Há duas semanas, quando escrevi uma crónica sobre os ventos reacionários que sopram dos EUA, não poderia saber que a tempestade estava mais próxima do que parecia.
Logo na semana seguinte, surgiu uma proposta de entraves “técnicos” ao direito ao aborto que a ministra da Saúde assumiu como decisão política. A proposta, que considerava o número de interrupções voluntárias da gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis na mulher como critérios para a avaliação de equipas de saúde primária, caiu como tinha de cair. Afinal era só uma brisa. Mas a nortada estava para chegar.
Segundo uma notícia publicada há poucos dias, os juízes do Tribunal Constitucional preparam-se para cooptar António Almeida Costa, que escreveu em 1984 que “as mulheres violadas raramente engravidam, citando ‘investigações médicas’ – na verdade, experiências em campos nazis”. Atenção que 1984 não é um ano qualquer, é a mesma data da Lei n.º 6/84, de 11 de maio que descriminalizou “alguns casos de interrupção voluntária da gravidez”, como a violação, um importante marco da longa luta pelo direito ao aborto em Portugal.
A notícia caiu sobre os ombros das mulheres como mais um fardo. Afinal é mesmo preciso continuar a gritar “Meu corpo, minha decisão!”, em todas as línguas, em todos os países. Perante esta notícia, a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas endereçou uma carta-aberta ao Presidente do Tribunal Constitucional para que não seja escolhido um juiz que "sustenta a ilegitimidade da interrupção voluntária da gravidez, admitindo que ela só ocorra nos casos ‘extremos’ em que a vida da mulher grávida esteja em risco ao arrepio da Constituição e da lei (…)”.
O apelo das mulheres juristas foi ouvido pour um conjunto de associações feministas, que rapidamente trataram de convocar duas concentrações: “Sexta-feira, às 18h30 junta-te a nós em Lisboa (no Chafariz da Rua de O Século) e no Porto (Cordoaria, em frente ao Tribunal) para homenagear as gerações de mulheres que lutaram pelo direito ao aborto em Portugal e dizer não à escolha de António Almeida Costa para juiz do Tribunal Constitucional”.
O manifesto afirma o que todas pensamos: não podemos aceitar para juiz do Tribunal Constitucional “que nos faz sentir a mesma vergonha que paira sobre o Supremo Tribunal dos EUA”. Afinal, como dizem as mulheres juristas, “o perfil do candidato em causa não se afigura como sendo adequado às exigentes funções de fiscalização da constitucionalidade das leis e das decisões judiciais próprias da competência" do Tribunal Constitucional.
Quinze anos depois da vitória do Sim no referendo que confirmou o direito ao aborto, continuamos alerta. Saimos às ruas num ato simbólico: “Foram gerações de lutadoras para que o aborto seguro, legal e gratuíto fosse possível em Portugal. Nem um passo atrás!”
O Supremo Tribunal dos EUA está prestes a anunciar a anulação do acórdão de 1973 que reconheceu a interrupção voluntária da gravidez como um direito constitucional. Essa tempestade não atravessará o Atlântico pacificamente, cá estaremos para lutar.