“Olá a todos, obrigado por participarem. Não venho até vós com boas notícias. O mercado mudou, como sabem, e temos que seguir em frente para sobreviver e para que possamos continuar a prosperar e a cumprir a nossa missão. Esta não é uma notícia que vão querer ouvir, mas, no final de contas, foi a minha a decisão e eu queria que a ouvissem de mim. Foi uma decisão muito, muito desafiadora de se tomar. Esta é a segunda vez na minha carreira que estou a fazer isto e não o quero fazer”. Foi desta forma que Vishal Garg, diretor-executivo da empresa norte-americana Better.com, iniciou o despedimento de 900 funcionários via Zoom no passado dia 1 de dezembro.
Ao ser confrontado com as expressões faciais de choque dos trabalhadores, acrescentou: “Da última vez que fiz isto, chorei. Desta vez, espero ser mais forte. Vamos demitir cerca de 15% da empresa por vários motivos: o mercado, a eficiência, o desempenho e a produtividade. Se está nesta chamada, faz parte do azarado grupo que vai ser despedido. O seu contrato foi alvo de rescisão com vigência imediata”. Na curta intervenção de três minutos, Garg não informou os colaboradores acerca do investimento financeiro, avaliado em cerca de 750 milhões de dólares (aproximadamente 667 milhões de euros), que a Better.com recebeu recentemente da Softbank, uma empresa japonesa.
“Amei aqueles com quem trabalhei, eles foram e ainda são amigos íntimos. Tive uma chefe que pôs em causa o meu trabalho em frente de outro funcionário. Fiquei tenso por algumas semanas, mas, finalmente, ela entendeu que eu não era o culpado, que alguém a havia enganado, conversámos e ela acabou por me pedir desculpa. Foi a única vez, em 20 anos de trabalho, que me senti de algum modo ameaçado”, começa por explicar Christian Chapman, um dos trabalhadores despedidos, em declarações ao i.
“Recebemos um convite 10 minutos antes para aquela que parecia ser uma reunião geral, como aquelas que temos regularmente. Não fomos informados da programação e houve uma confusão em massa antes, durante e depois”, adianta o homem de 41 anos formado em Enfermagem que sempre executou funções no setor das hipotecas – tendo passado pelo Bank of America e outras companhias –, mas estava na Better.com desde fevereiro passado.
“Ele foi direto ao ponto e senti que levei um pontapé no estômago. Será que aquilo estava realmente a acontecer? Por que faltou empatia? Vishal apenas trocou empatia por dólares: é este o capitalismo no seu pior?”, questiona. “Fiquei muito confuso e questionei se devia estar naquela chamada. E, de repente, a mesma foi terminada sem eu ter tido a oportunidade de colocar nenhuma pergunta”, desabafa o residente em McKinney, cidade do estado norte-americano do Texas.
“Fiquei consternado, em estado de choque, e imediatamente pensei nos meus filhos (e nos filhos e nas famílias dos meus colegas de trabalho). Estamos quase no Natal. E questionei-me acerca da forma como esse único ato de insensibilidade ecoaria por todas as cidades da América, tendo em conta que Vishal não nos afetou apenas individualmente mas também aos nossos familiares, amigos e conhecidos. As escolhas de uma pessoa propagam-se por toda a sociedade”, constata o antigo funcionário que ainda não compreende como é que Garg teve coragem para, além de terminar a videochamada sem aviso prévio, encerrar as sessões dele e dos colegas remotamente “para que ninguém pudesse aceder a nada”.
“Como CEO, era vulgar e costumava dizer palavrões, mas era ágil e cheio de energia. Às vezes, agia com superioridade”, recorda. Ainda assim, Christian continua a considerar que este despedimento súbito de centenas de pessoas é “surpreendente”, até porque a única coisa que receberão será o montante equivalente a um ordenado. Será que Garg, em algum momento, pensou nas consequências dos seus atos? “Não, tudo isto foi calculado e ele foi frio e insensível”.
“Sei que estamos a passar por uma pandemia, mas ele poderia ter-se dado ao trabalho de falar com grupos menores de pessoas ou até mesmo chamá-los progressivamente aos escritórios, por exemplo. Acho que faltou empatia e premeditação. A intervenção também poderia ter começado com ele e, em seguida, poderíamos ter conversado com representantes do departamento de recursos humanos para entendermos tudo melhor e recebermos informações sobre as próximas etapas”, esclarece, não acreditando na sinceridade do pedido de desculpas do CEO.
“É tudo uma questão de relações públicas”, afirma, referindo-se a um pequeno texto publicado no site da Better.com pelo fundador da mesma: “Quero pedir desculpa pela maneira como lidei com os despedimentos na semana passada. Não demonstrei o devido respeito e apreço pelos indivíduos afetados e pelas suas contribuições para a Better. Errei na execução”.
“Os líderes comem por último, digamos assim, e ele deveria ter oferecido possibilidades de readaptação e mais preparação”, diz Christian, não escondendo que ele e os colegas encontram-se divididos pelas diferentes sucursais da empresa – Charlotte, na Carolina do Norte; Costa Mesa e Oakland, na Califórnia; Nova Iorque e Houston, no Texas – para as quais estão a ser procurados novos colaboradores.
“Junte-se à equipa que está a redefinir a experiência de ser proprietário de uma casa. Procuramos pessoas inteligentes e talentosas para ajudar a fazer isso acontecer em cada etapa: de engenheiros e designers a corretores imobiliários”, lê-se no separador “Carreiras” no site oficial da Better.com. De facto, ofertas não faltam, principalmente, para os escritórios de Nova Iorque – 25 – e do Texas – seis – e para trabalho remoto – 22 –, existindo apenas uma, à data de fecho desta edição, para o escritório de Oakland.
“Gostaria de assegurar uma nova posição e estou aberto a possibilidades em novas áreas”, finaliza Christian que tem estado a pesquisar intensamente ofertas de trabalho no LinkedIn assim como a veicular publicações acerca do trabalho dos colegas com os quais lidou mais diretamente na tentativa de obter emprego não só para ele como para aqueles que o acompanharam nos últimos 10 meses.
Estaremos perante uma mudança no panorama das relações laborais? “A relação destes resultados com a liderança é expectável, principalmente num mundo laboral onde os vínculos de trabalho estáveis são cada vez menos frequentes. Ora, se depois associarmos isto à pressão derivada da crise económica e social, é possível que alguns gestores adotem estratégias pouco éticas de ação perante os trabalhadores, como neste caso”, analisa Rui Gomes, Professor Auxiliar na Escola de Psicologia da Universidade do Minho que se formou nos três diferentes ciclos de estudo nesta mesma instituição.
“Vínculos de trabalho instáveis, pressões económicas e financeiras e tensão na própria sobrevivência das organizações podem levar a formas de liderança pouco ajustadas ao bom funcionamento dos locais de trabalho. No final, o resultado é praticamente o mesmo: as cadeias de funcionamento organizacional tendem a ceder nas estruturas mais frágeis, como é o caso dos trabalhadores com vínculos laborais instáveis”, sintetiza o docente que, em termos académicos, dedica-se mais ao estudo dos fatores humanos na adaptação ao stress, na liderança e rendimento de equipas e no treino de competências de vida e desenvolvimento humano.
Quem vai ao encontro da perspetiva do responsável pelo grupo de investigação “Adaptação, Rendimento e Desenvolvimento Humano” (www.ardh.pt) – que exerceu funções em clubes desportivos, acompanhando atletas de diferentes modalidades – é Gabriela Gonçalves, Professora Auxiliar na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve. Naquilo que diz respeito à possível diferença entre o despedimento realizado via presencial e a tipologia daquele que foi levado a cabo pela Better.com, a docente elucida que “os sentimentos e emoções serão diferentes”.
“A forma como o CEO o fez além de ser muito pouco pessoal – não falou com ninguém individualmente, mesmo que fosse por videochamada, não estabelece contacto visual e, portanto, empatia quase zero ou zero – coloca cada pessoa num nível de não pessoa e sim de um número, sem identidade, é um no meio de 900”, repara a doutorada em Ciências Psicológicas na Université Catholique de Louvain, na Bélgica, em 2004. “Portanto, desconfirma os colaboradores. Por outro lado, não é uma conversa privada, cada pessoa está exposta a um público de pessoas – umas que conhece, outras nem isso – e, além da exposição, fica condicionada a não ‘poder’ expressar as emoções, sendo que nem tem espaço para isso”, salienta a atual diretora dos cursos de licenciatura em Psicologia, mestrado em Gestão de Recursos Humanos e subdiretora do mestrado em Segurança e Saúde no Trabalho.
“Neste contexto é possível que a estranheza e a surpresa deixem as pessoas sem reação, eventualmente, devido à partilha social, com maior capacidade de gerir a situação – ou seja, não estão sozinhas. Portanto, poderão mais facilmente atribuir o despedimento a fatores externos, inclusive com um bode expiatório muito acessível: o CEO”, adiciona, observando que este modo impessoal de despedimento “pode trazer algumas vantagens para quem está a despedir”, na medida em que “não se envolve, portanto, também não fica desconfortável”.
“Pode sentir-se como se estivesse a fazer um discurso qualquer, não tem que lidar com o olhar de ninguém. Claro que aqui é mais notório porque são 900 pessoas, é evidente que, se fosse uma, o desconforto seria quase igual ao modo presencial. Mas, mesmo com uma pessoa é mais fácil fugir ao olhar”, frisa.
“Relativamente ao futuro, à primeira vista diria que sim, as novas tecnologias permitem isso, e é confortável para quem quer despedir”, responde, quando questionada acerca da eventualidade dos despedimentos em massa, realizados virtualmente, tornarem-se numa tendência. “No entanto, atendendo ao tipo de liderança que cada vez mais se procura, acredito que as empresas e líderes – por uma questão de imagem pública credível, atrativa e com poder informal – vão ser pressionadas para não fazerem isto”.
Recorde-se que, em março do ano passado, a Bird – empresa de partilha de trotinetes elétricas – despediu mais de 400 pessoas via Zoom, não sendo a situação da Better.com, infelizmente, inédita. À época, Travis VanderZanden, antigo administrador da Uber e que fundou a Bird, marcou uma reunião com centenas de trabalhadores, mas ninguém sabia quem integrava a lista e, tal como no caso relatado por Christian Chapman, não houve possibilidade de fazer perguntas.
Naquele dia 27 de março, por volta das 10h30, os funcionários juntaram-se à chamada, porém, na imagem de fundo existia apenas a palavra “Covid-19”, escrita em maiúsculas e a cinzento escuro. Uma voz robótica começou por dizer que “esta é uma forma subótima de voz para deixar esta mensagem”. A reunião – que tinha uma duração prevista de meia hora – durou apenas dois minutos e foi somente constituída por um monólogo. Posteriormente, o líder da Bird – à semelhança do da Better.com – admitiu que pensou que desligar o vídeo “foi a atitude mais humana a tomar”, mas que deveria “ter feito chamadas individuais com cada uma das pessoas afetadas”.