A “questão feminina” na poesia portuguesa

A “questão feminina” na poesia portuguesa


Valter Hugo Mãe tem insistido no aparecimento de uma incomparável “geração de poetas mulheres”, mas o suposto fenómeno assenta desde a raiz numa incompreensão da diferença nenhuma que o género faz na expressão artística.


Nunca como hoje estiveram tão perfeitamente alinhadas as condições de industrialização total e de massificação ao nível dos consumos, atingindo já o próprio tecido das manifestações culturais, o qual se organiza e funciona como uma corporação e em função de lógicas de eficácia e utilidade, que, por sua vez, remetem de volta para metas de produção e consumo. Neste regime absurdamente condicionado, temos assistido, nos últimos anos, ao advento de um moralismo drástico, ao mesmo nível do das sociedades mais atrasadas, como previra há décadas Pasolini. Isto é fácil de detetar na forma como um certo humanismo progressista se alinhou com os setores mais reacionários ao reatar um compromisso com um puritanismo que uma vez mais nos faz retroceder, não só no que respeita à liberdade sexual, mas, sobretudo, por meio de novos modelos de repressão, os quais atingem uma vez mais a mulher antes de tudo, que raramente consegue sacudir a sua condição de excluída ou deixar de se ver instrumentalizada no sentido de assegurar a máquina de reprodução.

No célebre ensaio “Por que não houve grandes mulheres artistas?”, Linda Nochlin começa por demonstrar como mesmo esta pergunta é imprópria e deriva já de uma perceção deturpada, defendendo que a forma como enunciamos as questões reforça certos preconceitos: “Primeiramente devemos perguntar-nos quem está a formular estas questões e, a partir desse ponto, refletir a quem serve esse tipo de formulação (devemos refrescar as nossas memórias com o exemplo da conotação dada pelos nazis à chamada ‘questão judaica’).” Para Nochlin, em tempos de comunicação instantânea, as questões são rapidamente formuladas para racionalizar a má consciência daqueles que detêm o poder, e oferece o exemplo da pobreza, bem como da questão racial ou da questão feminina, para nos lembrar que, na verdade, estas obrigam a uma inversão que passaria por pôr a ênfase do lado onde começa a distorção. Assim, a “questão da pobreza” deve antes ser vista como a “questão da riqueza”, e vinca como esta mesma ironia distorce a “questão branca” em oposição à “questão negra”, para lembrar que a mesma lógica inversa se impõe face à “questão da mulher”. Mas se é necessária uma alteração radical de posição, Nochlin defende que a pergunta “Por que não houve grandes mulheres artistas?” é a décima parte de um iceberg de más interpretações e falsas conceções e, na sua base, encontra-se um vasto volume obscuro de ideias duvidosas sobre a natureza da arte, sobre a natureza das habilidades humanas em geral e a excelência humana em particular e o papel que a ordem social desempenha em tudo isto.

O ensaio vai bem mais longe, e analisa os aspetos de um certo obscurantismo intelectual que ultrapassa as próprias questões políticas e ideológicas específicas que envolvem a submissão da mulher, mas um ponto decisivo e que nos interessa aqui pôr em relevo surge no esforço de Nochlin para dinamitar essas considerações que entendem que há algo de específico à arte produzida por mulheres artistas. Esta autora nota que é habitual dizer-se que estas artistas tendem a ser mais instrospetivas, delicadas e que tratam os seus temas de forma mais matizada. Antes, Nochlin enumera extensamente um conjunto de artistas mulheres que, apesar dos desequilíbrios sociais das suas épocas, alcançaram grande projeção, e integram hoje um cânone irredutível em várias artes. E depois lança-se nesse exame a um conjunto de falsas conceções que normalmente acompanham a “questão da mulher” na arte. “Qual das mulheres artistas acima citadas é mais introspetiva do que Redon, mais subtil e matizada com o pigmento do que Corot? Seria Fragonard mais ou menos feminino que Vigée Le Brun? E não se poderia afirmar que todo o estilo rococó francês do século XVIII é feminino, se pensado a partir da escala binária ‘masculino’ versus ‘feminino’? Se fragilidade, delicadeza e preciosidade devem ser tratados como marcadores de um estilo feminino, não há nada de frágil em Horse Fair de Rosa Bonheur, nem frágil e introvertido nas enormes telas de Helen Frankenthaler. Se mulheres houve que se debruçaram sobre a infância e cenas da vida doméstica, também o fizeram Jan Steen, Chardin e os impressionistas Renoir e Monet, bem como Morisot e Cassatt. De qualquer forma, a mera opção por um determinado tema, ou a restrição a determinados assuntos, não pode equiparar-se a um estilo, muito menos a algo como um estilo feminino quintessencial.”

Logo depois, Nochlin frisa que o problema está não tanto no conceito de algumas feministas sobre o que seria a feminilidade mas, antes, na equivocada noção compartilhada com o senso comum do que seria a arte: “A ingénua ideia de que arte é a expressão individual de uma experiência emocional, a tradução da vida pessoal em termos visuais”. E, então, esta historiadora de arte norte-americana lembra que o fazer da arte envolve uma forma própria e coerente de linguagem, mais ou menos dependente ou livre de convenções, esquemas ou noções temporalmente definidas que precisam ser aprendidos ou trabalhados, seja através do ensino ou de um período longo de experimentação individual. “A linguagem da arte, materialmente incorporada em tinta, linha sobre tela ou papel, na pedra, ou barro, plástico ou metal nunca é uma história dramática ou um sussurro confidencial”, remata Nochlin. Assim, e se pensarmos nos conflitos que têm ocorrido a nível da representação artística, rapidamente chegaremos à conclusão de que não são os artistas os que lutam para se impor no mercado, mas tão-só uns quantos agentes que fazem de tudo para conquistar visibilidade, estando dispostos a concorrer em todas as instâncias para obter uma atenção especial, muitas vezes até a título de reparações ou nesses esforços de expiação da má consciência social. Isto quando o que se pretende é romper com um privilégio e não, como tem ocorrido, criar um outro de sinal invertido. E por mais investida que uma obra esteja em denunciar certos preconceitos, não é isso que a torna marcante, mas é o vigor com que se furta a categorias ou modelos pré-estabelecidos. E para situar o problema em termos literários, vale a pena referir que “o que fala no escritor”, no entender de Blanchot, “é o facto de que, de uma forma ou de outra, ele já não é ele próprio, já não é ninguém”. Num certo sentido, a escrita é algo que se conquista mais além da solidão absoluta, quando se é capaz de subtrair-se às circunstâncias que nos remetem para essa condição limitada em que não somos capazes de transcender certos limites fixados de acordo com o que a sociedade ao redor espera de nós. Leia-se um parágrafo de Ocorrências na Irrealidade Imediata, do escritor romeno de culto Max Blecher, e que é particularmente esclarecedor deste processo de libertação que ocorre por meio da escrita: “A terrível pergunta ‘Quem sou eu realmente?’ lateja no meu âmago como um corpo inteiramente novo, que cresceu dentro de mim com pele e órgãos completamente desconhecidos. A sua resposta exige uma lucidez mais profunda e essencial do que a do cérebro. Tudo o que é capaz de estremecer no meu corpo estremece, rebela-se e luta com mais força e de modo mais rudimentar do que na vida quotidiana. Tudo implora por uma solução.”

Curiosamente, esta “questão da mulher” na arte tem servido amiúde para que se evidenciem alguns agentes sempre comprometidos com o entendimento da arte enquanto produção de fenómenos ou tendências, e, entre nós, quem mais se tem guindado a esta forma de paternalismo serôdio face às poetas mulheres é Valter Hugo Mãe. Entre as tantas causas que lhe vão permitindo estar permanentemente em palco e debaixo das luzes, o responsável pela coleção de poesia “elogio da sombra” tem feito questão de nos cansar com as suas adivinhanças, auspícios, falando numa emergência de poetas no feminino, como se tal coisa pudesse formular-se nesses termos, como se o género pudesse definir uma diferença de teor qualitativo. Isto que revela, na verdade, um preconceito virado do avesso, não passa de um esquema artificial de promoção para os efeitos de chamar de volta a si mesmo o protagonismo. E, no entanto, o certo é que são cada vez mais os agentes que se fazem valer desta má consciência em relação ao estatuto das mulheres na arte, para organizar promoções bastante artificiais e, por isso, estéreis de mostras e antologias e montras no feminino. É uma forma de gueto, nas palavras da escritora argentina Leila Guerriero, que reproduz um olhar arcaico, agora submetido a um esquema mais politicamente correto, mas que serve ainda para estabelecer uma espécie de demarcação, como se as mulheres na arte merecessem uma seleção feminina. Não ver como isto abre margem a uma divisão que fere a própria natureza da arte é já embarcar numa relação deturpada, como se o género fosse uma condicionante inescapável. Falar de literatura feminina, ainda que isto seja feito no intuito de a promover, na verdade acaba por rebaixá-la. Trata-se de uma benesse indevida, uma imposição de quotas que, no fundo, apenas conduz a que certas artistas vejam as suas obras amontoadas num lote que as priva de serem lidas naquilo que há nelas de inconfundível, ficando arregimentadas para uma certa linha programática, que pode até, num dado momento, ser caracterizada por um novo fulgor, mas que acabará por subsistir e ficar remetida a um vago conteúdo de consciencialização social. Tudo se torna uma petição pública, e, com isso, a arte acaba indexada a propósitos fixados, às boas intenções que estão bem para as marchas e as campanhas de sensibilização, mas que restringem a força de transcendência de uma obra artística. De resto, veja-se como é um poeta medíocre quem nos vem dar a notícia, alguém que enquanto crítico tem tido uma intervenção irrelevante. E basta ler o enquadramento e o programa por ele gizado em linhas gerais para se perceber que o seu discurso mistura banalidades e conceções redutoras com outras bastante duvidosas ou simplesmente absurdas, num ensopado de partes soltas que, parecendo dirigir-se ao palato, na verdade, apenas serve para enfartar ou nausear um ensejo de compreender o que nos propõe a arte num dado momento.

“A mulher é uma equação que o mundo nunca permitiu ser resolvida”, diz Hugo Mãe logo no início de uma crónica publicada no Jornal de Letras, em 2018 (“O Século das Mulheres”). “A poesia é sintoma do que está por vir”, adianta umas linhas depois. “Arte de pressentimento profundo, ela denuncia muito do que outras artes e ciências apenas entendem mais tarde. Há um sem licença que faz com que a poesia das mulheres de hoje não se comporte como reação para passar a comportar-se como ensimesmamento (…) Esta geração de poetas é sem precedentes. O passado preserva as mais magníficas poetas, mas quero crer que nunca como agora se assistiu a uma geração que revelasse tão vasta quantidade de autoras, tão grande qualidade, tão entusiasmante universo discutido. De certo modo, à poesia das mulheres, com exceções, faltava-lhes o seu extremo, coisa que parecia denunciada por casos pontuais.” É fácil encontrar neste discurso aquele regime do arco-íris negro de que se servem os charlatães numa leitura a frio, pretendo que sejamos nós a preencher as lacunas e a ceder a este exercício de diagnóstico em que tudo fica em aberto e nada é sinalizado de forma minimamente concreta, não se oferecendo a um esforço minimamente sério de diferenciar ou salientar aspetos destas supostas poéticas emergentes, limitando-se a desenhar no ar, fazer aquelas caretas de quem ouve sussurros e vozes, num esforço mediúnico de nos servir de intermediário com o além da poesia portuguesa no feminino.

Esta questão da poesia feminina assume, assim, uma feição esotérica, traçada por este editor que se põe diante dos poemas como outros diante dos búzios, borras de café, linhas da mão ou astros. Este perito nas artes divinatórias já viu tudo, já sabe o que está nas cartas desta geração de mulheres poetas: “O que vejo nas poetas de agora é muito mais do que um protesto ou resistência, é liberdade. O sujeito poético deita mão da sua plena dimensão, feita de sua inteligência, desejo ou escatologia, e faz de seus assuntos um sem limite, onde o corpo se usa inteiro, a casa deixa de ser lugar de submissão, o homem acaba como sentido último da vida ou, sequer, inevitável para a realização da mulher.”

Tudo aqui sabe a essa xaropada que se usa contra todos os males embora não nos livre de nenhum, sendo o típico número de um desses vendedores de banha da cobra que presumem sempre falar perante um público mal informado e bastante crédulo, disposto a embarcar nas efabulações desses que, de tempos a tempos, nos surgem de esperanças, prestes a parir alguma panaceia. Tudo isto vai bem com aquele outro número de feira do menino de aldeia enjeitado que se revelou um prodígio nas artes malabares do beletrismo, e que, nos tempos livres, faz as vezes de santeiro descocado, a perseguir aparições, a ler a sina e pôr as cartas numa tenda perante os seus seguidores. É, de resto, curioso também que seja um poeta menoríssimo a assinar esta abdicação, como delegado sindical que vem dizer que, agora, é com as mulheres, como se a poesia fosse passível de ser alvo de uma revista apressada, como se o sexo fosse fácil de apalpar nos poemas. “De facto, o coletivo de mulheres poetas revelado desde 2000 é, como um todo, muito mais urgente do que o coletivo de homens poetas que lhe corresponde. Faz-me acreditar que se levante um século das mulheres.”

Um gesto tão enfático só podia vir de alguém que cedeu ao regime mais prosaico da literatura, a essa ufana teatralidade tão balofa quanto esvaziada de consequências própria de quem entende a arte como consolo: “Sem ingenuidade, o futuro não está para graças. Regredimos em quase todos os índices no que respeita à paridade entre géneros, no entanto, a paridade que os homens podem não querer reconhecer já não pode impedir que as mulheres se assumam. O que espero deste século é isso. Que não deixem de ser livres por mais que o mundo, que continua a ser dos homens, as queira disciplinar.” 

Valter Hugo Mãe diz-nos tudo isto como se as poetas precisassem da sua bênção. Como se o que nasce num verso não fosse uma luz de uma natureza elusiva, uma espécie de maldição. Como se a mulher não carregasse desde sempre em si toda essa anormalidade, todo esse perigo que leva a que a sociedade se tenha erguido para a impedir de ser livre. No fundo, e face ao idiotismo da compreensão do problema e a este mirífico gueto que nos vem propor, apetece lembrar Mãe de que ele cumpre, apesar de tudo, o seu papel, enquanto xamã taralhouco espalhando incenso, esse tagarela que fala em nome dos outros, a partir de um “eu” que adora espojar-se no plural, e incluir os outros nas suas esperanças. E, nisto, nunca Mãe foi mais coerente consigo próprio e os seus fins, demonstrando que aquele que fala em nome dos outros é um impostor. (Note-se, de resto, que na coleção de poesia que dirige, Mãe editou um número incomparavelmente superior de homens a mulheres). Apetece, então, citar Cioran quando este nos diz que “políticos, reformadores e todos os que reclamam ter um pretexto coletivo são vigaristas”. E surge então a exceção: os artistas. Pois “só no artista a mentira não é completa, dado que só se inventa a si mesmo”. Este filósofo de origem romena, lembra-nos que o plural implícito do “se” e o plural assumido do “nós” constituem o refúgio confortável da existência falsa. “Só o poeta assume a responsabilidade do ‘eu’, só ele fala em seu próprio nome, e só ele tem direito a fazê-lo. A poesia abastarda-se quando se torna permeável à profecia ou à doutrina: a ‘missão’ sufoca o canto, a ideia entrava o voo. O lado ‘generoso’ de Shelley torna caduca a maior parte da sua obra: Shakespeare, felizmente, nunca ‘serviu’ para nada.”

Assim, seja no feminino ou no masculino, a poesia que esteja a ser escrita ou venha a ser, faria bem em escapar deste edifício mórbido que se faz do amontoado de convicções e de desejos que se sobrepõe à realidade e nos atira para a ululante inanidade que leva Valter Hugo Mãe e outros do mesmo género (e aí, sim, o género importa) a vir falar-nos nas suas esperanças, as quais nos devolvem invariavelmente para os seus egozinhos de porta giratória.