Num lugarejo de Minas Gerais, a norte do Rio de Janeiro, numa terra muito rica em minério, um fazendeiro português instalou-se nas margens do Rio Verde. Para agradecer a sua fortuna fez erguer uma capela: batizou-a com o nome de Sagrados Corações de Jesus Maria e José. Não tardou a que toda a gente conhecesse o lugar como Três Corações. No dia 23 de outubro de 1940, havia um homem especialmente feliz na aldeia: João Ramos do Nascimento. Estava a cumprir o serviço militar e jogava como atacante do Atlético de Três Corações. A sua esposa, Celeste, acabara de dar à luz um rapaz. A luz também dera à luz pouco tempo antes: instalaram a eletricidade na cidade, quero dizer. João, a quem chamavam de Dondinho, quis homenagear o responsável pela grande nova: Thomas Eddison. Batizou o garoto como Edson. “O problema é que na minha certidão de nascimento o meu nome tem i: Edison. Mas chamo-me Edson, sem i”, contaria Edson mais tarde. “E além disso puseram a data de 21 de Outubro. Não era gente muito rigorosa”. Este Edson era Edson Arantes do Nascimento. Por extenso Pelé, como escreveu um dia Nelson Rodrigues. Com tanta coisa errada, a sua vida tinha tudo para dar certo. Não foi à toa que Armando Nogueira traçou o seu futuro nas estrelas: “Os anjos que sobrevoam este campo me juram que vieste ao mundo para reescrever a Bíblia do futebol. Assim seja!” Com apenas 10 anos, Edson viu pela primeira vez seu pai chorar como um criança. O garoto trabalhava como engraxate para ajudar a família pobre. No Maracaña, perante 200 mil pessoas, o Brasil perdera para o Uruguai a final do Campeonato do Mundo. Seu Dondinho soluçava agarrado ao radiozinho de pilha. E o filho profetizou; “Não chora não, papai. Eu vou ganhar uma copa dessas para você!” Ganhou três.
A bola Edson ainda não era Pelé mas já não sabia viver sem a bola. João arranjou um emprego em Bauru, não muito longe, e Edson e seu irmão Zoca estudavam na escola Ernesto Monte e jogavam peladas horas a fio num baldio da Rua Rubens Arruda. Edon sonhava com futebol. Zoca dizia que ele era sonâmbulo – “Volta e meia levantava-se dormindo, gritava ‘Golo!’ e voltava para a cama”. Nesse tempo, a alcunha dele era Dico. Até ao dia da sua morte, Dona Celeste, que continua viva, tratou-o por Dico. Quando, muitos anos mais tarde, o pai o levava aos treinos do Vasco da Gama, ficava dentro de uma baliza, atrás do guarda-redes: se a bola passava e ele a agarrava, soltava um berro: “Grande defesa de Bilé!” Foi de Bilé a Pilé e de Pilé a Pelé. “Queria ser Edson, não Pelé”, contou. “Odiava ser chamado de Pelé. Uma vez dei uma surra num colega por me ter chamado Pelé!” Mas Pelé entrou para a eternidade e nunca mais sairá dela. Edson Arantes do Nascimento pode ter morrido no dia 29 de dezembro de 2022, mas Pelé vive para sempre em cada um os nossos três corações. Também lhe chamaram Baltazar e Gasolina. No dia 7 de setembro de 1956, aos 20m da segunda parte do jogo entre o Santos e o Corinthians de Santo André, o treinador do Santos, Lula, resolveu substituir o avançado Del Vecchio pelo fedelho que tinha nas costas o número 13. Dezasseis minutos depois de entrar em campo, Pelé recebeu um passe de Tite dentro da área adversária e, apertado por dois defesas, chutou de pronto. Zaluar Torres Rodrigues foi o primeiro guarda-redes a sofrer um golo de Pelé. Chegou mesmo a gravar cartões de visita com esse registo. Era um derrotado orgulhoso.
Surgiu o mito. Ainda por cima porque Edson tratava Pelé na terceira pessoa: “Até hoje me pergunto como Pelé surgiu. Me pergunto de onde ele veio e por que eu, o Edson, fui escolhido para encarná-lo. Sempre pergunto a Deus quem é esse sujeito, Pelé?” O melhor mesmo era não perguntar muitas vezes. Mais cedo ou mais tarde, Deus ia ter de responder. E a maior parte dos humanos sabe qual seria a resposta: “Tu és eu!” (continua na próxima edição)