Há muito que os poetas aprenderam a desconfiar dos materiais que, de partida, surgem como que alcandorados, gozando desse prestígio tido desde logo como poético, de tudo o que se agarrou e triunfou como uma excrescência parasitária nessa zona com uma radiância um tanto artificial, nesses usos e jeitos de tecelões castrados, a tal experiência caracterizada por um permanente enlevo, certas imagens ou noções que, no seu regime ostentatório, apenas deliciam as sensibilidades comuns. O além, o invisível, repudiam esses acessos vulgares, e sendo que a poesia buscou sempre aquele insondável e indefinível interstício da realidade, em muitos aspectos foi tendo na ciência um curioso aliado. Passou muito tempo desde que John Keats, que foi cirurgião e boticário, denunciou a ciência, afirmando que esta arruinava a beleza das coisas dissecando-as em componentes, dando origem a “um catálogo enfadonho de coisas vulgares”. Muitos entendiam que esta estava empenhada em diluir os mistérios, dissolver toda a beleza, “esvaziar o ar assombrado e a mina cheia de gnomos –/ destecer o arco-íris”… Isto nas palavras de Edgar Allan Poe. A ciência era esse abutre voando em círculos à espera que o fôlego espantoso se acabasse para levar a cabo a sua autópsia. Na verdade, a cumplicidade entre as duas tem um longo historial de antecedentes, mas é natural que os poetas românticos, ao serem confrontados com a Revolução Industrial e com a ideia de que a ciência e a tecnologia estavam prestes a condenar a uma relação usurária toda a exploração do intelecto humano com vista à obtenção imediata de vantagens e lucros. Ora, a verdade é que já no final do século XVIII, os tratados científicos recorriam à forma poética, sendo esta considerada a expressão ideal para captar a atenção do futuro. Na sua busca de uma metamorfose das condições interiores da alma, a poesia desde Dante e da sua Divina Comédia soube entender como a ciência pode ser útil à composição de certas visões que entrelaçam história e religião, e do mesmo modo como conseguiu em parte extinguir o seu ódio e o desejo de vingança através da administração teológica da justiça, no mapeamento do interior da terra e na disposição do Inferno, a sua imaginação soube valer-se da força de gravidade, guiando-se com base em descobertas científicas da época. O certo é que, tal como a poesia, também a ciência pode unir-se à verdadeira magia, mesmo a mais suja, mesmo a mais negra. Muitos encaram a ciência como a poesia do mundo concreto, algo que vai muito para lá da matemática e da lógica, denunciando a falsa verdade da realidade imediata. Se a poesia é um sublime instinto, muitas vezes a ciência oferece à imaginação matéria e relações que escapam aos sentidos. Cada vez mais, cabe ao poeta, esse vociferador imaginário que, em momentos de alguma confusão, tinha a capacidade de provocar agitação no mundo asfixiado em que vivemos, esse mundo fechado e quase sempre imóvel, incentivando um estado insurrecional para que algo de imprevisto se desencadeie, integrar novas informações quanto à natureza da realidade, combiná-las com as suas inclinações, valores ou crenças, de modo a dar voz ao próprio processo de confusão do qual despontam novas e imprevisíveis visões. O seu esforço para arrancar um equilíbrio a partir de elementos frescos do caos é um desafio cada vez maior num mundo instável como o nosso. Mas é difícil pensar num desafio maior do que terá sido essa alteração conceptual que se viveu durante o primeiro século da ciência moderna. Na arte como na ciência, as forças revolucionárias de um movimento qualquer são as capazes de abalar o fundamento actual das coisas, de mudar o ângulo da realidade, como lembrava Artaud. Ora, a revolução coperniciana é até hoje um desses desenvolvimentos científicos que deixa bem clara a aliança entre estes dois movimentos exploratórios. Aquele avanço fez as pessoas saberem que já não podiam confiar naquilo que os sentidos lhes diziam, e que muitas vezes a nossa observação directa da realidade só serve para nos afundar ainda mais em erros de perspectiva, em ilusões que vincam os limites da nossa percepção natural das coisas. A experiência de observar o sol a dar voltas à Terra, isso que qualquer um de nós podia testemunhar, já não era uma noção confiável. E então instalava-se a dúvida sobre o verdadeiro alcance dos nossos sentidos, sobre a sua capacidade para estabelecer a verdade, percebendo-se que esta exigia outras averiguações, outras formas de escrutínio. Esse foi um rude golpe, que nos apresentou a uma espécie de disjunção psíquica, forçando-nos a abandonar muitas das noções que tínhamos como verdadeiras e a adaptar as nossas crenças ao que às novas aberturas que a ciência ia pondo ao nosso dispor. E esta nunca mais deixou de apresentar aos artistas, que segundo Pound são as antenas da raça, novas e desestabilizadoras realidades. Vivemos num estado de relativa suspensão, numa vertigem quase permanente face às descobertas que vão penetrando a cultura popular desde essas fronteiras sempre instáveis, à medida que forçamos os nossos limites e tentamos arpoar essas infatigáveis espécies com que o caos corre à nossa frente. Na cerimónia em que lhe foi entregue o Nobel da Literatura, Saint-John Perse fez fé nesta cumplicidade que, de ora em diante, terá necessariamente de marcar o compasso dos avanços da raça, lançando a grande questão e lembrando que o que menos interessa é chegar a uma resposta definitiva: “E dessa noite original onde tacteiam dois cegos de nascença, um equipado com instrumentos científicos, o outro só assistido pelas fulgurâncias da intuição, quem primeiro sai, e mais carregado de concisa fosforescência? Não interessa a resposta. O mistério é comum. E a grande aventura do espírito poético não cede em nada às aberturas dramáticas da ciência moderna. Astrónomos houve que conseguiram endoidecer com uma teoria do universo em expansão; não há menor expansão no infinito moral do homem – esse universo. Por mais que a ciência recue de fronteiras, e por todo o extenso arco de tais fronteiras, ainda há-de ouvir-se correr a matilha caçadora do poeta.” E assim chegamos ao mais recente livro de Rui Lage, “Firmamento”, uma edição Assírio & Alvim que vem infundir frescura a um catálogo que desde há anos, na ausência de um editor que defina alguma orientação, cedeu a um regime relapso, a uma função inócua que segue as linhas gerais da legitimação que se oferece à poesia enquanto forma da animação cultural, incapaz de dar sequer algum impulso no sentido de inquietar o espírito e deter um pouco os fingimentos e essas manifestações envaidecidas próprias de palradores impotentes que gastam a vida com jogos de língua, artifícios de sintaxe, brincadeiras sobre fórmulas já testadas há muito. Esta editora que se afirmou precisamente pela capacidade de avivar o jogo junto às fronteiras, tem vindo a cristalizar-se como mais outro coito tomado pelo grupo corporativo que só está interessado em dominar posições de relevo dentro do esquema da pequena e tão afável indústria cultural que nos assiste, e que se limita a oferecer o mesmo velho e cansado número para entreter o público em actividades de diversão, repetitivas, lúdicas e pacificadoras. Se o novo livro de Rui Lage não faz muito para alterar este estado de coisas, pelo menos tem a força de exercer o seu cultivo bem longe da tão estéril oficina onde se revezam os aprendizes deitando os poucos dados e o débil acaso para o há muito demarcado tabuleiro dos mais comuns estados de alma ou dores de burro desta época. Lage vai mais longe, mais fundo do que tinha ido já Jorge Sousa Braga, em “A Matéria Escura e outros poemas”, enriquecendo o regime semântico espreitando como pelo buraco da fechadura galáxias distantes, enxames de estrelas, quasares, brincando com princípios de incerteza, tentando formular poemas quânticos. Se nos últimos anos, especialmente lá fora, há uma espécie de corrida ao outro das metáforas que são elaboradas e jungidas pelas novas teorias da física, da astronomia e da natureza, com os poetas a irem muitas vezes a reboque do engenho digressivo daqueles que endoidecem e procuram traduzir o seu deslumbramento a partir das noções que os seus instrumentos científicos apuram, há um certo gozo de trocar o desconhecido não por receios mas por um regime de expansão do nosso imaginário. Muito apropriadamente, às tantas Lage saca esta epígrafe ao Pe. António Vieira: “Que cuidais que é uma sepultura, senão uma oficina de Estrelas!” Os aspectos mais conseguidos desta obra são precisamente ao nível da expansão dos recursos, uma espécie de intuição de um poeta com uma prodigiosa oficina que se deu conta de que poderia estar a recair nessa armadilha para o espírito, sendo sempre necessário cultivar não apenas as condições de escavação interiores, mas também o tráfico e a comparação do que se acha na mina com aquilo que se arranca o mais fora possível, na língua mais estranha, esse vocábulo como um minério capaz de iluminar por uma noite toda uma cidade. Neste capítulo, uma certa repulsa face a uma representação do mundo que já não se aguenta, um confinamento em cidades, com as suas cinturas industriais, que ajudam a transformar-nos em fantasmas de nós próprios, em gestos repetidos, condenados a alívios patéticos, um hedonismo devassado, isso em si mesmo já significa um ganho no sentido de abalar o fundamento das coisas. “Execro a luz que vos mata, estrelas,/ a luz anémica das torres de escritórios,/ dos blocos de apartamentos, dos aeroportos,/ das fábricas, das refinarias,/ o clarão que cancela o mistério das estradas,/ das vielas, dos passeios a desoras,/ que aboliu a noite pura do pastor/ e do nauta.// Luz inextinguível que tudo aclara/ mas nada revela.// Luz mais escura que a treva.” Em certo sentido, a exploração encetada por Rui Lage ainda é bastante tímida, ainda é um afinar dos instrumentos de observação, deixando aquele arco que vinha de Corvo (2008) a Estrada Nacional (2016), passando por Um Arraial Português (2011) e Rio Torto (2014), em que manifestava um certo encantamento pelo mundo rural português, denunciando o seu abandono e menosprezo, explorando uma sintaxe feita de lugares perdidos, de todo um mundo que, estando em agonia não se viu destituído, mas como assombração da vida moderna, faz ouvir o seu canto elegíaco como uma espécie de premonição da ruína que nos acolherá mais à frente. Neste livro, o convite ainda vem no sentido de uma revitalização da vida contemplativa que passaria por nos dispormos a “ver o cinema do firmamento”. Temos aqui ainda os actos preparatórios, um reposicionamento das antenas, mas há ameaças suficientes para produzir aquele arrepio que desperta e põe em sentido zonas há muito adormecidas e que podem agora sentir a chamada para este projecto de relação com algo que estando presente desde sempre poderá estar urdido no próprio silêncio, como acontece com a música das esferas. Leia-se a título de exemplo o poema “Glóbulo de Bok no Enxame Estelar Trumpler 14”: “Casulo negri a flutuar/ no enxame estelar mais fulgurante/ da galáxia.// Como tu, possui dentro uma fonte de calor:/ uma pequena estrela em gestação.// Grilo de ébano a cantar no infinito/ contra o frio que vem. Mas o livro não é uma coisa só, constitui-se de diversos momentos, e abre margem para passagens em que se chega a sentir um verdadeiro impulso, uma força de propulsão seja no que toca a confrontarmo-nos com a devastação que tem provocado esta mesma civilização capaz de tantos prodígios técnicos, desde fenómenos como a “eternidade digital”, até às transformações a um ritmo avassalador dos ciclos no planeta devido à crise climática, seja face a essa imensidão das novas fronteiras que, por mais que nos assustem e humilhem, não deixam de nos instigar, produzindo em nós um forte apelo, e perturbando até os nossa sonhos, seja ainda na forma como essa condição de exploração obriga o homem a contender com as suas limitações e a supor que chegará a hora de transcender a própria raça e abrir caminho a um futuro dominado por seres feitos à nossa semelhança ainda que com um outro alcance. A este respeito, “A Porta de Thannhäuser” é verdadeiramente uma indagaçãomagistral e um poema cuja abertura não tem antecedentes na poesia portuguesa das últimas décadas, aproximando-se daquela literatura que de forma mais profunda e impactante tem abalado a consciência pela radical capacidade de inventar futuros e de elevar a um nível inaudito os nossos poderes de auscultação metafísica, e esta tem vindo do terreno da ficção científica, e especialmente, nos nossos dias, dos sublimes contos de Ted Chiang ou das ficções audiovisuais de Alex Garland (Ex Machina, DEVS). “Quando tiverem destapado o pavio interior/ e a própria finitude aprendido,/ talvez se possa ouvir uma voz a eclodir,/ uma voz lançada sobre a nossa ausência,/ passagem para a morte, vestíbulo/ da consciência. (…) Talvez com o tempo nos invejem/ o consolo ínvio da carne,/ a dança sem direcção, o júbilo raro/ que fura o tédio e a consumição,/ e julguem beatitude/ o jugo consentido a outra estirpe de programas/ e arbítrio o que nos sai por instinto/ de algoritmos viscerais.// De pouco servirá desenganá-los.// Melhor será amá-los por comungarem da ilusão,/ anjos sem remédio.// Talvez as réplicas nos restituam o mistério.// Se um dia atingirem que a vida/ é sonho ou ficção retroativa/ e a memória a história que nos damos/ na jaula compartida,/ tão boas quanto as nossas/ hão-de estimar suas lembranças/ implantadas: a melodia junto ao berço,/ a serpente decepada no quintal,/ o retrato da mãe adolescente./ O triciclo à chuva, num roseiral.// Talvez queiram destapar-nos o pensamento,/ desembaciar o programa que se pensa lá dentro.// Ou talvez nos queiram para equipamento,/ próteses de tocar o tempo.”
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Rui Lage. Uma oficina de Estrelas
Numa época que empurra cada vez mais a humanidade para a sarjeta, só restam fixar o olhar nas estrelas, seja como uma ilusão para nos distrair, seja como um limite espantoso para nos ajudar a refundar a nossa oficina.