continuação da última edição)
Regresso a Nelson Rodrigues. É inevitável. Foi o cronista que melhor escreveu sobre Pelé e sou obrigado a trazê-lo para esta série de crónicas com que quis assinalar a morte de Edson Arantes do Nascimento. Leiam, pois, o Nelson: “Pelé tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimónias. Já lhe perguntaram: — ‘Quem é o maior meia do mundo?’ Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — ‘Eu’. Insistiram: — ‘Qual é o maior ponta do mundo?’ E Pelé: — ‘Eu’. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições”.
A crónica de Nelson peca por escassa. Faltou que alguém perguntasse a Pelé “Qual é o maior guarda-redes do mundo” para que ele pudesse responder “Eu!” Sim, talvez haja gente que desconheça essa faceta mas Pelé foi um guarda-redes tremendo, com um instinto particular para a posição, uma segurança surpreendente e sobretudo com os mesmos reflexos que utilizava na frente para ultrapassar as defesas adversárias. “Fui sempre o goleiro substituto no Santos”, afirmaria Pelé na sua autobografia. “E também muitas vezes na selecção brasileira nesse tempo em que as substituições não eram permitidas. Treinava com muita frequência nessa posição o que me permitiu tornar-me um verdadeiro especialista”. Oficialmente, ao longo da sua carreira, jogou por quatro vezes como guarda-redes, e sem sofrer um golo que fosse. “Adorava jogar nessa posição, por difícil que seja de acreditar. Mas uma grande defesa dava-me tanto prazer como marcar um golo!”
A primeira partida oficial em que Edson Arantes do Nascimento assumiu o posto de keeper foi em 1959 num desafio entre o Santos e o Comercial de Ribeirão Preto. A vitória foi sem espinhas, por 6-2, Pelé marcou um golo e tudo, mas com a lesão de Gilmar, o habitual dono da baliza santista, Pelé vestiu a camisola da manga comprida, forrou as mãos com luvas e esteve ali, inultrapassável até ao final da partida. Nem é preciso dizer que a multidão adorou e que a imprensa fez manchetes com a matéria. O melhor jogador do mundo também era o melhor guarda-redes do mundo? Conclusão obviamente precipitada. Até porque não lhe sobrava tempo para jogar nas duas posições com a necessidade de mostrar que não havia outro com tanta qualidade debaixo das traves.
Torcendo contra A mais caricata das experiências de Pelé como guarda-redes foi, sem dúvida, a que sucedeu em 19 de janeiro de 1964, na Vila Belmiro, frente ao Grémio de Porto Alegre. Jogo duro, a exigir o máximo de todos os participantes, com laivos de violência. O resultado estava em 4-3 a favor do Santos e Pelé tinha marcado três dos quatro golos. O segundo tempo tinha começado há três minutos. Com a cabeça perdida, Gilmar foi direito a um adversário e deu um direto no sobrolho. Expulso, claro está! Nem reclamou. Pelé também não reclamou: já sabia que era ele o goleiro substituto e, por isso, foi para a baliza. Mas, o mais curioso de tudo isso é que, a partir do momento em que fez uma defesa magnífica, o público do Santos começou a torcer pelo Grémio. Queriam que os avançados de PortoAlegre proporcionassem mais defesas a Pelé e festejavam-nas depois com enormes “bruáááás” tornando aquele moço nascido em Três Corações mais lenda do que alguma vez tinha sido.
Lalá, um dos guarda-redes do Santos do tempo de Pelá dizia sem rebuço: “Em condições normais, Pelé era o titular da selecção brasileira. Era o melhor de nós todos à baliza”. Numa das muitas digressões feitas pelo Santos, dessa vez a África, o promotor do evento pediu encarecidamente a Pelé para jogar à baliza meia parte de um jogo contra um seleccionado do Congo para divertimento do povão. Pelé fez-lhe a vontade. Embora depois tenha dito que isso atrasou a marcação do seu golo mil – na altura estava nos 998 e demoraria quase dois meses a marcar mais dois. Já na altura em que discutia contrato estratosférico com oCosmos de Nova Iorque que viria a assinar, voltou a jogar como keeper, pela última vez, nos Estados Unidos, num encontro de exibição contra o Baltimore. Estávamos em Agosto de 1973 e o Santos venceu por 4-0. Mais uma vez Edson Arantes respondia à pergunta “Qual é o melhor goleiro do mundo?” Ele, claro!