Zetho Cunha Gonçalves. A Terra como Poema

Zetho Cunha Gonçalves. A Terra como Poema


Com selo da Maldoror, foi publicada a reunião de 42 anos do labor poético de um poeta angolano que vive há muito em Portugal.


Este livro de poemas de Zetho Cunha Gonçalves, lapidado pelo tempo e pelo ofício sábio e demorado do poeta, reúne mais de uma dezena de muitos outros livros, ao longo de uma vida que vai muito para lá do tempo cronológico dos 40 anos em que foram escritos – os livros e a vida! A quase impossibilidade de recensão crítica de um livro de poesia como esta Noite Vertical manifesta-se em assombro; o assombro é a matéria da Beleza, a Beleza aparece no momento em que sabedoria e vida se enlaçam num fulgor; aí, o voo das aves desenha o movimento no olho humano que o contempla ternamente; aí, a eternidade toda acontece nesse pequeno instante: “E loucos – loucos/ de eternidade,/ dançam os pés do vento sobre o mundo” – é essa a matéria do poema, é essa a matéria desta Terra que habitamos e pelo poema se transmuda em Vida, como acontece neste livro. Há ainda razões (sem razão nenhuma) para que esta Noite Vertical – nascida “Na Alegria da Terra”: “(…) Os meus dias/ – lenta cortina de prodígios,/sortilégios/ que a palma das mãos acolhe/ – verso, noite Vertical” -, não se deixe enlaçar na árida linguagem de uma apresentação crítica. Na sua transumância significante e geográfica, os mitos cantados neste livro estão dentro do acontecimento linguístico, a palavra como acontecimento – diz o poema O Testa-mento do Mundo: “Porque sou eu quem levanta das palavras o dizer…”; mas não será, no entanto, qualquer ciência que veja a linguagem como convenção ou instrumento que a esses mitos dará acesso, pois que “a existência ilumina-se, dá-se a ver na palavra”, isto é, “(…) Morre a carne/ o corpo morre,/ só o nome/ não morre,/ enquanto a idade/ for igual ao tempo”. Na matéria poética desta Noite Vertical, a ancestralidade da Terra é atualidade e atualiza permanentemente a Vida todos os dias – será esta a função do poema: fazer ver do que passa aquilo que fica; é um modo, aliás, o único modo de dar textura ao tempo que medeia entre um corpo e outro corpo, suspensos pelo desejo do encontro com o mundo que fundam; o Poema retém o tempo, e nessa exata medida desenha a memória. 

A Terra como Poema Imenso é a única utopia possível; a Terra como Poema é a única garantia de uma autêntica liberdade, o resto são convenções de um sujeito em crise que se esqueceu que todas as tradições orais têm também os seus gregos… A Terra como Poema nasce da liberdade de nos sabermos humanos, na relação enamorada entre todos os seres, cuja existência garante, desde logo, a sua sacralidade. A Terra, referência maior desta Poesia (será talvez a palavra que mais se repete nestes belos poemas) é o chão que este livro venera em cada nome, em cada verso, em cada silêncio. Neste livro, a Terra que não se confunde com a natureza, muito menos com qualquer con-cepção vagamente “ecológica” ou “sustentável”, em que a Terra, vista como natureza, parece ser apenas o palco de uma representação doida, laboratório de experiências de uma inteligência artificial que malogradamente começou muito antes da revolução tecnológica do nosso ensombrado tempo. Nesta Noite Vertical, a Terra não se apresenta como a soma das pedras, dos rios, das árvores, dos animais e do mar; a Terra é uma vibração na alma (não na consciência re-inventada pela modernida-de…), a alma como imensa sabedoria do corpo cuja existência tem primazia sobre as coisas, e dessa primazia nasce um excesso; só este excesso de um corpo entre corpos poderá inaugurar a “vivência” das pedras, dos rios, das árvores, dos animais e do mar num tempo outro, o tempo da conformidade dos afetos com o mundo; é esta a única inteligência possível – a que não tem fórmula ou equação, e é apenas eco desse “co-responder” ao segredo velado das coisas. 

Este livro, em que a Vida nos surge como “ofício da Terra”, abriga-se num movimento circular: Terra-Vida-Mundo, no qual a excedência do corpo nos indica o caminho do Poema. Esta não é uma poesia que nasce de um ato prévio do pensamento imposto à existência, é a existência feita Vida em co-respondência harmónica com o sentimento intuído pelo pensamento, porque “O alfabeto da Terra semeia seus dons de lucidez”. Pensar é sentir, poderíamos dizer em nota não absolutamente coincidente com um poeta maior do dito modernismo português… pensar como sentir é nomear o sentido Uno, Total, Cósmico da vida como retenção do tempo pela memória, e assim é sempre, quando não virá a “respiração suspensa”, e mais não seremos que estranhas presenças nesta Terra, já que “Danificadas as bússolas/ e anacrónicos os mapas de viagem,/ somos todos, e por igual – estrangeiros à face da Terra”. 

Arriscamos uma abordagem mais concreta (se algum dia fosse possível…) a esta poesia reu-nida em livro testamentário: na sua fulguração animal, esta poesia enleva-nos numa espécie de intui-ção sagrada, traz-nos ao fulgor de uma ancestralidade que se repete e propaga, e aí estará porventura o grande prazer desta poesia – um alumbramento perante a densificação no poema da sabedoria que a Vida nesta Terra contém (a mesma “Terra,/ que tudo dá, /tudo,/ tudo devora!”, e de nós demanda elegante perscrutação; esse prazer é o mesmo prazer de que é feito o habitar do ser humano nesta Terra… e esta afirmação (arriscada como todas) soa a Hölderlin… e soa bem, estamos em crer, mesmo se nenhum poeta é comparável, visto que também este poeta canta a Terra e os méri-tos de quem, existencialmente, a habita com sabedoria. 

A poesia de Zetho Cunha Gonçalves reunida neste livro precioso é uma poesia dos arquéti-os e dos sentidos do corpo, em comunhão absoluta consigo mesma, nomeada persistentemente pelo Poema, porque o que realmente existe, persiste e resiste; esta é uma poesia da Terra, dos amantes, uma poesia para amar, na qual a palavra, enquanto clave da memória, “É um fruto vivo e delicado/ – a Palavra,/ quando pronunciada”; isto é, uma vida autêntica acontece na palavra, quando pronunciada, e por isso se repete; a repetição da palavra assinala, em música, a proximidade da ori-gem, e é esta proximidade que concede “(…) a musicalidade e frescura inaugural que todo o poema deve conter”, como diz o poeta em nota. 

Ecoando Aristóteles, o poeta afirma que a poesia deverá tomar o lugar da história; a poesia é, em si mesma – e neste livro se comprova – o refazer permanente da verdadeira e móvel identida-de individual e colectiva através “(…) da música verbal do canto e do poema”; na sua vocação primordial de fundação do mundo, a poesia constitui-se verdadeira e única possibilidade de respeito e acolhimento do Outro e da sua diferença – “(…) Poesia como manifestação primordial da palavra fundadora e de comunhão entre os homens”. Feitos de jogos de adivinhas, provérbios, adágios, motejos e canções, muitos dos poemas de Zetho Cunha Gonçalves aprenderam a lição poética de Lao Tse e Ezra Pound; desta lição de montagem, sobreposição e colagem de poemas, sobretudo angolanos, nasce o verdadeiro “poema contínuo” (poderíamos também dizer invocando um poeta homenageado neste livro), “poema contínuo” feito pela humanidade através da liberdade poética de cada ser humano; e há ainda no dizer cantado desta exuberante poesia ecos do oriente (a soberana musicalidade contida dos haiku), a que se junta a grande e transversal tradição da poesia desta Terra, onde, por entre os relâmpagos da trovoada, é possível encontrar um “Deus rebelde ao Criador”. E há também nesta graciosa poesia lugar para o poema-tributo, para o poema-romance, ou vice-versa, já que só poderá ser poema, pois como se lê no prefácio de uma única e pleníssima frase, aposta na 1ª edição desta Noite Vertical (Língua Morta; 2017), recolhida nesta antologia do trabalho poético do autor: “A Poesia é uma coisa demasiado importante para se confundir com literatura”. Será também por esta razão que a poesia é “O verdadeiro testamento do mundo”: “Porque da-qui se levantará/ todo o Horizonte, nasces – a Terra toda/ em alfabetos, assombros,/ degraus. E se abrem os tesouros:/ vertigem: as vísceras/ iluminadas”.