Fez sua pertença a qualidade de ser estrangeiro, em qualquer lugar e antes do tempo. Uma irresgatável falta desde a origem, ou até anterior, lapso de tempo que ele persegue. O pai registou-o dois dias após a verdadeira data do nascimento ficando a faltar-lhe esses dias de vida, o que o predestinaria à meditação obsessiva sobre a origem e a falta. O recurso a esse facto é alegoricamente reiterado na sua poesia. Há uma estreinidade no que escreve, no que é, uma qualidade de ser estrangeiro intrínseca a qualquer judeu aliás.
Voltando atrás, nasceu no Cairo em 1912. A sua família tinha-se instalado no Egipto desde as primeiras décadas do século XIX. Em 1882, aquando de uma crise social que parecia ameaçar os apátridas, mesmo estando bem integrada a família, por precaução, o seu avô decidiu dar lhe a nacionalidade italiana. Jabès (re)nasceu então italiano, além de dois dias antes. Será escolarizado no liceu Francês, (cristão).
No regresso de uma viagem a França com os seus pais, em 1929, conhecerá Arlette Cohen, sua companheira até ao fim. Muitos dos poemas escritos então têm uma tonalidade sentimental e Arlette seria a sua pedra de toque. Abandona aos poucos esta vertente lírica, escolhendo uma sensibilidade mais fantasista. A partir de 1943, renega a produção poética anterior. Alguns desses poemas serão reunidos e publicados em 59 sob o título “Je batis ma demeure”. Havia publicado regularmente em plaquetes, em revistas várias. Mas decisivo foi o encontro, em 1935, com Max Jacob, escritor, poeta, artista plástico, crítico, autor do famoso “Le Coup de Dés”, também judeu, que morreu no campo de Drancy. Talvez este encontro e a correspondência que se seguiu tenha sido um golpe de sorte (ou um lance de acaso).
Depois da nacionalização do canal do Suez, tornou-se impossível aos judeus permanecerem no Egipto. Em 1967 naturalizou-se francês. A sua obra todavia vinha sendo consagrada desde 1960. Mas mesmo assim, a grande mudança, irreparável, realizar-se-á com o exílio em Paris e o confronto mais de perto, ou mais presente, com a dimensão desmedida e intraduzível da Shoa que tudo subsume.
Forçado ao exílio, escolheria Paris. Cada vez mais, porém, a escrita seria a sua única identidade, ponto de pertença, escrita que não pode cessar de recomeçar: “tu és aquele que escreve o que é escrito”. E “a escrita assume dimensões totalitárias de compromisso vital com a decifração do mundo (…) a Poesia é o espaço fora do qual nada está nem é que possa valer uma vida humana” (Jacques Derrida, ‘La question d lu livre’ in L´Ecriture de la Différence). O judaísmo de Jabès é singular, ou traduz-se singularmente no Livro das Questões, se bem que a voz não se altere, mas intensifica-se: uma forte e antiga raiz é exumada e sobre ela uma ferida sem idade desembainhada, já que o que Jabès nos ensina é que as raízes falam, que as palavras querem impulsionar e o discurso poético é iniciado numa ferida. Assim como a própria história dos judeus. Um povo e a escrita sobreponíveis.
Obra inclassificável, ora poética ora fazendo estremecer todas as fonteiras literárias, uma espécie de flauta mágica, recorrendo à reflexão filosófica, manipulando o texto bíblico pela voz de rabinos inventados, de narrativas orientais e aforismos enigmáticos muitos embebidos na cabala e nas tradições hassídicas. A cabala como véu que vela, não destapa mas indicia, invólucro (pálpebra do olho de Deus que virou costas, perdeu a memória e se refugiou numa essência a que não se acede mas que se desmultiplica em sinais, “não te esqueças que és o nó de uma ruptura”); e, além de céu, a cabala como chão, presença subliminar que abafa o texto tentacular e invisível, não ofuscando mas fazendo exalar uma imensa beleza poética (a transparência nunca foi o reino da poesia). Referências várias: o olho como essência divina, o olhar como sentido maior, a identificação de letra a número, a rosa como símbolo. O jogo poético recorrente entre a luz e sombra, a escuridão e a manhã, tece uma rede de aforismos e metáforas arrebatadores. Ao longo dos anos, alguns maiores debruçam-se sobre a sua obra: Blanchot, Levinas, Derrida, até Foucault.
“O livro das questões” (1963) inaugura e desenvolve o que escreve depois da fuga do Egipto. “A cada questão, o Judeu responde com uma questão”, afirma Reb Lém
“O meu nome é uma questão e é a minha liberdade para as questões”, diz Reb Eglal. Todos estes rabinos que, inventados, pontuam o livro, são uma liberdade do autor.
“O livro das Questões “está divido em sete partes. Sete, o número da consciência, do sagrado. Parece suster os seus pilares, que aliás subverte, na estrutura do Livro. A Bíblia, melhor dizendo a Torá.
Poder-se-ia julgar que dada a história pessoal do poeta, o momento histórico que atravessou (desde o exílio) a poesia de Jabès, se teria reduzido aos judeus. Nada mais errado. A poesia, em vez do nada, é a sua temática. Desde a arquitetura do próprio texto, à variedade formal da sua inscrição na página, a mancha gráfica, assim como a alternância de géneros. Para além disso o poeta é extremamente sensível ao ritmo, à palavra tornada musicalmente sensível, ou melhor, à perícia do seu encadeamento e jogo formal na página. Este livro tem vários patamares de leitura, algumas linhas obscuras, difíceis (e são, a transparência nem sempre mora aqui) talvez seja como a Terra Prometida, uma Promessa. Exige uma micro e macroleitura. Nenhum nível anula o outro, antes questionam-se sob várias vozes: o que emana da filosofia (sente-se que Maître Eckhart poderia morar por aqui, por exemplo). Livro das questões porque a uma questão o judeu responde com outra questão. Daí o dialogismo. Os diálogos pontuam-no, (até graficamente configuram de modo próprio a página). Para Levinas (Difficile Liberté) a lei oral é eternamente contemporânea da escrita. Existe entre elas uma relação original cuja intelecção é como a atmosfera do judaísmo.
Quem não leu ou ouviu já as palavras do profeta Isaías (56;5): “Dar-lhes-ei na minha casa e no recinto dos meus muros um lugar de honra e de destaque e um nome que para sempre há-de durar. O início do livro mimetiza o Livro, isto é o antigo testamento (a Torá). Neste livro, a palavra traz à tona a reverberação do eco, do eco do eco, como uma fronha, o texto bíblico: “Eu dei-te o meu nome Sarah, e é uma rua sem saída.‘(diário de Yukel)’”. “Eu grito, Eu grito Yukel. Nós somos a inocência do grito.” (diário de Sarah)’”
Yukel e Sarah são os nomes (os amantes) que fazem a travessia do livro sem nunca chegarem a reunir-se num devir sem fim. O momento do seu encontro ou separação é sempre diferido. Perduram num desabrigo irresgatável que só a palavra alberga. Por isso, escreve, perdida que foi a ligação e a origem, temos dois nomes que são todos os nomes, ora interpelados na segunda pessoa, assumindo a enunciação, ou narrado um fio da sua história que o ritmo enlaça.
O ethos do texto é embriagante, místico ou mítico, até fazendo convergir, sobrepondo dados autobiográficos e episódios reais e imaginários da história de um povo. A casa, a pátria, o lugar que só sobrevive na palavra. A vida deles dois, judeus, é a história de um que podia ser qualquer outro: “vou dizer-vos a história da oliveira que morreu por já não reconhecer o solo do meu país.// Vou dizer-vos a história da tamareira que morreu por ser abandonada no limiar do meu país. Vou dizer-vos a história do jumento que morreu por não reconhecer os caminhos do meu país.// Vou dizer-vos a história do cão que morreu por ter perdido o seu dono”. O lugar não é, como se sabe, um lugar empírico preciso, nacional. Ele é um futuro por vir.
Na consequência do êxodo, torna-se real no tempo e no espaço a errância, a dispersão pelos cinco continentes, palpável, a dispersão, a presença do deserto. Na História de um povo e na história pessoal de Jabès. O Deserto e a Distância. Distância traduzível no deserto que devém poesia, na sede da origem. Sujeito poético sem sujeito, o assunto desta obra é o Livro, a voz escreve no livro sobre o Livro. A articulação de ambos é a voz do poeta Jabès que liga e se torna sujeito em si e para si: “este movimento não é uma reflexão especulativa ou crítica, mas antes de mais poesia e história. A escrita escreve-se mas precipita-se também na sua própria representação que se desenvolve como uma dolorosa interrogação sobre a sua própria possibilidade, a forma do livro representa-se a si mesma (Derrida).
De cada grão de areia que escorreu por entre os dedos de uma mão cheia, aberta, emana uma letra e com essa letra a palavra e com a palavra o Livro (e o nome impronunciável de Deus).
A palavra é um reino, o reino do judeu, que escreve e em simultâneo é escrito. O eco e a diferença duram.
O olhar de Deus desviou-se do homem. O nó da ruptura vem do primeiro homem, Adão, criado à sua semelhança, preferiu a liberdade e foi expulso do jardim do Paraíso.
O olhar de Deus desviou-se, terá deixado de olhar o homem, escondeu para sempre o rosto. A Aliança entre Aquele que Foi, É e Será, quebrou-se quando Moisés na base do Sinai, depois de ter recebido a Lei, irado com o seu povo que adorava um Bezerro, arremessa ao chão as duas Tábuas que se partem. O que resta aos judeus, segundo Jabes, é ler a Lei. Procurar Deus com os olhos perscrutando a Torá, aí onde ele continua a espiar os homens.
A shoa, ao longo do livro é omnipresente. Explicita ou indicialmente. E na história é o grito inocente de Sarah consumado. Deus terá feito o homem à sua semelhança. “Ao viver em nós, deixa de ser eterno. É aos biliões de vidas sucessivas dos homens que Deus deve a sua eternidade e a sua vida.”