Marie-José Mondzain. Um Kafka negro

Marie-José Mondzain. Um Kafka negro


A pensadora francesa aborda criticamente o célebre texto de Kafka (Na Colónia Penal) e transforma-o numa estrutura de tempo concentrado que permite interrogar o racismo.


Uma das mais conhecidas pensadoras francesas da atualidade, Marie-José Mondzain, tem trabalhado acima de tudo os problemas que se relacionam com a imagem e com o imaginário – Image, Icône, Économie é talvez dos seus textos mais interessante, juntando o rigor conceptual ao rigor da investigação histórica. Depois de A imagem pode matar? e, também com tradução de Luís Lima, Homo Spectator – os dois únicos livros traduzidos em Portugal – chega agora K como Kolónia. Para quem tenha acompanhado a produção de Mondzain, este último livro acaba por ser tanto uma declinação do percurso da pensadora francesa – que denota, aqui e ali, alguns tiques demasiado franceses -, como um texto relativamente surpreendente na forma como a questão colonial surge depois de uma extensa e longa interrogação sobre a imagem e todas as suas declinações (o imaginário, o espectador, a iconoclastia, as tecnologias da imagem). 

K como Kolónia é uma intensa leitura de um pequeno texto de Kafka – Na Colónia Penal -, com a qual se pode discordar porque dá, por vezes, uma imagem demasiado “alegre”, redentora, de um escritor que sempre teve um gosto pronunciado pela sujidade, um desejo pelo imundo, cujo sentido de humor, tipicamente judaico, parte tantas vezes de um pessimismo sem igual, de tal forma negro que se torna inescapável. Em todo o caso, a abertura de novas possibilidades dentro do texto de Kafka e a forma como declina o texto do escritor de língua alemã – esta última afirmação tem de ser lida com aspas – é suficientemente interessante para contrariar qualquer objecção – ou para a colocar em suspenso. 

E o que encontramos, em K como Kolónia, é um Kafka negro, também ele um africano habitante dessa colónia penal que imagina – Kafka que nunca conheceu África, que provavelmente desconhecia a dimensão dos genocídios cometidos por todos os povos europeus com colónias, os antecedentes dos campos de concentração, que também não viria a conhecer, que os ingleses inventaram, a devastação da memória que a Europa como um todo praticou.

Uma das dimensões interessantes do texto de Mondzain é a forma como transforma o texto de Kafka numa espécie de estrutura, de tempo concentrado, que permite interrogar o racismo, tanto aquele que funcionou durante vários séculos como, igualmente, as suas sobrevivências e declinações contemporâneas. Porque o colonialismo, parece dizer-nos Mondzain, não acabou. Não apenas porque o saque continua a bom ritmo – de forma mais ou menos privatizada, mesmo quando patrocinada por estados -, não apenas porque a subjugação de certos corpos continua, mas também porque o colonialismo não é apenas uma realidade histórica, mas uma estrutura de distribuição dos corpos, de criação de imaginário, que se inscreve, tantas vezes de forma mortífera, nesses mesmos corpos. É exatamente por causa disso que o “racismo colonial é inseparável de todas as outras figuras da exclusão e dos ódios genocidas”, ou dito de outra forma, o racismo colonial é o centro – descentrado, talvez – de toda a luta contra a desigualdade e é ele que surge, de diversas formas, sempre e de cada vez que existe subjugação ou desigualdade. 

“Kafka orienta-nos o olhar de outra maneira. Orienta-o politicamente amarrando a condição do negro e do judeu sob o signo da proletarização. (…)O racismo é a componente inevitável de subjugação. A abolição da escravatura não libertou os negros da sua condição subalterna, e as teorias racistas continuam a assegurar a perenidade de uma dominação branca sobre quem só em princípio libertou.”

O judeu, o negro, outrora o proletário, as mulheres, os homossexuais – os ciganos. Todas estas figuras subjugadas foram subsumidas à máquina infernal que Kafka descreve – o que é irracional é real, como dá a entender Mondzain ao inverter o famoso dito de Hegel; mas não é apenas real, é também inescapável. São “os Judeus”, com aspas, como chamou a dada altura um outro pensador francês, Jean-François Lyotard, que designam o exterior do pensamento, o Outro que é ao mesmo tempo bastante próximo e desde sempre distante. É este outro que é constantemente criado e recriado pela máquina colonial, que ela cria enquanto pressuposto seu.

A metáfora da floresta, para a qual esse outro é sempre uma massa indistinta e ameaçadora – seja essa floresta Calais, onde se amontoam imigrantes, os negros dos subúrbios ou as comunidades ciganas – a fobia do contacto e do contágio de que Canetti já falava, o espectro de uma massa que está constantemente na iminência de chegar, dá bem conta da ambivalência que os excedentários têm, ao mesmo tempo necessários ao funcionamento da máquina colonial, mas desde sempre condenados.

“Remeterá o desejo do modelo para alguma figura mais íntima e inconfessada do desejo? Tocamos aqui na ambivalência profunda que faz do corpo do escravo e, mais geralmente, do negro o objecto diabolizado da dominação e do desejo”.

Kafka acaba por ser, para Mondzain, uma solução inteligente para pensar esse “imaginário colonial”. Em primeiro lugar, porque, enquanto judeu de língua alemã, conheceu bem o antissemitismo que, ainda hoje, vai surgindo num certo tipo de discurso. Este “imaginário colonial” que se encontra presente em Kafka é particularmente visível na relação que mantém com a língua alemã: “impossibilidade de não escrever, impossibilidade de escrever em alemão, impossibilidade de escrever de outra maneira”, como dizem Deleuze e Guattari, denota essa falta de identidade, essa falta na identidade que foi inscrita a fogo no corpo e que devia ser a nossa, igualmente:

“Não devemos hospitalidade aos antigos escravos apenas para reparar o irreparável, nem para nos contentarmos em lhes oferecer o que possa faltar-lhes, mas para receber deles o que nos falta a nós”

Em segundo lugar, Kafka permite-lhe estabelecer uma ligação, não apenas histórica, mas também conceptual, entre o colonialismo e o racismo dos europeus e a Solução Final: África tornou-se um laboratório onde se foi experimentando a máquina genocida, ao ponto de certos intervenientes passarem directamente de África para a Alemanha Nazi: “O nazismo não inventou de modo algum o anti-semitismo de que o mundo cristão fez uso abundante durante séculos, vontando à vindicta e à exclusão o povo deicida. Foi, porém, a colonização que permitiu aos teóricos do racismo reunir, em pleno século XX, sob a mesma negritude, negros pretos (nègres noirs) e negros brancos (nègres blancs). Foram então um mesmo gado destinado à exterminação.”

Mas Kafka serve também, a Mondzain, para deslocar o privilégio do lugar da fala, escapando a qualquer identidade ou identificação e inscrevendo a imaginação em qualquer ato de escrita – escapando, portanto, a qualquer identificação rápida, aquela que lhe daria, por exemplo, ser mulher e ter nascido numa antiga colónia francesa. Interessa-lhe, como afirma, aprender a “saudar o colonizado, o antigo escravo e, por essa via, qualquer estranho que venha na nossa direcção”, mas isto, que denota a hospitalidade devida a qualquer outro, denota também a falta na identidade (que não é a mesma coisa que uma falta de identidade) que é sempre suplementada por esse esforço imaginativo, por essa hospitalidade devida ao outro, mesmo quando esse já nada pode dizer, quando, como é o caso com os antigos colonizados, foi subtraído qualquer memória e qualquer palavra.

“Isto equivale a construir os lugares e encontrar as palavras do acolhimento, a receber quem chega como bem-vindo porque, sem o sabermos, já o esperávamos. Se quem chega é também quem estava em falta na construção da minha própria subjectivização, então é preciso admitir que toda a hospitalidade torna necessário o próprio princípio da igualdade.”

 Acabar com qualquer identidade, com qualquer identificação, escapar a qualquer distribuição natural ou artificial dos corpos e dos lugares, escapar a tudo isto, escapar a nós próprios, parece ser o programa de Mondzain. E lembra, aliás, o que um outro pensador, Michel Foucault, escrevia na introdução a um livro de metodologia: “Há mais quem, como eu, escreva para deixar de ter rosto. Não me perguntem quem eu sou e não me digam que continue a ser o mesmo: tal é a moral de registo civil, que governa os nossos papéis. Que nos deixe em liberdade quando se trata de escrever”.

Que os burocratas se divirtam a verificar se os papéis estão em ordem – um Kafka negro mais não quer que baralhar e confundir qualquer divisão estanque.