O Inferno de Dante transformado em parque temático

O Inferno de Dante transformado em parque temático


Nos 700 anos de Dante, a Casa Fernando Pessoa quis promover uma “visita ao Inferno”, conseguindo acrescentar-lhe um décimo círculo, o da classe turística que é própria dos poetas contemporâneos.


Não seria complicado adivinhar a forma como a ideia terá germinado. Havia uma efeméride dessas mais gordas à porta e, dado o regime de tradicional nobreza a que a cultura se agarrou, com prejuízo para qualquer esforço de romper com os vícios da inércia mental que se fica por repetições e nauseantes actos cerimoniais, logo alguém se lembrou de organizar uma excursão a essa espécie de parque temático em que se tornou o Inferno de Dante. Aproveitando a presença entre nós desse literato em perpétuo estado de graça que é Alberto Manguel, sempre disposto a homologar toda a iniciativa que mantenha em rotação a girândola, este foi chamado para a coordenação do ritual. E a coisa, além de permitir convocar todo o pessoal dos quadros da Firma Poesia Transportadora Ilimitada, que, como é sabido, nos períodos de menor movimento, também se ocupa de serviços fúnebres, exéquias e o mais que seja necessário, deu margem ainda a uma almoçarada. A receita nestas coisas geralmente é a chanfana, fazendo de Dante a cabra velha, assada aqui, em respeito pela tradição, dentro de caçoilas de barro preto em fornos de lenha, mergulhada em vinho tinto, alho, folhas de louro, pimenta, colorau e sal. Embora, nalguns casos, dê a sensação de que a coisa se ficou por uns deslavados caldos Knorr.

A ideia passa por reescrever os Cantos do Inferno de Dante, sete séculos depois, e Clara Riso, directora da Casa Fernando Pessoa, com toda a candura que é própria de uma figura decorativa, essas que podem sempre assumir o tom mais auspicioso, já que tudo o que concerne aos altos propósitos da missão cultural deve sempre ser colocado à altura do inefável, admite a hipótese de, em resultado desta proposta, no final, surgir um cântico em português, “que poderíamos então ler como parte de uma possível Comédia daqui e de hoje”. Alberto Manguel adianta que ele e Riso aquilo de que incumbiram os poetas foi que respondessem aos versos de Dante na linguagem do nosso tempo, no seu estilo e com o seu entendimento da história de Dante.

Depois vem por ali falar na sinfonia colectiva a que um poeta se junta ao erguer a voz na presença de outro, e não se esquece de citar Pessoa e a sua “orquestra oculta”, dispensando-se de uma qualquer reflexão minimamente empenhada em relação a esse desafio de afiar o longo e denso eco desta obra, embora nos recorde que Dante estava claramente ciente do que alcançava à medida que trabalhava na sua Divina Comédia: “Raras vezes houve um poeta tão consciente do seu ofício, de como os seus pensamentos eram fielmente incarnados pelas palavras, tanto no seu sentido como no som.”

Este prefácio não passa de uma nota breve em que o coordenador de um dos mais audazes projectos literários de que temos memória se limita a recauchutar alguns lugares-comuns sobre aquele monumento literário e a congratular os 34 poetas desafiados pelas suas “tentativas impossíveis” de o renovarem, e, assim, no fundo, assume a condição fraudulenta de um labirinto que irá necessariamente ser urdido a partir de peças cegas e surdas umas para as outras, ao passo que Dante, quando se lançou no “mar da invenção” com uma arrogância fenomenal, pôde fazê-lo precisamente por ter controlado todos os aspectos do seu colossal poema. Aqui, pelo contrário, os poemas originais de cada um dos poetas convidados, dialogando com um canto em específico, são ramificações condenadas a um desencontro e atraiçoam à partida o valor essencial da obra, que é o mais perfeito e espantoso testemunho da coerência arquitectónica da cultura medieval. Assim, qualquer destas partes, flutuando e chocando umas com as outras, ainda que momentaneamente possam alcançar um registo fulgurante, e, aqui e ali, ecoar ou penetrar no fluxo dos tercetos de rima encadeada, replicando a sua energia rítmica, no que respeita à progressão épica e dramática do relato, acabam sempre por garantir que esta sairá derrotada.

Este é até um convite cruel. No fundo, o pedido que foi feito aos 34 poetas é comparável a pedir a um conjunto de arquitectos que reagissem à Sagrada Família de Gaudí isolando-os e dotando cada um, para o efeito, de uma caixa de Legos.

Mesmo com a consciência de que só lhes seria possível produzir um fragmento que isole de forma extraordinária certos aspectos do poema original, quanto mais ambicioso o zelo, mais difuso e forçado se torna, mais se enraíza na pesquisa, até a imaginação se render à glorificação da história ou do passado, e assim surgem os glorificadores do ritmo que ignoram o dínamo. Estes poetas, na tentativa de responderem a uma convocatória para um enfrentamento com um modo lírico de outros tempos, são levados a venerar um passado artificial, incapazes de girar em torno do original e, perdendo-se dele, perdem as coordenadas de partida, afastando-se do próprio rumo, desses “não falsos erros”, por incapacidade de ler o mapa, afundando-se na névoa de uma comédia de fantasmas a representarem em simultâneo partes desavindas, ecos que apenas se conjugam para criar uma sensação de ruína. Querendo-se, por um momento, dantianos, nesta obra colaborativa domina o ruído e ganha peso a função do mal-entendido, da glosa às apalpadelas, em que não apenas há um efeito de desagregação, mas uma forma de delírio improdutivo, que faz ressaltar a impotência criativa dos gestos do presente face à magistral aplicação do engenho daquele bardo que soube pôr em cena personagens históricas, numa sobreposição entre a potência comunicativa, teatral, narrativa, evocativa e racional da língua. E isto é precisamente o que, neste confronto, expõe o modo como estamos ainda dominados pela forma como as vanguardas, depois de se terem empenhado em dinamitar as convenções artísticas, acabaram por legitimar uma certa leviandade experimental que, em grande medida, apenas reforçou as patologias autistas da linguagem poética, de tal modo que, nos nossos dias, o discurso lírico é quase sempre equiparado a qualquer coisa de inane, a essas efusividades emocionais que normalmente servem de clarim ao lívido amanhecer dos vermes, na altura em que se enredam os mortos em flores de circunstância.

Aproveitando uns versos de Grabato Dias, são estas maneiras cruas mas cozinháveis de os servir mortos mas comestíveis, servir podres mas digeríveis, servir chochos mas toleráveis. Mas onde ficou o trago imaginário, o espinho avermelhado na boca e na palavra? E se a ideia seria arrastar até à luz dos dias de hoje esse cadáver descomunal, com o seu perfume ainda prenhe de subtilezas e de um encanto para sempre fresco, conviria ter consciência de que a única forma de suportarmos o volume e a profundidade (tantas vezes desgastada) das obras-primas do passado prende-se muitas vezes com a capacidade demonstrada por certos espíritos impertinentes que não se deixam esmagar tão facilmente e que optam por acrescentar camadas de desprezo hábil e ironias astuciosas, permitindo que algo mais fermente.

Aqui, pelo contrário, a armadilha está montada de maneira a que os incautos poetas se esfacelem ao tentar assimilar os códigos, a moralidade subjacente e toda a carga teologal que impregna o poema de Dante, sobrepondo-se o decoro a esses vícios inteligentes e fúteis que permitiriam escapar a uma sensação de moléstia que faz com que o leitor avance por muitos dos poemas originais sentindo que está sentado entre múmias oferecendo-se cigarros para ajudar com o tédio da eternidade. Às vezes, como Virgílio lembra a Dante, a melhor forma de deixar uma coisa para trás é afundarmo-nos ainda mais nela. Mas aqui, em lugar de descrições perturbadoras, dos quadros sórdidos e grotescos, de um sentido de correspondência com os aspectos mais degradantes da nossa época, em vez daquela “avidez voraz”, ou do longo estudo e grande amor que permitira colher o belo estilo, temos ensaios recalcitrantes, ecos descarnados, funções repetitivas, e, sempre que o aspecto formal assume ênfase, os versos tornam-se retóricos, pastosos, previsíveis. Outras vezes os poemas estão simplesmente alheados, e parecem comparecer aqui como versos desmaiados, figuras num estado de devaneio que é próprio desse estilo que, perante qualquer esforço para enquadrar a grandeza do passado, entra num estado de êxtase, erguendo velhos totens, ainda que estes se mostrem destituídos de qualquer função dialogal.

Assim, temos esse “jardim espelho” a que alude Catarina Nunes de Almeida, que logo no segundo canto estabelece esse reflexo suave ao traduzir o vigor tumultuoso de Dante num cântico de embalo, num ardor em que uma vaga entoação mística ou religiosa vai ungindo ritos de sedução: “Levanta-me a saia e a escrita/ com a mesma mão/ que seja muito ténue o véu entre os mundos/ e nós/ só um do outro/ alimentados.”

Há um sem número de outros poemas que aqui comparecem como o assobio distraído de um visitante de museu, que não deixa que a melodia que trazia da rua se altere muito, apenas adequando o tom, gerindo inflexões e referências, de modo a que as coisas não destoem excessivamente. Se a grande proeza alcançada por Dante passou por arrancar o Inferno a figurações efémeras ou mundanas, fazendo dele um domínio situável quando antes era inacessível, produzindo um cenário de horror marcado por fronteiras, com entrada e saída, dando origem a uma topografia infernal de sofrimento que podia ser mapeada, experimentada fisicamente e apreciada sensualmente, e onde os condenados da terra podiam ser encontrados, isto opõe-se precisamente ao tom bastante vago, impreciso, da poesia que, hoje, se limita a reproduzir um vago mal-estar, seguindo ao sabor do desacerto, “sem projecto ou métrica”. No drama de sofrimento que Dante narra, tudo perdura, nada desaparece. Aqui, pelo contrário, não falta só coesão ou necessidade, mas até profundidade, uma ficção de sentido honesto, agónico, um desespero que não se confunda com essas “anotações da indiferença e da tibieza”. Luís Quintais parece assinalar o fracasso da proposta, falando-nos num “eco de qualquer coisa que não reconheces,/ Um texto perdido e perdido outra vez,/ Uma virtude em vestígios, decepada virtude (…) A esperança ficou à porta assim foi rompido// O imundo saco, e tu, informe, balbuciante,/ Procurando enternecer as estrelas,/ E sem cuidares que as estrelas são meras figuras// De retórica de um outro que o mundo abandonou”. Na maioria dos casos os poetas insistem na insubstante vida de imagens roendo ossadas de aquém enquanto remexem baldadamente as cinzas geladas do Além. A linguagem chega a firmar tons bastante escuros, mas não formula esses sonhos (ou pesadelos) que possam ser “arqueologia e semente” para algo mais concreto. Resta essa “rosa de lama que alguém descreverá atenta, lentamente”, mas o obsessivo rigor, o sentido capaz de encarnar e mover-se entre as coisas do mundo é precisamente o que nos escapa nestes jogos de som e imagens que se sucedem sem propósito.

A força convulsiva das imagens e dos ritmos que Dante encadeou perduram pela sua capacidade de dar vida à cartografia do sofrimento enredando formas de tortura e punição com os elementos terrenos, inaugurando, assim, um complexo labirinto que torna apreensíveis as figuras que representam dilemas de ordem moral, políticos e estéticos, inspirando gerações de artistas, escritores e teólogos, e moldando definitivamente o imaginário no que toca aos aspectos da danação das almas. Embora o seu poema estivesse explicitamente ligado a temas religiosos, a sua irradiação atinge qualquer noção posterior relativa aos desejos terrenos, às nossas transgressões, punições e sacrifícios. Assim, o seu génio produziu uma figuração literal desses aspectos que transcendem o resíduo material da existência, vincando o papel das artes enquanto memória mítica da humanidade, tentando restitui-la a uma consciência plena de si, a qual teria gozado antes da queda.

A Comédia é arquitectada como uma viagem épica que reconhece a sua dívida a Homero e, em simultâneo, como uma peregrinação medieval, tendo-se tornado um marco na literatura ocidental como uma das primeiras obras-primas narrativas com amplo recurso ao vernáculo. E Dante não é uma simples testemunha, não está ali na condição de um mero turista, mas, sendo embora um crítico feroz do papado, era um militante fervoroso da teologia católica. Ora, como um tradutor de Dante reconheceu, a Comédia pode ser lida como “uma gigantesca enciclopédia dos motivos humanos”, iluminando a natureza dos conflitos interiores que experimentamos, mas se o Inferno persiste e domina ainda hoje o nosso imaginário é pela força das suas representações de carnificina e depravação que tantas vezes vão ao limite da obscenidade.

Ainda que empenhada na missão de promover a salvação segundo a fé cristã, esta obra está consagrada a uma apoteose do mal, que nunca se fica por um registo banal. Como António Mega Ferreira refere no posfácio deste volume, “o que apenas se temia obscuramente passa a ter uma verosimilhança palpável: a transcendência torna-se, aos olhos atónitos dos fiéis, uma imanência terrível”. Dante elenca com uma paixão que roça o sadismo o rol de traidores, falsários, ladrões, hipócritas, corruptos, charlatães, bajuladores, usurários, sodomitas, suicidas, saqueadores, assassinos, hereges, esbanjadores, melancólicos, glutões, viciados em sexo e almas apáticas cujo pecado foi a ingratidão pela força vital com que nasceram, e não só isso como a crueza das penas que inventa correspondem a esse interminável “catálogo de perversões” enumeradas no poema. O elenco esplende pela caracterização individualizada, e apesar da ocasional prova de compaixão, Dante parece regozijar-se nas descrições e aproveita todas as oportunidades para ir fazendo ajustes de contas, o que revela a sua ânsia de promover a punição, nem que seja servindo-se da arte para rogar uma maldição secular a esses que via como os agentes da podridão moral do seu tempo. “É como se, para descrever o Inferno, Dante se tivesse limitado a olhar para o mundo em seu redor; mas, como um demiurgo, é ele que cria a teoria de penas adequadas a essas mesmas perversões”, diz-nos Mega Ferreira.

Se nalguns momentos desta obra colectiva os poetas se esforçam por nos situar face ao momento de dissolução dos valores em que vivemos, infelizmente, os exemplos mais óbvios é a frustre e nada convincente tentativa de Luís Filipe Castro Mendes ensaiar uma denúncia do “inferno dos financeiros de Portugal”, vindo-nos com inofensivas invectivas, sem qualquer acinte, nem a graça furiosa e truculenta que consegue infamar e que teria de se exercer chamando os bois pelos nomes. Mas, a esse respeito, a covardia impera naqueles que sempre ajustam os seus actos segundo as conveniências e, se umas vezes toleram tudo, noutras não evitam a bajulação. Por sua vez, Rosa Maria Martelo encena um gesto do mesmo jaez, mas naquele registo de condenação altiva, de quem sempre preferiria mudar de passeio em vez de enfrentar a coisa: “Agora que regresso a este alfobre/ de demónios projectado na mente/ como um filme, vejo ao pez lançados/ e à desgraça eterna os que, por Dante/ nomeados, foram do seu tempo,/ a outros mais a quem sei eu as caras,/ de as ver nas notícias, nos jornais./ Cínicos, ignóbeis e impunes/ irão no oitavo anel perder o pé?/ Fundos na ordem do inferno, ferverão/ altos na hierarquia dos castigos,/ por fraude, traficância, peculato?”

Ora, também na coragem Dante se distinguia, pois se se sabia um gigante literário, foi um político ingénuo e derrotado, condenado à morte pelos seus próprios concidadãos, tendo sido forçado a viver no exílio durante quase duas décadas, arriscando-se a apagar-se na miséria e afligido também na sua honra. Se escreveu este majestoso poema foi precisamente para obter justiça através do seu escandaloso talento, vingar-se, mas isso é um ímpeto que está de todo ausente destes poemas suscitados em diálogo com o seu, e sobretudo daqueles que vão ao ponto de se servir da forma como de um brinquedo, e mimetizar de forma enjoativa certas marcas do passado, esquecendo como o poema de Dante foi, à sua época, um prodígio de inovação e de ousadias até então nunca vistas. Por isso, este volume, ao contrário do que sentencia Mega Ferreira, é tudo menos um feliz testemunho da sobrevivência da obra de Dante Alighieri, funcionando mais como um gemido abafado de consciências entregues a uma cobardia ancestral, as quais se limitam a anular-se em rodeios, nessa altivez desconsolada, impotente, e que vai traficando a poesia como mais uma entre tantas forças de deserção do nosso dever de denúncia intelectual. Infelizmente, ninguém aqui parece acreditar no Inferno. E, sete séculos depois, dá a sensação de que abundam estes inferninhos em banho maria por falta de inquietação, de uma verdadeira noção do horror que se vai vivendo nalguns lugares da terra.