Até o best-seller já começou a apertar o cinto

Até o best-seller já começou a apertar o cinto


Sempre houve uma ligação entre os best-sellers (ou, numa tradução paródica, as bestas céleres) e o chamado calhamaço, livros de lombada bem generosa. Mas um estudo a partir das listas dos mais vendidos do The New York Times indica que, na última década, a extensão dos livros mais vendidos é cada vez menor.


Na sua milenar carreira, o livro tem enfrentado todo o tipo de peripécias e desafios, e vale a pena lembrar que, ao longo de toda a Antiguidade e da Idade Média, até à invenção da imprensa, era um facto absolutamente espantoso que certas obras pudessem sobreviver por períodos de vários séculos, transformando-se num legado em que um fio de voz se mantinha mais ou menos intacto contra a fricção de tudo aquilo que se lhe impunha como obstáculo, sendo um esforço sobre-humano impedir que certos livros escapassem ao destino da maioria, que estavam constantemente a perder-se. Além dos incêndios e das cheias que tantos terão destruído, e que apesar de serem eventos catastróficos eram tidos como visitas esperadas, havia ainda o desgaste pela utilização, o apetite das traças e os estragos provocados pelo clima húmido. Tudo isto obrigava a que os livros voltassem a ser copiados de vez em quando, um por um, o que fazia da bibliofilia uma obsessão discretamente heroica no sentido de impedir que certas obras se precipitassem no esquecimento. Irene Vallejo propõe o exercício de cada leitor imaginar o que seria se fosse obrigado a dedicar meses inteiros da sua vida a fazer cópias à mão, palavra por palavra, dos livros que mais admiramos, e isto para evitar a sua extinção. “Quantos se salvariam?”, questiona, e logo vincaesse milagre coletivo que foi realizado ao longo das eras graças à paixão desconhecida de muitos leitores anónimos dedicando-se a esse esforço para unir “os pedaços dispersos do Universo até formar um conjunto com sentido, uma arquitetura harmoniosa perante o caos, uma escultura de areia, o refúgio onde protegemos tudo aquilo que receamos esquecer: a memória do mundo”. Por fim, cita J.M. Coetzee, para quem um clássico é precisamente “aquilo que sobrevive à pior barbárie, aquilo que sobrevive porque há gerações de pessoas que não se podem permitir ignorá-lo e, portanto, agarram-se a ele a qualquer preço”.

Hoje, no entanto, é precisamente o prestígio desta intricada e absorvente demanda o que tem levado tantos dos agentes no setor do livro a impor à sua volta uma infindável patranha, esquecendo como o tempo e o seu efeito de esquecimento acabam por aplacar ou corrigir o lado artificial de um culto que se ergue à volta de espécimes que ainda não provaram nada, numa época que deixa como rastro essa outra forma de vazio produzido pela ânsia de novidades, dando lugar a um regime de distrações efémeras, à promoção de obras absolutamente estéreis. Em resultado disto, há até alfarrabistas ou livrarias que se têm dedicado a vender livros a peso, sinalizando, em muitos casos, uma espécie de abundância que se tornou o próprio incêndio ou inundação que atinge hoje a literatura, sepultando as obras mais relevantes que vão sendo publicadas num dado momento. No fundo, se o tempo pode revelar-se o mais terrível de todos os críticos, face ao excesso de títulos que se publicam, a herança que vai sendo deixada pelos editores atuais aos futuros leitores pode vir a a assemelhar-se a algo como uma lepra, como se estendesse uma sombra que nos fizesse perder os dedos, a atenção, sendo um impedimento ao estado de maturidade no que toca ao esforço de ler e decifrar o que de melhor nos chega.

Alexandre O’Neill diz-nos que essa decifração é uma conquista que é feita quando a nossa intimidade com uma determinada obra foi alcançada à nossa custa, resultando de um lento, longo amor por ela. O certo é que nenhum outro setor como o do livro se aplicou tanto na desvalorização disso mesmo que produz e que coloca no mercado. Hoje, perante o cerco à atenção, com todas as distrações e estímulos a que estamos sujeitos, os leitores sentem essa lepra a atuar ao nível das ligações que são capazes de fazer, dos núcleos de memória que resistem contra todas as investidas dessa forma de cultura paralela que se nos impõe por meio da desagregação. O nosso poder de associação é crucial para esse esforço de sobrevivência no tempo, esse empenho em ligar-se profundamente às coisas que cada um considera cruciais e, desde logo, à consciência de que não estamos sozinhos no mundo, e à certeza de que há mais mundos. É O’Neill quem lembra como a leitura, essa na qual buscamos prazer, proveito e exemplo, “dimensiona-nos corretamente, evitando que descubramos a pólvora todos os dias ou saltemos como estridentes araras para o ombro do desgraçado que nos passar ao lado”. Contudo, e se todos os índices nos dizem que a leitura está em declive, e se a atenção tem vindo a tornar-se cada vez mais dispersa e a ficar diminuída, é indubitável que o ambiente tecnológico e o aluvião de estímulos a que este nos sujeita tem muito a ver com isso, sendo que há já um termo – infoxicação – que tem vindo a ser utilizado para falar nesse acosso permanente das redes sociais e aplicações engatilhadas aos nossos nervos por meio de notificações e alertas, todas as formas de conexão eletrónica que procuram fazer das nossas mentes um sistema integrado, num regime de colmeia, dirigindo-nos para conteúdos audiovisuais e múltiplos canais que nos vão tornando reféns desse pasta processada que nos afunda num limbo operacional.

Entretanto, um estudo baseado na lista dos livros mais vendidos do The New York Times, indica que, nos últimos anos, até o tamanho das chamadas bestas céleres tem vindo a minguar. Os livros mais vendidos cada vez têm uma extensão menor, e, assim, mesmo aquele negócio das livrarias que avaliam o livro pela largura da lombada poderá ser impactado, uma vez que os calhamaços podem, num futuro não tão distante assim, vir a ser declarados os mamutes do passado. Se o livro é, sobretudo, um recipiente onde o tempo repousa, uma prodigiosa armadilha com a qual a inteligência e a sensibilidade humana venceram essa condição efémera, fluente, que levava a experiência do viver para o nada do esquecimento, como diz Emilio Lledó, o facto de a nossa época valorizar sobretudo essa reciclagem das experiências, ao ponto de interessar menos aquela lição que se detém do que a sensação da constante redefinição de planos e a vertigem do efémero, é de esperar que o livro deixe de assumir a presença de um monumento portátil, com as suas letras que contêm vozes ao longo dos tempos, para passar a competir pela atenção momentânea ou esporádica de um leitor que se distribui diariamente entre uma série de outros formatos e conteúdos que, entretanto, já reformataram inteiramente a sua organização cerebral. Assim, a leitura como experiência imersiva que consegue recriar uma relação de intimidade nuclear e que levanta uma barreira contra os ritmos e ciclos do mundo à nossa volta está a perder eficácia. Cada vez mais, o livro compete nessas águas tumultuosas que tentam ensopar a nossa atenção. 

De acordo com uma pesquisa realizada pela Wordsrated, uma organização norte-americana sem fins lucrativos dedicada a apurar dados relevantes sobre o mundo dos livros e da edição, na última década – entre 2011 e 2021 -, os livros mais vendidos nos EUA, segundo as listas do Times, e incluindo tanto ficção como não-ficção, virão a sua extensão média cair 51,5 páginas, de 437,5 para 386 páginas, o que não deixa de ser uma medida de lombada bastante generosa. Isto significa que, em 10 anos, o encolhimento dos livros se cifrou numa taxa de 11,8%. E a probabilidade de um livro com mais de 400 páginas entrar na lista dos mais vendidos caiu em 29,5% neste período, o que significa que os calhamaços estão já a ver o seu domínio, antes seguro, claramente ameaçado. E outro dado relevante que este estudo apurou dá-nos uma ideia da fugacidade reinante no mercado editorial, uma vez que os livros que alcançaram uma posição entre os mais vendidos em 2021 só se mantiveram ali por metade do tempo em comparação com os que foram eleitos uma década antes. Estes indicadores podem parecer supérfluos, e em parte são, mas tornam-se instrumentos de análise muito significativos para se ter em conta a evolução desse produto cultural que foi apelidado, entre nós, de besta célere. Foi O’Neill quem recolheu o achado numa das suas crónicas, lembrando que este servia bem para caracterizar a qualidade mediana destes livros, lembrando que o best-seller é um produto perfeita (ou eficazmente) projetado em termos de “marketing” editorial e livreiro. “É para se vender – muito e depressa – que o best-seller é construído com os olhos postos num leitor-tipo que vai encontrar nele exatamente aquilo que esperava. Nem mais nem menos.” Assim, se em tempos os livros foram uma mercadoria distinta, um engenho fabuloso que permitia “manter o esqueleto dos dados diferenciados sob o músculo e o sangue da imaginação” (Irene Vallejo), se foram perseguidos como autênticos tesouros, “presas silenciosas, astutas, que não deixam rastro nem pegada”, agora, tornaram-se eles os caçadores de mentes que são aliciadas recorrendo a estratégias bastante deselegantes, e, em parte, essa perda de estatuto por parte do livro, liga-se à própria dinâmica que passou a funcionar no centro da operação editorial e livreira. O best-seller inclinou o plano de tal modo que este setor passou a funcionar em dois planos antagónicos. De um lado há essa desembestada corrida ao ouro de um livro que, alcançando um êxito de vendas desmesurado, permite equilibrar uma série de outras apostas fracassadas, do outro lado persistiam com todas as dificuldades que são conhecidas aqueles esforços editoriais e livreiros no sentido de fazer valer os livros que se inscrevem nessa longa tradição de preservar as nossas criações valiosas em palavras, nesse sopro de ar que tanto pode conter, desde as ficções que inventamos para dar sentido ao caos e sobreviver nele, aos conhecimentos essenciais ou nem tento, mas que decidimos ir raspando na dura rocha da nossa ignorância. Para definir o best-seller, O’Neill usa de uma distinção que permite salvar livros que, pelos seus enormíssimos méritos, e “por razões pontuais e, muitas vezes extrínsecas à sua própria feitura, conheceram grandes êxitos de vendas”. Oferece dois exemplos dessa excelente literatura que não se confunde com as gerais bestas céleres: O Nome da Rosa, de Umberto Eco, e Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar. E explica que, “enquanto o best-seller é esquemático, quer dizer, não comporta mais do que o necessário, em termos de ingredientes, para comover (ou motivar, como é costume dizer-se) os simplórios, o livro ‘normal’ nem pensa nisso. Nascido de uma necessidade interior, o livro ‘normal’ chega ao leitor de dentro para fora. O best-seller é exatamente construído ao contrário: chega de fora para dentro ou, até, de fora para fora, visto que a sua penetração no leitor não é nenhuma, ao passo que a sua propagação é imensa”.

De acordo com Dimitrije Curcic, diretor de investigação da Wordsrated, o problema não é que a atenção esteja a decair, mas antes que esteja a ser “roubada”, e por essa razão é mais difícil, em seu entender, que os leitores atuais se comprometam com livros mais extensos, empreitadas que comportam em si mesmo um grande investimento do leitor apenas para atravessar esses quilómetros que cabem em letra de forma no labirinto ordenado que há num livro. Por isso, Curcic diz que os leitores estão a tornar-se mais modestos e realistas, elegendo livros cujo percurso na sua extensão não lhes exige o impossível. Já nem se trata, portanto, de discutir as profundidades que uma obra literária convoca, obrigando por isso o leitor a um mergulho em apneia, mas está em causa até esse compromisso temporal, essa necessidade de romper com o mundo para viajar segundo um outro ritmo.

Em Portugal, os “topes” de vendas resultam num espelho em que praticamente não há leitor que goste de se remirar, mas o facto é que, anos após ano, são os calhamaços de ficção sem grande valor literário a par de êxitos que chegam de fora os que alcançam mais destaque. E mesmo muitos dos livros produzidos cá dentro, apesar do selo nacional, seguem essa receita que foi sendo aprimorada pelas forças de uma economia globalizada que alterou completamente a ecologia dos livros, o seu ecossistema. Mesmo pensando o fenómeno na sua dimensão literária, o que excluiria por princípio as bestas céleres, entre nós foi já notado por António Guerreiro como vigora hoje um regime de adesão forçada em que os editores acabam por ser forçados a participar neste jogo ecológico, isto depois do advento de uma crescente concentração da indústria editorial que, ao ser consumada, produziu um mundo literário homogéneo, dominado pela língua inglesa e pela emergência de uma espécie de “romance-mundo” standardizado, facilmente partilhável porque já é escrito numa língua de tradução. Para o crítico da cultura, que retoma esta reflexão com alguma frequência na crónica que escreve no Público, “a questão de uma ecologia literária coloca-se a vários níveis. Desde logo, ao nível das literaturas nacionais e, muito especialmente, naquele da diminuição do número de existências de cada espécie. Sabemos que o desequilíbrio ecológico começa primeiro com a diminuição de exemplares das espécies mais vulneráveis e torna-se um desastre quando há espécies que se extinguem completamente.” E é este risco da extinção do princípio ecológico em que a literatura vale como “um sistema planetário” aquilo que está colocado em risco, sobretudo quando já nem o mundo da ficção literária consegue impor-se face a formas de ficção que, do lado do regime audiovisual, determinam que hoje a nossa experiência a esse nível resida cada vez mais do lado de uma cultura de consumo passivo. Mas em grande medida foi para aí que nos conduziu o fenómeno dos best-sellers, pois, como O’Neill notara, este tipo de produtos, ao fim de alguns anos, estão esquecidos ou, então, foram postos em cinema ou em TV e serão, por virtude dessa adaptação, lembrados ainda durante uns tempos, quase nunca em termos de literatura, coisa que nunca foram, mas apenas de história, ou seja, enquanto argumentos ficcionais que podem ser adaptados para novos formatos e veículos de propagação celerada. “O cinema ou a TV não podiam senão tornar ainda mais liso o que liso e correntio era”, vinca O’Neill. E refere ainda que “o best-seller é feito a pensar num leitor ‘espremido’ por computador e serve a esse leitor tanto quanto lhe pode servir qualquer outro objeto de conforto. É um típico produto da chamada indústria cultural. Toma, exteriormente, a forma de livro para melhor se confundir com os verdadeiros livros”. O’Neill entende que se trata de “uma espécie de ornamento (do espírito, da estante ou do caixote do lixo…) e cumpre, quase sempre, o seu papel, virada a última folha”. Conclui finalmente lembrando que se, hoje, “a literatura integra áreas cada vez mais vastas, uma há que não pode integrar, a do best-seller, sob pena de se transformar no contrário de si mesma: o fabrico e o consumo desenfreado de um produto que por acaso se chama livro”.