A invasão digital em curso

A invasão digital em curso


Face à imposição do regime tecnológico e das redes digitais, tem vindo a ganhar força uma economia em que há uma disputa brutal pela atenção dos consumidores, o que tem levado à erosão da nossa capacidade de concentração.


No tom caracteristicamente dúplice que lhe associamos, entre um heroísmo um tanto ingénuo e a paródia radiante, Enrique Vila-Matas tece num dado momento de “Suicidas Exemplares” uma espécie de ode aos desocupados, esses cada vez mais raros seres urbanos que se entregam às derivas do tédio, experiência que mergulha no tempo e o sente ampliar-se sem fim, fazendo com que se sintam os seus eternos náufragos. E o cenário desse exercício da saudade descrito pelo escritor espanhol é o Campo das Cebolas, em Lisboa. Com aquele deslumbramento dado a exageros e que é próprio de um turista literário que traz fisgada uma dessas narrativas em busca de figuras exemplares, Vila-Matas diz-nos que a cidade inteira está cheia de solitários dominados pela nostalgia do passado. “Sentados nos bancos públicos dos miradouros ou do cais colocados pela própria Câmara para isso, os praticantes da saudade ficam em silêncio e olham para a linha do horizonte. Parece que estão à espera de algo. Todos os dias, com uma perseverança admirável, sentam-se nos seus bancos e esperam, enquanto evocam os dias do passado. Pertence-lhes a melancolia, certa tristeza leve.” Sendo uma imagem no limite do cliché, uma espécie de paragem obrigatória quando se pretende devolver a imagem de postal que Lisboa assume, não deixa de traçar um decisivo contraste face aos caracteres de um mundo ferido de irrealidade e que, nas últimas décadas, se tem sobreposto à experiência desses lugares que aprofundam sempre algo de indizível que a mera topografia e o mapa das cidades não permite descortinar. Tem vindo a falar-se numa perda da geografia, e o filósofo de origem coreana Byung-Chul Han diz que na digitalização em curso, além de um fenómeno de subjectivação total da experiência, é como se a terra estivesse a desaparecer por completo. Vamo-nos desacostumando do assombro perante algo que permanece esquivo, que mantém a sua diferença além do alcance daquilo que pode ser decalcado ou representado. Para este pensador, o “digital” significa a tradução em fórmulas numéricas, o que arrebata do mundo o elemento romântico, a sua força misteriosa, a sua estranheza. O que este processo em curso faz é transformar tudo “em conhecido, em banal, em familiar em like, em idêntico”. Chul Han diz que esta rede torna tudo comparável e, portanto, identificável. “Perante a digitalização do mundo seria necessário devolver ao mundo o seu romantismo, redescobrir a terra e a sua poética, devolver-lhe a dignidade do misterioso, do belo, do sublime.”

Além da dissolução do espaço geográfico, nos últimos anos têm-se sucedido os estudos que apontam para os efeitos dessa subjectivação total da experiência, e da forma como as crianças que cresceram em ambientes dominados pelos media são capazes de conexões diferentes daquelas que atingiram a maturidade noutras condições. É possível identificar a forma como uma nova economia redefiniu inteiramente o horizonte para o qual estamos voltados, sujeitos a um efeito de hipnose, e não deixamos de sentir como tudo em nós participa de um esquema de programação, definido segundo a disciplina conhecida como neuro-marketing, que estuda a actividade cerebral para orientar as técnicas de captação da atenção do consumidor. A nostalgia do passado não faz com que abundem por aí esses solitários à margem desta guerra mental na medida em que a atenção se tornou um verdadeiro campo de batalha, um bem difícil de obter e pelo qual todos lutam. A cada dia que passa, acumulam-se mensagens de correio electrónico, sms, uma diversidade de notificações, convites e apelos que procuram convocar-nos neste ou naquele sentido, causas urgentes num efeito de sobreposição e saturação que, em grande medida, é promovido pelo regime da informação, a qual ajuda a tornar-nos míopes e ofegantes. Byung Chul Han identifica os sintomas da dispersão temporal que levam a que sintamos os efeitos de uma permanente dissincronia. E, segundo ele, esta atomização do tempo não permite a experiência de tipo algum de duração. O tédio desaparece, e damo-nos conta também que “a vida não se enquadra numa estrutura ordenada nem se guia por quaisquer coordenadas que engendrem uma duração”. Os verdadeiros náufragos somos nós, mas a corrente é de tal modo forte que é impossível escapar-se, a menos que nos furtemos de forma exemplar a este circuito tecnológico e nos sentemos nos bancos públicos ou nos disponhamos a passear perdidamente pela cidade, recuperando essa ligação aos espaços aceitando a deriva, ultrapassando o aborrecimento ao caminhar, tolerando à medida que o tédio tenta oxigenar de novo a nossa actividade cerebral. As solicitações que se acumulam e nos cercam no campo tecnológico levam a que nos identifiquemos com a fugacidade e o efémero, explica Chul Han. “E, assim, cada um de nós próprios se torna qualquer coisa de radicalmente passageira.” Este pensador liga a atomização da vida a uma atomização da própria identidade, de tal modo que cada um passa a ter-se comente a si mesmo, “o seu pequeno eu”.

Esta sensação é aumentada por essa forma de assédio concertado e que faz com que passemos o dia a tentar aliviar-nos da carga de todas as notificações que torpedeiam a nossa atenção. Mas tudo o que fica sem resposta não deixa de causar uma pressão, um lastre cognitivo que nos esgota. Boa parte desses apelos acabarão engavetados, ou irão directamente para uma zona reservada ao ruído. Mas as aplicações que instalámos por esta aquela razão, continuam o seu bombardeamento, diluindo-se a fronteira entre solicitações pessoais e os imperativos do trabalho. O que acaba por acontecer é que, a partir de uma certa hora, acabamos por ceder ao regime de piloto automático, o que abre caminho a essa forma de fantasmagorização em que os contactos que mantemos apenas nos afundam naquela sensação de uma experiência destituída de intensidade, a qual corresponde a esse circuito espectral de contactos que se sucedem na condição discrónica que domina a maior parte dos nossos dias.

Num esforço para gerir o aluvião de informações que nos chegam por múltiplos canais, é necessário mudar o foco da nossa atenção de forma constante. Assim, surgem dois conceitos em oposição, tendo sido uma professora da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, chamada N. Katherine Hayles quem desenvolveu a ideia de uma atenção profunda que se contrapõe à de hiperatenção. Num artigo de enorme sucesso publicado numa revista especializada, em 2007, a autora explicava que a primeira se caracteriza pela incidência num único objecto durante muito tempo, sendo o exemplo mais óbvio a leitura de um volumoso romance literário, ao passo que a segunda procede por rápidas oscilações entre diferentes tarefas e múltiplos fluxos de informação, buscando altos níveis de estimulação exterior. A respeito deste segundo modo, e sobretudo para aqueles que foram apanhados por esta diferença cognitiva e que é a marca de uma mudança geracional, levou a que cada vez mais pessoas cheguem ao fim do dia a sentir-se absolutamente exaustas. Um estudo sobre tele-trabalho publicado na revista “Computers in Human Beahaviors”, no ano passado, advertia que “o ruído digital gera confusão, perda de controlo, stresse, um processamento pouco eficaz da informação e, inclusivamente, um aumento dos sintomas depressivos”.

E não se trata apenas de um risco de overdose de estímulos, ou aquilo a Chul Han se refere como “enfartes psíquicos”, mas os especialistas em neurociência afirmam que começamos a sofrer de uma incapacidade de codificar as nossas lembranças, como se o nosso arquivista estivesse constantemente grogue, e incapaz de etiquetar e arrumar os processos devidamente. Ficamos assim com a memória toda enleada, de tal modo que é como se um vírus informático atacasse o próprio sistema de organização interna e afectiva, do qual dependemos para sobreviver aos achaques que nos tornam susceptíveis à perda de ânimo e de pulsão vital. Em “A Sociedade do Cansaço”, Chul Han admite que teremos passado do paradigma imunológico (das doenças virais e bacterianas, provocadas por elementos exógenos) para um paradigma neuronal, o qual remete para doenças civilizacionais como o burnout ou o transtorno por défice de atenção com hiperactividade, os quais decorrem precisamente de um excesso de resposta positiva por parte do próprio sujeito. E tendo em conta que estamos ainda a lidar com os efeitos de uma pandemia que nos submergiu numa experiência abrupta em que ficámos subitamente isolados e confinados, ainda mais dependentes dos estímulos provindos das redes digitais, é fácil entender que tenhamos dificuldade em escapar a este processo de uniformidade e repetição, o que dificulta ainda mais a capacidade da memória mimetizar uma espécie de organização espacial, urdindo um mapa de ligações que possa ser activado e resistir face à opressão da instantaneidade do regime tecnológico que nos cerca.

No seguimento da pesquisa desenvolvida por Katherine Hayles sobre a atenção profunda, Cal Newport, professor de Ciências da Computação da Universidade de Georgetown, entende que a concentração, que antes era uma capacidade que o tédio nos forçava a desenvolver, face ao estado de excitação permanente que a sociedade da sensação exacerbada, que nos vicia num regime dominado pela sucessão de imagens chamativas e espectaculares, está a tornar-se um superpoder na nova economia. Havendo uma escassez no que toca a indivíduos capazes de se abstraírem das distracções e dos estímulos com que são bombardeados diariamente, aqueles que são capazes de desenvolver e afinar as suas capacidades cognitivas tornam-se são uma espécie de Crusoés capazes de observar criticamente o imenso naufrágio da civilização moderna. Se a partir de um certo limite o défice de atenção profunda é categorizado como uma doença, Hayles tinha já defendido que uma combinação equilibrada dos dois regimes de atenção poderia ter efeitos muito vantajosos em termos de pedagogia e desenvolvimento das capacidades do indivíduo. A hipótese que Newport sugere em “Deep Work”, um livro publicado em 2017 com a chancela da Actual, é que as pessoas que venham a cultivar esta alteração de regime no que toca à atenção serão capazes de apreender informações complexas e realizar em pouco tempo tarefas exigentes, uma vez que a economia da informação aponta cada vez mais para sistemas que estão em permanente transformação. A teoria do livro, que não se afasta do regime de empreendedorismo e da perspectiva de sucesso profissional num mundo cada vez mais frenético e desgastante, é de que, a largo prazo, não serão os influencers ou as celebridades das redes sociais a triunfar, mas aqueles que sejam capazes de desligar daquele circuito por longos períodos, nomeadamente nas alturas em que têm em mãos alguma tarefa mais exigente, não se deixando, de qualquer modo, enredar e ser arrastados por aquele aluvião.