Jean Cocteau. A cicatriz que sinaliza a queda do anjo pelo homem

Jean Cocteau. A cicatriz que sinaliza a queda do anjo pelo homem


Aníbal Fernandes traz-nos o retrato íntimo de uma das figuras centrais da cena artística em França, um estranho príncipe, que mergulhou na frivolidade da época sem perder a virtude de choque que define toda a grande arte.


Os poetas revelam-se a si mesmos através daquilo que dizem sobre outros poetas. E, neste capítulo, poucos terão sido tão generosos como Jean Cocteau, que despendeu larguíssimos recursos no esforço de impor a sua admiração pessoal por tantos desses seres singulares, fazendo ver como a escrita pode tornar-se uma forma de resolução num mundo que poucas satisfações nos dá, um mundo a que falta clareza, e que pouco entende desse ímpeto que leva quem ama a escrever nas paredes, quem tem em si a raiz de uma outra visão das coisas a preferir resvalar para a solidão de forma a não ser abandonado por essa razão feroz. Uma obra admirável aproxima-se desses actos associais que, segundo ele, “são todo o encanto de um mundo plural que os repele”. Cocteau adverte ainda que não devemos esperar dos grandes autores que condicionem de tal modo os seus impulsos de forma a gerir para nosso regozijo fantasias linearmente ordenadas, e que estes não são também os produtores de obras de uma perfeição que gela. “Pelas fraquezas é que uma obra nos toca e é copiada”, lembra-nos ele. “Quanto mais as tiver, mais ar de pedra caída de um astro. Strindberg maravilha-nos porque não saberia andar de mão em mão. Cai da lua. Está rodeado de vazio, eriçado de espinhos, eriçado de luz dura. Não lhe pega quem quer. No seu contacto não nos é consentido agarrar, apenas conhecer. Nenhum segredo conseguiremos devassar-lhe.” Veja-se ainda o que diz sobre Picasso, numa passagem que combina idealmente os aspectos mais enervantes e admiráveis desta escrita, com uma mordacidade que abre espaço ao paradoxo e a uma capacidade de engendrar drama, cor, num fluxo que consegue cativar-nos e causar enlevo sem deixar de ser incisivo: “Este artista completo é formado por um homem e uma mulher. É o cenário de terríveis cenas domésticas. Nunca se partiu tanta louça. Mas o homem, ao fim de contas, tem sempre razão e bate com a porta. Resta da mulher uma elegância, uma suavidade de entranhas, uma espécie de luxo que desculpam os que temem a força e não conseguem seguir o homem fora da sua habitação.” Há aqui inúmeros planos, uma fórmula complexa que se organiza a partir de um ágil estilo aforístico. Na base, temos a frase de Cocteau que impressiona pela forma como produz uma espécie de vertigem entre a sua desenvoltura articulada e lúcida, deixando, no entanto, que o seu significado se nos esquive, produzindo uma relação fluida e, ao mesmo tempo, misteriosa, enigmática. Assim, Cocteau viria a ser admirado pela desarmante simplicidade com que se atirava a questões bastante espinhosas. Eis um exemplo: “Fala-se muito do maravilhoso. No entanto, será preciso compreendermo-nos e saber do que se trata. Se eu tivesse de defini-lo, diria que se trata do que nos afasta dos limites onde temos de viver, parecido com uma fadiga que se espreguiça exteriormente ao nosso leito de nascimento e morte.”

Originalmente publicado em 1947, “A Dificuldade de Ser” inclui alguns dos textos autobiográficos mais celebrados de Cocteau. Uma parte deles tinham já aparecido retalhados ou na íntegra numa antologia feita por Aníbal Fernandes para a Assírio & Alvim – “Visão Invisível” (2005) –, e revelam-nos este ser que, praticamente desde a adolescência, se precipitou na cena artística, e manteve um contacto bastante intenso com personalidades marcantes daquele período, como Sarah Bernhardt, Roland Garros, Proust, Picasso, Modigliani, Apollinaire, Max Jacob, Blaise Cendrars, Braque, entre tantos outros. E se a lenda rapidamente se precipitou sobre ele, cobrindo os factos da sua existência e dando dele a imagem de um príncipe ansiando a adulação, um anjo bizarro e um prestidigitador que não abria mão dos truques mais fáceis para capturar a atenção do público, a verdade é que Cocteau foi sempre sacando trunfos inesperados e que forçavam aqueles que por ele foram manifestando desprezo a organizarem uma espécie de guarnição sempre a postos para reagir às suas assombrosas investidas. Se tantas vezes foi alvo de chacota pela adesão excessiva aos aspectos mundanos da vida artística, soube cultivar uma presença inquietante, numa relação que tinha tanto de sedução como de antagonismo. Além de ter sido sempre o primeiro a apontar as suas próprias limitações, alargou essa relação crítica tocando o universo ao redor, através de uma crónica fragmentária e pulsional, um retrato abrangente e obtido de forma dolorosa, entendendo como as figuras se atravessam, como algumas se impõem de forma tão devastadora que isso chega a ser sentido como uma vil ofensa. Na verdade, os seres não se equivalem, a relação é altamente desigual. Numa dada época, um espírito pode arrastar atrás de si uma multidão, contê-la nos seus dramas, e, em sentido diverso, há tanta gente que não sente que tenha em si luzes ou sombras para encenar um espectáculo que possa entreter sequer a sua solidão, o que não impede tantos que assim, em certas horas, se reconhecem, de caírem na zona das ilusões, ensaiarem os seus truques imbecis por trás de uma cortina, e convencerem-se de que também merecem uma audiência. No fundo, como notou certa vez Ernesto Sabato, ser original é, de certa forma, estar a pôr em evidência a mediocridade dos outros. Ora, Cocteau podia ser mais ou menos inspirado, mais ou menos admirável, mas era certamente um espírito capaz dessa operação radical que passa por confrontar o gosto da época, atacar as expectativas do público. “A multidão ama as obras que impõem o seu canto, que a hipnotizam, hipertrofiando a sua sensibilidade até adormecerem o sentido crítico. A multidão é feminina: gosta de obedecer ou de morder.”

Eis algo a que sempre poucos se atreveram, esse desafio constante do regime em que o artista se expõe. Ele recorda-nos a atitude de Radiguet, que dizia: “O público pergunta-nos se é a sério. Eu pergunto-lhe se ele próprio é sério.” Aí está uma linha de demarcação diabólica, sobretudo hoje, quando ninguém está muito certo da sua posição, quando todos se pretendem isolar, e mesmo na audiência de um espectáculo damos por uma mudez que se revira em múltiplas manifestações, está em convulsão. Foi há muito prometida uma espécie de sublevação das audiências, promessa um tanto eufórica e que não chegou a concretizar-se. De qualquer modo, o palco está cercado. Há uma tensão da parte desse público que anseia invadi-lo, tornar-se ele o centro da performance. De um lado estão os que julgam que chegará a sua vez, e que, assim, aguardam em expectativa, tomam notas, afiam armas detrás dos muros de um pobre imaginário, e, do outro lado, temos a crescente horda dos ressentidos e humilhados, que gostariam ao menos de pegar fogo ao teatro. “É o caso das pessoas que troçam do génio à falta de serem tocadas por ele”, lembra Cocteau. E continua: “Há muitos espíritos que confundem ser atingidos com transformarem-se em vítimas, admirar com sentirem-se enganados. Crispam-se contra a hipnose. É fácil, infelizmente, porque o poeta joga com o seu fluido de través e possui somente os mais frágeis dos meios de convicção.”

Por meio dos vícios, do ópio, Cocteau chegava a desejar-se embalsamado vivo. Para escapar ao que sentia como o pior na sua natureza. Nunca deixou de o confessar, de examinar-se a essa luz crua que persegue todas as nossas fraquezas: “Uma força má impele-me aos escândalos como se fosse um sonâmbulo em cima do telhado. A serenidade da droga abrigava-me contra essa força que me obriga a estar na berlinda, quando a simples leitura de um jornal chega para me destruir.” Neste aspecto, Cocteau foi sempre o maior dos seus detractores, e mostrou a verdadeira natureza de um um crítico, que é o ímpeto que o faz investir, ser implacável na forma como o seu génio dá caça a qualquer que seja a presa que tem por diante, isto pelo simples facto de esta lhe ter mostrado essa vulnerabilidade instigante. “Não deve confundir-se a inteligência, hábil a entregar o seu homem, com esse órgão sem assento em nenhum lado e que nos informa sem apelo sobre os nossos limites”, anota ele. E no que toca a esse combate que cada um está obrigado a travar consigo mesmo à saída ou à entrada de cada processo de criação, ele vinca que “ninguém conhece melhor do que eu as suas fraquezas, e quando me acontece ler um artigo qualquer contra a minha pessoa, eu penso que daria uma pancada ainda mais certeira, que o ferro se enterraria até ao punho e só me restaria dobrar as pernas, deitar a língua de fora e ajoelhar-me na arena”. Noutra hora, disse simplesmente isto: “O impudor é o meu heroísmo; lavo a roupa suja em público.” E, a par disto, vem aquela incapacidade de se frear, a própria mão testemunha contra o artista, entrega-o às autoridades, às vezes simplesmente para ter matéria: “Eu sangro sangro/ as mãos sagram-me os olhos sangram-me/ a minha boca e os cabelos sangram/ escorre-me um sangue que desce/ como cabelos até aos pés./ É o sangue do suplício,/ o sangue do corpo desumano/ que corre corre/ para me sujar as mãos.” Em recordação de como as coisas começaram a entregar-se a este abalo, lembra como era na infância: “Eu desenhava. Escrevia. Entregava-me às cegas a esses dons que nos dispersam e, se não forem canalizados, correspondem a uma sífilis. Era natural que me gabassem. Eu não me opunha. Assumia as consequências. Cheguei a seduzir muita gente e a embriagar-me com os meus erros.” Nenhum outro artista como ele viveu de forma tão dilacerada a contradição terrível se saber como só a serenidade e a solidão podiam valer-lhe, reconhecendo uma e outra vez que “a invisibilidade é a condição para a elegância”, de que esta acaba se for notada, e assim mesmo, como recorda Aníbal Fernandes, não soube impedir-se de ceder a esse abismo tentador, vivendo ao contrário da invisibilidade. “Foi tão fotografado como Dalí ou Picasso, teve o seu rosto tão conhecido como o dos actores. Nas convivências mundanas, encenava um jogo de mãos para cercar tudo de frases que não esqueciam a exibição de uma inteligência vertida em palavras com posições novas ou já esquecidas do seu sentido.” Quer isto dizer que as acusações de artifício, de brilhantismo enfeitado pelas facilidades do salão não erravam o alvo, mas ele mergulhava, ia ao fundo e como um afogado, adquiria ao regressar à superfície um rosto sobrenatural, circulando entre os vivos, trazendo do leito novos textos, noções surpreendentes, sonhos que deixavam a sensação de um dilúvio inescapável. Sempre teve visões de poeta, e estar pareciam redimi-lo quando, fosse o seu talento menor, teria sido muito fácil condená-lo. Aníbal Fernandes relata até como, certa vez, Philippe Soupault, avaliando-se por cima, se atreveu a formular este anúncio radical: “Se o nome de Cocteau entrar na literatura, saio eu”. Num saboroso parêntesis, Fernandes acrescenta: “E a verdade é que ele – praticamente – saiu.” Mas a reflexão de Cocteau é tão profunda precisamente por ele ter reconhecido como a celebridade lhe provocava um efeito de sedução irresistível, porque muitas vezes aquele que sangra por amor só encontra como espelho essa imitação que esvazia a ferocidade genuína dos seus gestos. “Sou, sem dúvida, o poeta mais desconhecido e o mais célebre. Acontece-me ficar triste porque a celebridade me intimida e só gosto de suscitar o amor. Esta tristeza chega-me da lama que nos impregna e contra a qual me insurjo… O artista estava outrora rodeado por uma conspiração de silêncio. O artista moderno rodeia-se com uma conspiração de ruído. Nada deixa de ser discutido e desvalorizado.”

Se de qualquer texto saído da sua pena, fosse escrito sob que pretexto fosse, parece apanhar um vislumbre da vida em debandada, de figuras impressivas, tortuosas e transgressivas que circulavam à sua volta, Cocteau soube participar e sentir-se como alguém que é deixado para trás, tantas vezes uma viúva, observando e registando aventuras extraviadas e errantes, e foi assim lançando uma teia em que enleava de forma folgada uma epopeia dos obscuros, impregnada de um forte amor à vida e de uma picaresca familiaridade com a morte. “Aproveitei-me, confesso, de certos acidentes/ Do mistério e de erros de cálculos celestes./ Aí está toda a minha poesia: eu decalco/ O invisível (o que para vós é invisível)”, lê-se nuns versos traduzidos por David Mourão-Ferreira. Além do vigor assombrado das suas frases ou versos, daquela elíptica insolência que é resultado do maravilhamento que conduz a uma cumplicidade com aqueles que o inspiram, este poeta fez ver essa cicatriz ou esse apêndice que marca quem se move entre a vida e a morte, essas características que aproximam os homens dos anjos. No seu entender, o que está na base da condição angelical é um sistema de contradições, retraçando esses últimos sinais da divindade que fulguram nos últimos dos últimos, naqueles humanos que revelam uma certa propensão para virarem costas a esse apego que nos torna tão mesquinhos. Numa das primeiras recolhas dos diários de Cocteau publicada nos EUA, pouco depois de este ter entrado para a Academia Francesa, Wallace Fowlie defendia esse jogo do poeta com as suas fraquezas, lembrando que a sua agilidade lhe vinha dessa capacidade de trocar de máscara, mas que as suas obras não eram simples feitos ou artifícios, mas uma demanda de alguém realmente empenhado em divisar os grandes desafios que se colocavam não apenas ao poeta mas a todos os homens frente ao destino que nos aguarda: “As coias que eu conto/ são as verdadeiras mentiras”, escreveu ele. Por seu lado, Aníbal Fernandes elege outros dois versos para concluir o seu admirável prefácio: “Uso uma tinta que é o sangue azul de um cisne,/ E sempre que é preciso ele morre para estar mais vivo.” A ambição de Cocteau foi ser capaz desse sacrifício que mistura em si muito do que há de mais frívolo nesta época, para penetrar no que ela esconde por trás das aparências, tentando encarnar essa mentira que não nos diz outra coisa senão a verdade. Sem ter-se debruçado sobre o seu exemplo, Cioran é quem nos pode esclarecer sobre a forma como a frivolidade consegue actuar como um antídoto, desde logo “contra a doença de sermos o que somos”. O filósofo de origem romena esclarece que, através dela, enganamos o mundo e dissimulamos a inconveniência da nossa profundidade. “Sem os seus artifícios, como não corarmos por termos uma alma? As nossas solidões à flor da pele, que inferno para os outros”, exclama, antes de concluir que não deixa de ser para eles, e por vezes para nós mesmos, que inventamos as nossas aparências. “O ser entregue a si mesmo, sem qualquer conceito prévio de elegância, é um monstro; só descobre em si zonas obscuras, onde vagueiam, iminentes, o terror e a negação.” Pouco antes da sua morte, por enfarte de miocárdio a 11 de Outubro de 1963, confronta esse terror que espreitou sempre debaixo da sua pulsão vitalista: “Esta noite a dor era tão viva, que o sono não funcionava… Micróbios devoravam-me a mão direita. Quando eu tocava no rosto encontrava a máscara de crosta sob a qual eles vivem e irradiam a toda a velocidade. Acabam agora de me chegar ao peito. Aí se inscrevem na constelação vermelha que tão bem conheço. Pergunto se o sol não exaspera este povo de sombra, e se o dia soalheiro de ontem não tem qualquer coisa a ver com esta crise. Que esgotante caçada! Que rápido animal! Os médicos aconselham-me armas que não matam. Pomadas, álcoois, vacinas. Desisto. Não há dúvidas de que a morte é necessária, quer dizer, um fim de mundo.” Eis a clareza de um espírito que procurou sempre dissolver no coração esses temores que a todos nos perseguem, um ser realmente capaz prosseguir com “o meio da infância”, de perseguir os seus sonhos além das geografias já verificadas: “Há muitos anos que eu circulo em países que os mapas não registam. Tive muitas fugas. Desse mundo sem atlas nem fronteiras, povoado com sonhos, trouxe uma experiência que nem sempre agradou. As vinhas dessa região produzem um vinho negro que embriaga a mocidade.”

Nem todos os autores que mais nos ajudam ficam a dever a sua grandeza ao grau de perfeição dessas representações do mundo e da existência, mas tantos esclarecem-nos por meio da sua não adesão, das suas reservas, da frequências das zonas onde se pode contar com outros e novos desastres. “Como suportaríamos o volume e a profundidade desgastada das obras e das obras-primas caso, ao seu enredo, espíritos impertinentes e deliciosos não tivessem acrescentado camadas de desprezo subtil e ironias espontâneas?”, questiona Cioran. Ora, Cocteau é um destes criadores cujo talento é sobretudo a capacidade de nos incitar a cuspir no prato da sopa, a preferir a exorbitância, a encorajar-nos a não cairmos no rigor das nossas avaliações, a não ficarmos prisioneiras das regras e regimes que nos parecem mais justos, dos horários e burocracias que tornam tão solene a nossa civilização, nem a nos rendermos às exigências a que nos força o enredo de uma obra de modo a sustentar uma alternativa verosímil, uma outra representação para o mesmo mundo. Alguns artistas apenas nos interrompem, sugerem-nos planos absurdos, esquemas de evasão. Leia-se uns versos da colecção (“La lampe d’Aladin”) com que se estreou Cocteau em 1909, com apenas 19 anos. “Atrás pedante infecto! Ah! Quando/ se calará a tua voz? Foge de mim! Desaparece, aqui está a porta!/ Deixa-me alimentar-me de ideal. Pouco me importam/ O sistema nervoso, a cabeça, etcétera!// Sim, quero ignorar todas as vulgaridades/ Da terra, todo o mal que alberga nos seus flancos!/ Quero, de olhos nos céus, transformar numa espécie/ De êxtase a sombria vulgaridade que me aterra!”