António Barahona. A perseguição insana à presa de som esquivo

António Barahona. A perseguição insana à presa de som esquivo


O poeta encerra um longo processo de revisão e reescrita de toda a sua obra poética, reunida em 10 volumes, com o livro de sonetos Sombra das Minhas Mãos.


Miguel de Unamuno entendia que quanto mais do seu país e do seu tempo for um poeta mais será de todos os países e de todos os tempos, defendendo assim uma oposição entre o universal e o cosmopolitismo. Na mesma linha, um crítico como Alfonso Berardinelli defende que, há mais de um século, a poesia moderna tenta ser ou crê ser epocal e planetária, tendo resvalado num género niilista e sintético, filosofante e descontínuo – “para ela a totalidade do mundo parece ser demasiado pequena, demasiado estreita e limitada”. Segundo o crítico italiano, agora que a velha Linguagem Mundial da poesia moderna se engoliu a si mesma para produzir o Jargão da modernidade, vê-se obrigada a enfrentar o mundo (ou a perdê-lo) nessa linguagem autógena, com a qual, na verdade, o que se consegue dizer é muito pouco.

A crise decisiva do nosso tempo relaciona-se precisamente com a inconsistência da própria percepção dos factos organizados segundo um regime cronológico e com tentações de historicização, isto pela ausência de um centro mobilizador e que possa afectar conexões, e também de um princípio de coesão e de uma unidade interna de medida capazes de organizar e manter unida a poeira das emoções e das experiências. Como vincava Antonio Gramsci, a crise da nossa época consiste no facto de a sensação do que foi antes o mundo estar a morrer e não estarem reunidas as condições ainda para que o novo possa nascer. Ora, neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos acumula-se por toda a parte. Assim, uma herança que ninguém sabe bem como usar amontoa-se num sinistro museu de formas canónicas, disponíveis para exibições retóricas e sentimentais desmedidas, e a linguagem poética enche-se de formas mortas ou semivivas, convocadas numa espécie de tediosa cerimónia de celebração de um génio que nunca chega a proferir nenhum juízo que persista e estabeleça conceitos perduráveis, sensações afirmantes. Aqueles que a escrevem vão-se tornando meros burocratas empenhados em defender um código estilístico que engorda e envelhece sem nos dar uma nova sensação do mundo, nem apontar para os sinais de transformação. Hoje, sempre que se vê perante um livro de poemas, a primeira tarefa de um crítico deveria ser a de tentar perceber de que modo este cede a essas formulações infinitamente plásticas e que se passeiam como mais uma sombra no reino das sombras, facilmente integráveis na condição disso a que veio a chamar-se arte pós-moderna. Ora, isto não significa outra coisa senão a perda da sua força de resistência e contraste, quando um texto ou uma obra se torna ornamental, consumível e insossa, ao passo que a arte moderna, como bem se sabe, foi intratável, produzia mal-estar, funcionava como uma sucessão de actos de acusação, revelações horripilantes, auto-análises implacáveis e destrutivas.

António Barahona, como só mais uns poucos dos poetas mais velhos, entre eles Alberto Pimenta, António Franco Alexandre Ou João Miguel Fernandes Jorge, carrega ainda essa percepção de uma antiguidade que se vê desluzida e ignorada, mas que riposta, não se entrega nem condescende, agride ainda outra e outra vez, insistindo na beleza mais difícil, no golpe que busca o nervo nos homens, mas se escava a carne em busca dele, dá por si incrédula pelo modo como todos parecem moles e sem osso. Barahona tem, como só muito poucos, a graça de ser bafejado há muito por uma musa abrupta quando não escandalosa, mas é capaz de variações sublimes, de reflexos inesperados, cosendo outros sintomas sobre a pele dessa deformidade da nossa época, capaz de balançar entre a lírica mais precisa e radiante, e a oratória memoriosa, fúnebre e sensualista. A sua poesia fala-nos da possibilidade real do fim do mundo, de uma degeneração sem saída, e, portanto, da necessidade moral de que o curso do mundo se detenha. Esta obra que agora se encerra com um livro de sonetos, certamente num tom mais brando, como uma música de águas correndo nos veios mais profundos da língua, puxando de si para si essas relações intuídas pela relação sonora, ilustra a hipótese sugerida por Borges de que talvez a história universal seja a história da diferente entoação de algumas metáforas.

Se “todas as artes aspiram à condição da música, que não é outra coisa senão a forma”, a obra de Barahona está em profunda sintonia com essa noção que entende o poema como a iminência de uma revelação, a qual não se produz inteiramente, mas, de algum modo, se mantém furtiva, inalcançável e incitante. O poema é, assim, essa presa infatigável que se caça de ouvido e que, a partir do momento em que se é descuidado, quebrando um galho e ferindo a prosódia, escapa-se-nos, foge à apreensão do seu rasto de encanto por parte da memória, perde-se. É nesta medida que o poeta, com o sangue chamado a essa forma de sintonia, se “transmuda num mystico veloz/ a todo sôpro circular na fala”. 

Não demoraremos a ver nesta poesia, a qual encerra com este décimo volume ( “Sombra das Minhas Mãos”, ed. Averno) a sua suma – depois de uma revisão e reescrita intensa de um percurso de longas décadas e de uma auscultação imoderada de tantos mais séculos –, que o universal moderno já não se funda na unidade perceptível da natureza cósmica, mas respeita meramente aos usos dessa metrópole-capital, impossível de situar, e, perante este facto, quando se pergunta o que busca, hoje, o público da poesia somos levados a concluir, na linha do que defende Berardinelli, que chegámos a um momento em que os movimentos artístico-literários quase não se distinguem do seu público, e que, entre grupos artísticos extensos e um público restrito, de quase artistas ou de pré-artistas, se estabeleceu uma simbiose algo suspeita. “Esses inumeráveis cosmopolitas e vanguardistas de arte não serão, talvez, provincianos patéticos à procura de emoções fictícias e de uma existência ‘estetizada’ de primeira qualidade?” 

Face a isto, no intuito de defender-se, o poeta é aquele que se retira: “a usura do som em que me isolo/ vidrado, mavioso, estilhaçado// O ácido devora, o Verbo exulta,/ concerto rigoroso ao rés da escrita:/ mastigo a letra, saboreio oculta/ devoção à mistura na saliva/ O coração ecoa maré viva, o sangue sobe até ao escalpe e grita”. Eis o reclamar dessa condição exuberante daquele que “Vive na pequenez da Terra imensa/ triste estrangeiro árabe passante,/ vagabundo pomar que amadurece”. Mas para se alcançar esta sintonia com o cosmos, o poeta tem de apreender a imensa fragilidade daquilo que lhe apura os sentidos para se lançar nessa perpétua caçada. É preciso, portanto, um certo entendimento inseguro do que é e, sobretudo, do que faz a poesia. Como assinalou Derrida, numa noção que vale como poucas enquanto definição do que seja um poema: “um poema corre o risco de não ter sentido, e não seria nada sem esse risco”. Ora, um poeta como Barahona tem essa instrução intuitiva que balança entre os reflexos de uma existência comum entre as formas e os seres, de tal modo que alcança e produz ecos num regime universal: “Dou a forma a este fogo que consome/ a minha alma em água reflectida/ no espelho tão vazio que morro à sede/ e, por um fio, pende a minha vida”.

Como se diz que os pássaros podem levantar o céu no modo como nos erguem a vista, os versos de António Barahona abrem-nos a imaginação, essa respiração do sangue que se amplia e ao seu pulso entre pressentimentos, dilatando os sentidos, a nossa atenção que se sente como a um tapete, ao ser estendido e receber pauladas com vigor para lhe sacudir o pó. Em linha com o que nos diz o poeta e crítico italiano Sergio Solmi – numa das mais radiantes descobertas oferecida pela edição independente este ano aos leitores mais atentos, “Meditações sobre o escorpião e outras prosas” (ed. Barco Bêbado, com tradução de Ana Cláudia Santos) –, “a poesia consiste num gesto firme de convicção nas palavras que se dizem”, e esta é uma convicção ao mesmo tempo “atormentada e arrebatada, cujo acento invade as sílabas e as cores e as faz vibrar sem alteração”.

E voltamos àquela noção de música, como uma soberania que enlaça o acto e a forma, sendo que “o segredo e a dificuldade da arte residem apenas no trabalho atento e sacrificado, na completa absorção do pensamento na matéria, que se torna assim o único verdadeiro conteúdo da obra”. Solmi vinca a necessidade da “potenciação das faculdades autocríticas e reflexivas, para pôr a nu, no pensamento poético, a parte instintiva, imediata, aquela que pode definir-se enquanto ‘corpo’ da poesia. Ora, no entender deste autor, “a decadência da poesia, ou melhor, do reino da poesia, teve início com a invenção da escrita, quando se começou a distinguir uma alma e um corpo no poema, a separar a figura rítmica do verso do respiro corpóreo que lhe dá vida, do movimento lesto da dicção, eminentemente mágico e evocatório”. E a consequência: “Pouco a pouco, o verso acabou por adquirir uma existência abstracta e distinta, limitando-se a representar apenas o desenho esmaecido de uma ideia.”

É contra isto que Barahona se insurge, e por isso é que ele insiste na figura do poeta como um entre esses “últimos dos últimos”, servindo-se da expressão de Manuel de Castro, aqueles que vivem imersos num resgate das tais metáforas que, na diferença da sua entoação, nos devolvem a uma história universal, e que encarnam em si o fim e o recomeço, essa drástica disciplina daquele que, segundo Solmi, “deve tornar-se o seu próprio modelo, deve fazer do seu organismo inteiro o instrumento adequado à criação da poesia, deve tornar redivido o rapsodo primitivo na calma e no silêncio do seu quarto”.

Assim, o poeta resgata-se ao reino das sombras, trata de reaver a sua sombra, preferindo ouvi-la murmurar “emparedada em cada verso”. Eis como ele se vê e reconhece nesse perfil que é hoje extensível a tão poucos: “Cá vou indo, recluso em eco branco/ liberto porque canto se não morro,/ até colher do chão fôlhas d’Outomno/ caídas cadafalsas do Sol roxo// Solene e reclinado, não desisto/ (no papel alvo tal um osso limpo)/ a inserir sonetos no que sinto/ ser um sussurro opaco de som esquivo”. E ao encerrar a sua obra com um livro de sonetos, Barahona parece querer reforçar a ideia de um contágio que começa, não no passado, mas no futuro: “eis do futuro,/ essa canção com oitocentos anos:/ sábios, mil sons ecoam bons sopranos,/ no timbre d’árias tensas de ouro puro”, lia-se num soneto aparecido faz uma década, com o título “Pulsação”.

Tínhamos ali talvez a mais sumptuosa e equilibrada definição e alcance nesta forma tão ardilosa que levou Valéry a dizer que gostaria de cumprimentar no inferno o inventor do soneto. Talvez por essa exigência de “rigor exorbitante”, o qual gera uma tensão castigadora, terrivelmente dolorosa, e que para ser conquistada obriga o ser que dentro dela se vê confinado, como um canário engaiolado, a traduzir no seu canto um tal espasmo selvagem e orgulhoso que se liberta e imortaliza, escapando desse inferno, que não deixa de ser uma metáfora para o próprio mundo com as suas artes cada vez mais levianas e efémeras: “Catorze versos a fundir degraus/ (ligas de cobre e prata e elixir)/ refeitos pra durar até que expire/ seu último cantor, à flor do caos.”

É isso o que faz Barahona, deixando a última gota cair contígua ao rumor de um oceano, “este ápice/ de rumor sobreposto à voz que calo”. E é com uma sextilha que o poeta afina o ponto final à obra, deixando que expire esse sopro de ar capaz de se refazer em tantos ecos, levantar a vida ainda à imagem daquela noite adolescente que é também selva e labirinto: “Procuro-me ininterruptamente pássaro/ e interrompo a circulação do ar/ Há alguém que não vem, não oiço passos:/ só há suor a transpirar nos versos,/ e já quase não há versos, mas restos/ de mar a fluctuar sôbre os telhados”.