Não há obra de tradução de poesia a partir da língua russa que prescinda daquela advertência reconhecendo a tarefa ingrata que é tentar fazer justiça aos originais, pois é enorme a perda na transposição do balanço entre a forma e o conteúdo, seja no que toca à sonoridade ou ao ritmo, mas também a certas ramificações semânticas urdidas no mais íntimo da experiência deste idioma, isso que está lá apenas para ser pressentido. Assim, ao acatar o problema de um ponto de vista técnico, o tradutor não deixará de reconhecer que só pode elaborar uma espécie de mapa para quem busca retraçar o caminho de volta ao original, e aparte essa forma de traição, só resta o compromisso de levar a cabo uma apropriação do que foi captado no original, elaborando uma recriação, certamente temerária, abrindo margem a falsificações grosseiras, mas será a saída para se evitar o fatal nivelamento entre dois idiomas. Esta hipótese obriga o tradutor a montar um laboratório e dedicar-se às experiências necessárias para que uma sombra mantenha o vigor no transporte de um sol a outro sol, como se se tratasse de um sangue estranho cujo impulso deve ser conservado num novo organismo.
Roman Jakobson, no preâmbulo a uma antologia publicada em França da poesia russa, lembrava que o Ocidente há muito se obrigou a respeitar a arte russa, desde os seus ícones ao seu cinema, passando pelo ballet clássico ou as pesquisas teatrais, os seus compositores e, talvez acima de tudo, os seus romancistas, mas a poesia, que seria em seu entender a maior de todas as artes russas, continuaria a esquivar-se a todas as tentativas de fazer dela um artigo de exportação. E se na segunda metade do século XX não faltaram trabalhos nesse sentido, incluindo em Portugal (quase todas, sublinhe-se, devidas ao empenhamento de Manuel de Seabra), faltou sempre esse mais elevado grau de compromisso que obriga o tradutor a um trabalho de apropriação, para que a tradução possa atingir a profundidade e a vibração na língua de chegada, a exuberância e a sumptuosidade de uma arte que se manteve fiel a certos valores tradicionais, sem descurar nunca a forma, mas que operou uma subtil e, por isso mesmo, tão radical variação no tom, na atitude de denúncia, a qual só poderá justificar-se numa crença inabalável de muitos dos principais nomes da poesia russa (ou soviética) do século passado, uma fé absurda na “vingança lenta da poesia” (Augusto de Campos), na sua capacidade de os resgatar e lhes fazer justiça e às suas ânsias. “Façam o meu balanço à posteriori”, escrevia Maiakóvski, em “Conversa sobre Poesia com o Fiscal de Rendas”. E prosseguia: “No meio dos actuais traficantes e finórios/ eu estarei – sozinho! –/ devedor insolvente”. “O poeta é o eterno devedor do universo/ e paga em dor percentagens de pena”. Na nossa língua, de longe a mais ambiciosa e conseguida antologia da “Poesia Russa Moderna” é o volume com esse título feita pelos irmãos Campos “sob o crivo linguístico” de Boris Schnaiderman, que foi conhecendo várias edições, e que é uma das grandes explorações poéticas dentro da “selva selvagem” daquele difícil idioma. Se entretanto, deste lado do Atlântico, foram surgindo obras ou antologias de alguns dos maiores nomes da poesia russa, desde Aleksandr Púchkin, Aleksandr Blok, Maiakóvski, Mandelstam, Akhmátova e Tsetaeva, entre outros, chega a faltar muitas vezes até escala à imaginação no nosso país para, de dentro do cárcere da sua insipidez, relacionar-se com uma nação como aquela, que devido aos tumultos do terrível século que se fechou há pouco mais de duas décadas mas que está longe de ter sido estancado, continua a ter nos nervos ecos poderosíssimos, uma inquietação extraordinária, sendo, por isso, capaz ainda de se relacionar com a luta de libertação que é a de todos os grandes poetas, isto num mundo que, actualmente, vê outras gerações de artistas serem dilapidadas, não tanto por decretos ou perseguições, mas pelo contexto massificador das chamadas indústrias culturais, com os meios de comunicação que estreitam as dimensão linguística, produzem uma relação imbecilizante com tudo aquilo que ocorre mais perto e ao longe, levando-nos a ficarmos vítimas de sensações em atropelo, sujeitos a esse enfarte produzido pelo excesso de estímulos do regime espectacular do audiovisual, sufocando a nossa capacidade de pensar criticamente o mundo, e abandonando a relação com os eventos determinantes do nosso tempo a um efeito de descrédito e de constante e estéril debate. Talvez um país como o nosso ganhasse alguma coisa, desde logo em termos de fôlego, se adoptasse a postura de um pensador como E.M. Cioran, alguém que soube escapar à “mistura indecente de banalidade e apocalipse” que tomou conta do regime cultural, deixando-o refém e com o seu ar apatetado no meio desse “desfile de falsos Absolutos, sucessão de tempos elevados a pretextos”, e uma atitude geralmente reacionária pela forma como, dominado pela ideologia do consumo, afogando-se na sua hiperatividade letal, só sabe responder aos problemas insistindo na lógica da produção e do crescimento, dissolvendo-se nesse “aviltamento do espírito diante do Improvável”. Ora, face a este regime que não se cansa de repetir que não há alternativa, até para que o espírito possa espreguiçar-se um pouco, a respiração soltar-se e experimentar uma relação mais distendida com os ares que circulam a outras alturas, não deixa de ser bom deixar-se atrair como Cioran por essas “nações indemnes de escrúpulos nos pensamentos e nos actos, febris e insaciáveis, sempre prontas a devorar as outras e a devorarem-se a si próprias, espezinhando os valores contrários à sua ascensão e ao seu êxito, renitentes à sabedoria, essa praga dos velhos povos fartos de si próprios e de tudo, e como que encantados com o facto de cheirarem a mofo”. Não se trata aqui de se deixar seduzir inteiramente por essa forma de amoralidade que permite cometer os piores crimes contra os homens, contra a vida toda, mas apenas de escapar essa forma de mortificação do espírito que passa por ser incapaz de questionar antigas avaliações, essa ideia de progresso extraída de uma noção que faz da História uma “manufactura de ideais”, ficando sempre à beira desse arroio para poder saciar a sua sede mortal de ficções, recusando-se a encarar a realidade tal qual ela é e contrariar uma tendência que nos tem de tal modo investidos nessa mitologia lunática do conforto, do bem estar e da paz social que nos tem levado a um mergulho suicidário na produção, justificando-se numa fé cega na tecnologia, que nos salvará até desse abismo que os próprios cientistas todos os dias nos dizem ser o nosso destino a menos que algo de terrivelmente drástico se altere na ordem social e política. Cada vez mais o Ocidente nos surge esvaziado de um propósito articulado com o próprio tempo que estamos a viver, incapaz de se libertar de fórmulas supersticiosas e desse animismo dos mercados, que exigem a cada a mais do mesmo, em mais quantidade e mais depressa, num consumo exponencial de espaço, tempo e matérias-primas, o que necessariamente nos deixa perante a iminência da destruição do mundo. Num tempo assim, talvez a única forma de actuação lúcida seria de facto enlouquecer, ceder à tal guerra civil mundial que possa interromper o curso actual dessa força que exige a estabilidade para prosseguir com confiança no futuro. “Neste mundo, no qual desempenhamos um papel pouco claro” – escreve o poeta russo Nikolai Zabolotsky (1903-1958) –, “tu e eu envelheceremos como o velho rei da história;/ a nossa vida consumida pelo fogo, o lampejo da paciência/ em lugares protegidos; um destino inevitável/ encontrado em silêncio./ Cordas de prata ofuscarão um dia os templos e/ eu rasgarei estes cadernos, abandonarei os meus poemas;/ deixa então que a minha alma ondule como se fosse um lago/ à beira dos portões subterrâneos, onde a folhagem púrpura/ filtra os estremecimentos da superfície.” O poema chama-se “A história”, traz-nos uma lição difícil de engolir, mas que é comum a muitos dos outros textos que Luís Filipe Parrado faz comparecer numa mostra bastante volumosa da poesia russa dos séculos XX e XXI, sob o título “É por isso que a alegria é mais alta”. Umas páginas antes, Anna Akhmátova diz-nos isto: “Tudo saqueado, vendido, traído,/ A asa negra da morte esvoaçava,/ Tudo roído por uma angústia esfomeada,/ Por que há de súbito tanta claridade?// De dia, respirando um ar de cerejeiras,/ Um bosque inusitado junto à cidade,/ De noite brilha com novas constelações/ A profundidade dos céus transparentes de julho;// O maravilhoso move-se tão próximo/ Das casas sujas e decrépitas…/ Algo desconhecido para todos/ Mas que nos foi enviado pelo século.” Não é que o terror possa, afinal, transformar-se num bem, mas toda a gente reconhecerá o valor que há na perda, esse reconhecimento fatal daquilo que até ali era dado por garantido e, desse modo, foi muitas vezes desprezado. Vale a pena notar, assim, como todo este difuso movimento de negação que está a tomar conta das sociedades ocidentais pode esconder, na verdade, um vírus mais fundo que se liberta quando a consciência é ferida para lá da superfície da nossa racionalidade, quando a raça se aproveita daquele pressentimento de que toda a sabedoria e ciência (ou tecnologia) ao nosso dispor está a ser usada para fins contrários aos interesses, não apenas da humanidade, mas de toda a vida no planeta. Num período de tão grave degenerescência, não são apenas os poetas que acedem a essa visão de uma outra forma de terror, aquela que nos chega à boca como um sabor que traz o vento que roçou a realidade um pouco mais adiante, nos seus compromissos inadiáveis com o futuro.
Esta mostra de poesia russa vai mais longe nas suas advertências, e rejeita inclusivamente tratar-se de uma antologia, já que o responsável pela obra assume o seu desconhecimento da língua russa, e, decorrentemente, da poesia que tem sido publicada naquela língua. Oferecendo-nos uma recolha a partir de uma série de antologias, traduzindo em segunda-mão, dando origem a “textos impuros”, como os qualifica, mas fazendo notar como o próprio processo da criação poética está carregado dessas intuições junto do acaso, dessa afinação do caos, sendo um processo tão aberto e, também, “gerador de impurezas, de pequenas e altas traições”. Este é um ponto importante numa forma de entendimento do processo criativo da poesia que não deixa de se inscrever desde logo como acto um tanto anárquico de tradução, não apenas entre idiomas diferentes, mas entre linguagens e mundos, espíritos que, afastados no tempo e no espaço, estão condenados a tocar-se apenas tangencialmente, e um ponto decisivo numa breve introdução que vinca o quanto a poesia se nutre dessas rimas inadvertidas, dessa pulsação oculta e da inspiração que nos chega como por acidente. Outro aspecto que Parrado nos vem relembrar é que se “a poesia transcende o momento histórico em que foi produzida (de outro modo, não nos daríamos ao trabalho de a ler aqui, agora), porém está enraizada nele, nas condições concretas da existência”. E se como o tradutor refere há inúmeros poemas, neste livro, que aludem a acontecimentos históricos mais ou menos reconhecíveis – “desde a Revolução Bolchevique, ao estalinismo, da Segunda Guerra Mundial ao Gulag, do cinzentismo da vida quotidiana à inanidade da propaganda oficial do Estado” –, também a própria realidade, “a sua problematização enquanto matéria dos poemas, é uma constante”. Temos assim que, se por um lado os poetas aqui reunidos tratam temas como “a brutalidade da guerra, a devastação física e psicológica dos seres humanos ou canibalismo”, essa reflexão não surge apenas enquanto denúncia inocente, mas faz-se valer daquela consciência de que a própria relação da poesia enquanto celebração da existência se suspendeu com os eventos absurdos que vieram a caracterizar as formas particulares de horror do século passado, desses máquinas de destruição postas em marcha pelos sistemas totalitários. Em certo sentido, coube aos grandes poetas do último século denunciar também a linguagem poética, e acusar certos tiques radiosos que se ligam a uma ideia de esperança no futuro da humanidade. Falou-se muitas vezes num certo anti-lirismo, numa tendência para os poemas abandonarem o tom enfático, o enlevo e a busca da harmonia, para se ligarem mais profundamente a essa sensação de desamparo, ao abalo profundo que produziu na consciência dos homens o facto de a História nos ter empurrado para um grau último de desespero que não aceita já qualquer tipo de racionalização nem, muito menos, de justificação. A persistência da poesia ficou, por isso, no entender de alguns poetas e críticos, a dever-se precisamente a esse desejo de sobrevivência e de resgate dessas coisas que persistem apesar do que há de pior na natureza humana. Alguns dos poemas aqui reunidos indiciam essa forma de sobrevivência, que não tenta retomar a antiga dança da poesia, nem embarca nessa alegria taralhouca, desligada do contexto histórico, mas também não cede a esses formas lúdicas do estupor, à generalizada devoção alienada ao espectáculo e aos seus efeitos de desrealização do mundo, antes nos fazem ver como já sobrevivemos algumas vezes a eventos que pareciam ser capazes de destecer de vez essas essa trama que nos liga uns aos outros e que nos permite embarcar noutras viagens, à margem da sinistra forma de complacência a que se abandonaram a maioria das pessoas nesta juntura civilizacional. Chegámos àquele ponto em que o próprio passado já não nos parece dar resposta, em que os ecos se tornam enganadores, uma vez que já não basta simplesmente recuar, mas é preciso inventar um mundo que possa contrariar decisivamente este que, com toda a certeza, nos deixará durante séculos a lutar com a perspectiva da extinção. O que nos diz sobre isto Akhmátova: “Os caminhos do passado há muito que foram fechados,/ e o que é agora o passado?/ O que está lá? Lajes sangrentas,/ ou uma porta emparedada,/ ou um eco que não consegue/ sossegar, embora eu lho peça…/ Aconteceu com o eco o mesmo/ que aconteceu com aquilo que carrego no coração.” Mas alguma coisa sucederá ainda depois disto, depois do pior. Mesmo o fim do mundo não será tão competente que possa dar cabo do anseio da poesia, que é essa réstia sobre a qual cresce o desmedido batimento de um coração com o desejo de consumir o universo: “Não me importo com os anos, ou com a morte/ – ou em ser pedra, raiz, pó inerte./ Superando o fedor e a minha sorte,/ logo que uma rapariga, com perfume de camomila,/ passe pelas estevas da minha morte/ beijarei com o meu pó os seus joelhos.” É o poeta Stepán Schipachov (1899-1980) quem assina estes versos, e é ele também quem nos diz que “o amor é a canção dos anos”, e que só a própria vida nos ensina essa paciência, essa sabedoria que perdeu já toda a ingenuidade: “Que amor não se chama amor/ sem neve nem desenganos.”
Este volume alcança a sua unidade enquanto uma estranha composição feita a partir de vários testemunhos sobre esta disciplina que os homens treinam e que passa não apenas por transcender a História, mas sobretudo por sobreviver-lhe, testemunhos que nos falam dessa forma de horror fabuloso que há em nós, essa capacidade e essa astúcia tenebrosa que nos leva a persistir, a superar seja o que for, e como a poesia está para lá de todo o bem e de todo o mal, pois é algo que os homens conquistaram com os anos, depois de todos os desenganos, de aguentarem que a neve deixasse que a vida triunfasse de novo, e é esta sabedoria que deve a sua instrução tanto à beleza como à intimidade com a devastação e ao que há de mais sórdido na existência que permite a Gennady Gor (1907-1981) escrever com esta leveza um poema cheio de malícia e de gozo: “O sorriso constrangido de Poe,/ O porte canhestro de Cervantes,/ O Peixe dourado mas desnecessário,/ A descoberta inquietante e perigosa./ Mataram-me, eu sei, numa segunda-feira,/ E atiraram-me para aqui, para junto do lavatório./ E o meu assassino lava-se de pé/ E maravilha-se com a ideia dos beijos/ E dos sítios adequados onde os dará/ E enquanto se lava sorri.” E para que as palavras não se congelem numa canção é preciso ganhar este balanço eterno, aprender esta dança entre elementos contrários, extrair a essência nos contrastes e gerir poderosas oposições. Sem isso, as palavras não respiram, mas acabam vazias, como nota María Petrovich (1908-1979): “Coíbem-se, não se atrevem,/ não iluminam, não abrigam,/ órfãs, emudecem na melancolia/ sem reconhecerem a sua fealdade.” Aqui está uma chave da grande poesia, a consciência de como uma relação desimpedida com a fealdade que se tem em si chega a ser mais livre e graciosa do que tantas formas de beleza. Basta como esses seres assumidamente feios transformam em força o que parecia uma fraqueza, e são donos de um encanto insuperável, justamente porque nos inflige um golpe fundo vindo do mais inesperado dos ângulos, aquele que tínhamos dado como morto. Depois os anos só não bastam, como o tempo é também uma propriedade do espaço. Assim, cabe aos poetas “cruzar terras e mares/ em busca de versos soltos” [Serguéi Smirnov (1915-1976)]. E poderíamos prosseguir com Boris Slutsky (1919-1986): “Qualquer princípio é o começo do fim./ É por isso que começamos com um ovo/ mas acabamos com uma casca partida,/ e esta é a nossa maneira de coroar qualquer princípio.// No entanto, fomos ensinados e instruídos/ a não reflectir sobre os resultados amargos do princípio,/ a não pensar, a não saber, a não querer descobrir,/ mas – uma vez que decidimos dar início – a começar.// Comecemos. Brinquemos com o destino cruel,/ iniciemos o conflito, mergulhemos de cabeça na refrega.”
Pode ser duro ler isto numa altura em que todos os dias estamos imersos nas imagens da devastação, nesse espectáculo que tenta reproduzir os efeitos de uma guerra à distância, e produzir esse forma de comunismo emocional que leva a um conformismo acrítico, a aceitar o que quer que seja, nomeadamente a ideia de uma virtude e superioridade dos valores do lado de cá contra os de lá, e se a guerra é sempre deplorável, se nada a justifica, também sabemos como está no homem plantada desde o início essa semente que lhe diz que “a loucura e a morte são preferíveis ao interminável domingo e ao resguardo de uma forma burguesa de viver”. É George Steiner quem do alto do Castelo do Barba Azul, nas suas notas para a redefinição da Cultura, nos diz isto: “Como poderia um intelectual suportar sentir no seu íntimo qualquer coisa do génio de Bonaparte, qualquer coisa dessa energia demoníaca que leva da obscuridade ao império, e ver apenas à sua frente o reluzir postiço da burocracia? Raskolnikov escreve o seu ensaio sobre Napoleão e sai para matar a velha.” E aí está o ponto em que Steiner e Cioran coincidem, com este a lembrar que “enquanto os povos ocidentais se desgastavam na sua luta pela liberdade e, mais ainda, na liberdade adquirida (nada é tão esgotante como a posse ou o abuso da liberdade), o povo russo sofria sem se gastar; porque só na história nos desgastamos, e, como ele fora riscado desta última, sofreria por força os infalíveis sistemas de despotismo que lhe infligiram: existência obscura, vegetativa, que lhe permitiria tornar-se firme, aumentar a sua energia, armazenar reservas, e extrair da sua servidão o máximo lucro biológico”. É, certamente, terrível num momento destes tentar ganhar perspectiva, quando é perpetrado contra um povo em grande medida indefeso um acto de violência intolerável, mas se se trata de adoptar a perspectiva poética, temos de nos afastar dos azucrinantes profissionais do humanismo progressista, desses “anjos reaccionários”, e acatar menos os ventos da moralidade para escapar ao tráfego regular desse mundo abortivo e sem saída, embarcando numa viagem capaz de transgressão e de seguir ídolos secretos, ouvir as vozes vindas de cemitérios funambulescos. Cioran alertara há muito que “para que a Rússia se acomodasse com um regime liberal, seria necessário que enfraquecesse consideravelmente, que o seu vigor estivesse extenuado; melhor: que perdesse o seu carácter específico e se desnacionalizasse em profundidade.” A longo prazo, dizia-nos ele, o tempo favorece as nações acorrentadas que, concentrando forças e ilusões, vivem no futuro, na esperança. Por outro lado, este filósofo demoníaco fazia-nos saber que a democracia pode ser o único regime suportável, mas que, sendo feito de dissipação, de tranquilidade e de amolecimento, “é ao mesmo tempo o paraíso e a sepultura de um povo”. Não se trata de louvar a tirania, mas de admitir que, por mais chocante que possa ser, há sempre uma certa dose de fatalismo que dita que a vida entre em estagnação quando parece estar tudo em ordem, acabando por levar ao amolecimento dos espíritos. Assim, Cioran diz-nos que muito embora a vida só através da democracia tenha sentido, esta tem falta de vida. “Felicidade imediata, desastre iminente – inconsistência de um regime ao qual não aderimos sem nos rasgarmos nos ferros de um dilema que atormenta”. Daí a necessidade imperiosa de ciclos de devastação sucedendo-se a outros de abundância, daí a natureza purificadora do fogo. Acontece que a abundância desta vez foi longe de mais. Necessariamente, só um povo enlouquecido poderá atear um fogo com altura suficiente para consumir essa finalidade louca de um sistema ainda mais insano e destrutivo. “Aspirar sempre à liberdade sem jamais a atingir, não será essa a sua [da Rússia] grande superioridade por comparação com o mundo ocidental, que, pobre dele, de há muito lhe acedeu? Além disso, a Rússia não tem sombra de vergonha do seu império; muito pelo contrário, só pensa em alargá-lo (…) Quer as tenha provocado ou sofrido, a Rússia nunca se contentou com desgraças medíocres. E assim será de futuro.” E chegamos agora ao vaticínio de Cioran em relação ao capítulo que se seguirá: “A Rússia abater-se-á sobre a Europa por fatalidade física, pelo automatismo da sua massa, pela sua vitalidade superabundante e mórbida tão propícia à geração de um império (no qual se materializa sempre a megalomania de uma nação), por essa saúde que é a dela, cheia de imprevisto, de horror e de enigmas, ligada ao serviço de uma ideia messiânica, rudimento e prefiguração de conquistas.”
É claro que há nestas palavras um gozo de fazer com que certas traços reconhecíveis na história e tradição de uma nação acabem por se satisfazer rimando de forma estrondosa, de modo a impor uma ameaça de devastação que nos faça despertar da moleza civilizacional em que caímos, ainda para mais tendo esta um cariz ao mesmo tempos entorpecedor e autodestrutivo, colocando-se como uma forma de degenerescência não só para a vida do espírito mas, cada vez mais, como um perigo decisivo para o equilíbrio dos ecossistemas e de toda vida neste planeta. Assim, a barbárie que a Rússia promete hoje ao Ocidente surge-nos como uma espécie de solução, pois este chegou há muito “a um nível de civilização que só pode ser superado descendo”. Seja como for, tudo isto é terrível. Mas é óbvio que neste momento em que nos encontramos todos esses inveterados optimistas devem ser obrigados a sair da sala, de outro modo continuaremos a tentar urdir uma ficção que permita traduzir num grotesco cor-de-rosa os passos que se vão seguir. É certo que ninguém calará os pensadores que prometem um final feliz; habituados que fomos a servirem-nos sempre rebuçados antes de todas as sessões, para adoçar a boca, nesse vinco que consegue justapor política e prostituição, sabemos que os violinos irão tocar quase até ao fim. Felizmente, há os poetas como Slutsky para nos lembrarem que “Os maus momentos são bons porque/ ajudam as qualidades da alma a manifestarem-se/ – execuções, guerra,/ fome, pestilência, maus momentos.// Enquanto ainda estás inteiro, enquanto estás alimentado e saudável,/ enquanto os tribunais ainda não te convocaram, e não chamaram os médicos,/ os teus limites e propósitos são desconhecidos,/ os teus parâmetros são pouco claros enquanto ainda estás inteiro.// Quanto te agridem, quando te sacodem,/ e os piolhos te comem, e o tribunal te atormenta,/ desejas uma vida simples e comum em vez de algum tipo de superioridade./ Tudo se torna mais nítido quando te golpeiam.// Mas às vezes todo o teu ser/ apesar de tudo prefere algum tipo de superioridade/ e o desastre perde o seu poder sobre as pessoas/ quando isto acontece, às vezes.”