Havia grande excitação entre os aficionados portugueses mas, também, entre as páginas de mexericos dos jornais, sempre pronta da espreitar pelo buraco da fechadura da vida social. Don Antonio Cañero, o famosíssimo rejoneador espanhol, vinha passar uns dias a Lisboa e esta enfeitava-se como uma menina dengosa. “Acabo de chegar da Venezuela”, dizia Don Antonio. “Tenho lá ido todos os Invernos e continuarei a ir sempre que me for possível. A Venezuela é um dos poucos países onde se pode viver actualmente. Ricos e privilegiados, com cerca de dois milhões de habitantes e um território vasto e fértil, um dos maiores produtores de petróleo do mundo e com poços magníficos. A Venezuela tem há 25 anos o mesmo presidente, o general Gomez, com oitenta anos e ainda rijo como um jovem e com um grande amor pela sua terra!” Ora, caspite! Parecia um folheto turístico. Há anos que nunca ouvia alguém dizer tão bem da Venezuela, e vendo bem não ouvi, só li esta estrevista dada por Cañaro na sua chegada a Lisboa. Não restavam dúvidas que o homem vinha entusiasmado.
Há que dizer que Juan Vicente Gómez Chacón , o tal velho Presidente venezuelano, também não era flor que se cheirasse tão alegremente. Filho de uma família de grandes proprietários da zona de La Mulera, o aparecimento do petróleo fizera-o ainda mais rico. Durante a sua governação, teve a capacidade para ir alegrando os países ocidentais distribuindo concessões petrolíferas (sobretudo à França e aos Estados Unidos) junto ao Lago_Maracaíbo, algo que lhe permitiu reduzir drasticamente a dívida externa venezuelana. A despeito de ter aplicado uma política de amplas obras públicas, também tinha uma face menos benigna que levou os seus inimigos políticos a chamar-lhe de Bagre (por causa dos bigodes que faziam lembrar os do peixe), ou Tirano dos Andes. Nunca foi muito famoso pela sua benevolência, mas enfim, era normal que tratasse com deferência o mestre do toureio a cavalo – aquilo a que se chamava o rejoneo – em que se transformara Don Antonio.
Instalado
Fazendo-se instalar num dos bons hotéis da Linha do Estoril, Cañero passava os dias em visitas vistosas aos seus amigos mais abonados que viviam entre nós e em festas que mereciam todo o interesse da comunicação social. Não gostava de ser fotografado, preferia passar o mais despercebido possível, ia pedindo quase desesperadamente: “Deixem-me sossegado. Só pretendo gozar da companhia dos meus amigos portugueses. Não nos sigam para toda a parte”.
O repórteres e os fotógrafos faziam ouvidos moucos a esta súplicas. Seguiam-no mesmo para toda a parte, queriam ouvir as suas palavras sábias sobre as grandes diferenças entre o toureio praticado em Portugal e o toureio praticado em Espanha, enfileiravam-se na expectativa de umas palavras simpáticas para com as nossas corridas, sabendo que do lado de lá da fronteira nos achavam uns fracos por não matarmos touros na arena.
Don Antonio foi-se escapando como pôde. Era mais fotografado do que escutado, mas essa era a história da sua vida desde que, depois de ter sido professor de equitação e ter servido no exército (em cavalaria, como está bem de ver), optou por ser profissional do toureio a cavalo e logo com uma entrada impressionante, no dia 14 de Outubro de 1921, em Madrid.
Para muitos, é ainda tido como o pai da corrida de rejones, dominando com mestria um cavalo na arena face a um touro selvagem, em pontas, para, em seguida, desmontar e espetar a faca no pescoço do bicho, ponto fim à eterna luta entre o homem e a besta. Oito anos antes desta sua chegada a Lisboa, fora praticamente expulso de Portugal por tentar matar um touro no Campo Pequeno, mesmo sabendo que a lei portuguesa o proibia. Do desprezo por essa tentativa, ao respeito que outros lhe dedicaram por ter tamanho descaramento, tornou-se, durante alguns anos, uma figura discutida e não muito bem aceite.
Mas o tempo passa e cicatriza feridas. Nesta hora do regresso, os críticos não caíram em cima de Don Antonio. Deixaram-no gozar as suas férias tranquilo, embora não tivesse tido qualquer hipótese de se apresentar num arena. “Hoje em dia, nós, os toureiros, toureamos cada vez mais perto dos touros, o que torna a nossa função muito mais perigosa”, lá soltou finalmente, numa pequena entrevista aos jornais portugueses. “Além disso, em Espanha temos cada vez mais touros com a idade de cinco anos que nunca foram alimentados a rações de favas e de outros cereais. Apenas e absolutamente pasto natural, algo que os torna verdadeiras feras, muito mais perigosos do que os outros, tal como nós desejamos que seja para satisfação do público que nos segue. Há muitos partidários do antigo método, mas terão de reconhecer que estão ultrapassados. Vejam a diferença que o Belmonte trouxe para as arenas, mandando no touro o mais próximo que consegue, dominando-o a centímetros de distância, correndo riscos que são devidamente compensados pelo ardor do público. É incomparavelmente mais interessante”.
E por aí se ficou. O grande amigo do general Gomez, que o recebia principescamente nas suas haciendas venezuelanas, queria era farra e caiu nela de cabeça. “Por amor de Deus”, pedia a torto e a direito, “deixem-me gozar estes magníficos dias de sol português. Não há outro igual!” Dizia-se que também não havia outro igual a Don Antonio Cañero. E que nunca mais houve. Que o rejoneo acabou com ele e nunca mais voltou.