Em janeiro de 1973, quando as mulheres portuguesas ainda nem lutavam em liberdade, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos aprovou o direito de interromper voluntariamente a gravidez até à 24.ª semana de gestação em qualquer um dos estados norte-americanos. A decisão nasceu do famoso caso “Roe vs Wade”, em que uma jovem no Texas reclamou na justiça o direito a fazer um aborto.
O Expresso conta a história de “Jane Roe, pseudónimo pelo qual ficou conhecida, tinha apenas 21 anos quando descobriu que estava grávida pela terceira vez. Por não ter condições, lutou pelo direito a abortar no estado do Texas, onde a interrupção voluntária da gravidez era proibida. O caso arrastou-se na Justiça, numa luta contra o promotor Henry Wade, quando finalmente o Supremo Tribunal dos EUA reconheceu o direito constitucional de abortar. A decisão chegou tarde para a jovem que foi obrigada a dar a filha para adoção, mas fez a diferença na vida de muitas mulheres”. E conclui, de forma assustadora, que “meio século depois, tudo pode estar prestes a mudar”.
Esta semana, o jornal norte-americano “Politico” avança que o mesmo Tribunal se prepara para anular uma das decisões mais importantes da história da luta feminista dos EUA, remetendo as mulheres norte-americanas para a situação em que estavam antes de 1973. Caso o Supremo Tribunal avance, caberá a cada estado decidir se proíbe ou permite a realização de abortos legais no seu território. São pelo menos 22 estados onde a queda de Roe vs Wade resultará na proibição do aborto.
O receio é naturalmente o de obrigar milhões de mulheres a uma existência já quase sem memória, de abortos ilegais e clandestinos. Uma existência diminuída pela violação da sua saúde sexual e reprodutiva e do seu direito à escolha. Todas essas consequências não são desconhecidas de tantas personalidades que, dentro e fora da Casa Branca, declararam a possível decisão como um “ato abominável" desde logo a Presidente da Câmara dos representantes Nancy Pelosy, o presidente Joe Biden, a deputada Alexandria Ocasio-Cortez e o senador e ex-Candidato Bernie Sanders.
Mas o medo é também que um retrocesso civilizacional desta dimensão traga outras ondas de choque. O Supremo Tribunal carrega a marca do mandato do ex-Presidente de extrema direita Donald Trump, que em cinco anos nomeou três juízes conservadores, solidificando a maioria conservadora. Já noutras ocasiões, o Supremo deixou claro que estava preparado para alterar ou mesmo derrubar a legalização do aborto, o que levanta legítimas suspeitas sobre a possiblidade de o trumpismo pós-Trump vir a atacar também outras liberdades e direitos civis.
Acontece que nunca será apenas nos EUA que uma decisão desta natureza terá as suas repercussões. Além da solidariedade internacional com as mulheres norte-americanas, cabe-nos vigiar os direitos conquistados, porque o que não faltam por aí são resquícios trumpistas, sobretudo no que toca aos direitos de género.
Isso ficou à vista nas reações que vários representantes políticos tiveram no próprio momento da notícia. Refiro-me em particular ao membro do Conselho Nacional da Iniciativa Liberal e deputado municipal do Porto, Mário Amorim Lopes, responsável pela seguinte afirmação : ”na prática terá pouco efeito, porque a concorrência entre estados fará com que a mulher possa sempre fazer o aborto num estado em que esteja legalizado”.
Não quero dissecar o disparate de fazer dos direitos fundamentais uma questão de concorrência, uma espécie de “dumping social” de direitos humanos. Fica a repulsa pelas declarações de alguém que não sabe o que significou “na prática” o argumento “não faz mal, vão a Espanha”. Mas não se enganem, esse alguém é conservador. Digamos que, “na prática”, os ventos reacionários que sopram dos EUA fizeram um rasgão na capa liberal da Iniciativa que por cá dá pelo mesmo nome.