“Se não chover razoavelmente até janeiro, as alternativas aos apagões podem ser muito caras”

“Se não chover razoavelmente até janeiro, as alternativas aos apagões podem ser muito caras”


Crítico da política energética delineada, Clemente Pedro Nunes diz que o fecho do Pego acontece num momento em que o país vai ficar vulnerável e acusa o Governo de estar a arruinar a competitividade económica do país. “Estamos a brincar à descarbonização”, diz o professor catedrático do Instituto Superior Técnico.


Tem tido uma posição muito crítica das opções políticas tomadas no sistema elétrico nacional nos últimos anos, do fecho de Sines à estratégia de hidrogénio. A produção a carvão acabou agora de vez. O país está preparado?

O que tenho dito sempre desde 2005 é que as potências elétricas intermitentes, tal como as temos hoje, precisam de back-ups, que no fundo é haver energia com potência firme, produzida com matéria-prima que podemos armazenar, como é o caso do gás natural, do carvão, do fuelóleo, do nuclear e também das grandes barragens de albufeira. Às vezes o grande público não tem noção, mas o armazenamento de eletricidade a grande escala, em termos económicos, ainda é impraticável na generalidade dos casos. A central do Pego, assim como a de Sines, eram as duas grandes centrais que seguravam o sistema firme a sul do Tejo – firme em termos eletrotécnicos significa centrais em que se pode dizer “é para produzir quando o consumidor precisa”. Não pode dizer a uma torre eólica que “produza agora” se não houver vento. Por muitos painéis fotovoltaicos que tenha, a partir das 5 da tarde no inverno está a produzir zero porque o sol já foi a caminho da América… A grande desgraça que temos hoje foi criada pelo Governo Sócrates em 2006, 2007, quando avançou com incentivos a quantidades maciças de potencias intermitentes sustentadas em tecnologias imaturas, na base da atribuição das chamadas Feed in Tariff (FIT) aos respetivos produtores. Basicamente, como incentivo ao investimento, quem produz com FIT tem duas vantagens: é pago com um preço fixo permanente e a concorrência é expulsa, o que é uma coisa simpática… As FIT atuais são por 15 anos, começaram a operar a maioria por volta de 2013, por isso vão pelo menos até 2028. Até lá, mesmo que apareçam novos operadores de intermitentes com preços melhores, podem não conseguir vender porque o mercado já está ocupado pelas FIT do tempo de Sócrates. E o problema da rentabilidade de Sines ou do Pego começa aqui. O ministro do Ambiente diz que a central custava aos portugueses 100 milhões de euros por ano. Custava porque estavam sempre no pára arranca, porque se tinham que ajustar ao vento e ao sol para evitarem apagões. 

Este ano a central do Pego representou 1,6% da produção de energia nacional, 2,2% no inverno. Com contributos desta ordem, que cenários se colocam? As renováveis podem compensar, será preciso importar mais, há risco de apagões?

O peso sobre o total de produção é algo irrelevante. Mais uma vez, é preciso perceber é a percentagem que representava da potência firme, que é aquela em que podemos despachar a qualquer momento. Neste momento, com o fecho do Pego, temos instalados em Portugal 20 mil megawatts de potência elétrica, dos quais 9 mil são intermitentes. E apesar do consumo ser apenas de 9.000 MW nas horas de ponta, e menos de 4.000 MW nas horas de vazio, temos estado a importar este ano grandes quantidades de eletricidade. As albufeiras não têm o problema da intermitência porque se pode armazenar água, mas é preciso ter cuidado com o abastecimento, porque muitas barragens têm fins múltiplos, incluindo Castelo de Bode, que abastece Lisboa. Não se pode gastar tudo para produzir eletricidade, porque então Lisboa morre à sede. Portanto em termos de potência firme, o Pego representava mais de 10% do fornecimento de energia nas horas de vazio, que são aquelas horas em que se consome menos mas são todas as noites a partir das 20h/21h até às 7h da manhã, fins de semana e feriados. Se não houver energia suficiente para responder ao que os clientes estão nesse instante a pedir, há apagões. Para não haver apagões, paga-se. 

Em que medida?

Por exemplo, num dia frio de inverno, pode pedir-se à central termoelétrica do Ribatejo (gás natural) para produzir e esta faz um preço que incorpora já os custos do arranque, produção e paragem… Já temos das eletricidades mais caras da Europa e vamos continuar a ter, com o risco de termos ainda mais emissões, porque as sucessivas paragens e arranques são uma enorme causa de ineficiência e portanto do aumento de emissões de CO2 .

Mas há o risco de apagões já este inverno, sabendo-se que os consumos por norma aumentam?

Considero que a probabilidade de haver apagões generalizados é reduzida, mas é preciso ver que há coisas a correr mal. Um dos nossos pipelines de gás, o Gasoduto Magrebe-Europa, está fechado desde o final de outubro pelos argelinos quando cortaram relações com Marrocos por causa do Sará. Temos um acordo com Espanha para usar o Medgaz, que vai da Argélia diretamente para Málaga, mas pode não chegar para as encomendas, e já está a operar na capacidade máxima. 

Mas com novas centrais a gás, esse risco não fica mitigado?

O custo dos fretes dos metaneiros, para transportar gás liquefeito por mar diretamente para Sines, está a disparar. Por outro lado as interligações elétricas com França são curtas. Tivemos a cimeira sobre interligações energéticas com o Presidente Macron em Lisboa em julho de 2018, para reforçar a potencia de interligação de França para a Península Ibérica de 3 mil para 6 mil megawatts, mas é algo que não estará concretizado antes de 2027. Portanto estamos muito vulneráveis e neste momento desativar o Pego, como antes já se tinha desativado Sines, prejudica gravemente a nossa economia e a nossa coesão social e territorial. Se não chover razoavelmente até janeiro, as alternativas aos apagões podem ser muito caras. E aqui insisto que as FIT, que vão vigorar pelo menos até 2028, são a causa da desgraça. As produções elétricas vivem de contratos politicamente assumidos em nome dos consumidores e portanto o que o Pego tinha até agora era um contrato de aquisição de energia, contrato pelos qual a empresa tinha uma rentabilidade mínima garantida, e todos os anos, independentemente do que acontecesse na exploração, tinha essa rentabilidade assegurada. O que significa que mesmo que chegassem ao fim do ano com resultados de exploração inferiores ao mínimo que estava contratualizado, nomeadamente por terem sido obrigadas pelas FIT concedidas às potências intermitentes a um regime de pára/arranca, os consumidores eram obrigados pelo Estado a pagar a diferença . É esta a poupança a que o ministro Matos Fernandes agora se refere. Mas é preciso perceber o que isto significa: são obrigadas a andar atrás do prejuízo. Se não há vento têm de arrancar, mas passado pouco tempo se volta o vento, são mandadas parar novamente porque as FIT têm prioridade. Ainda há dias me telefonaram a perguntar como é possível que a Polónia tenha energia a menos de metade do nosso preço, 80 euros por MWh, só baseada em carvão. É muito simples, não têm intermitentes com FIT para lhes sabotarem a produção. E é essa também a razão pela qual a Espanha decidiu rearrancar agora com uma central a carvão na Galiza, exatamente no dia em que o Pego foi obrigada a encerrar. Mas note-se que também as centrais de gás natural quando têm de arrancar e parar muitas vezes têm os respetivos custos de funcionamento a disparar. É como se tivesse um carro a fazer viagens para o Porto para Lisboa só em primeira e em segunda.

Mas nessa linha, qual seria a alternativa para fazer a descarbonização?

A alternativa é ter um verdadeiro planeamento do Sistema Elétrico que avalie fundamentadamente as diferentes alternativas disponíveis para produzir a eletricidade de que o país precisa nos próximos 20 a 30 anos, e comparar os respetivos custos de forma rigorosa. Incluindo nessas alternativas a utilização de biomassa florestal. Veja-se por exemplo o caso da Suécia que conseguiu estruturar um Sistema Elétrico descarbonizado e economicamente competitivo, baseado em três pilares: nuclear, biomassa e hídrica. Mas para isso é preciso decidir uma coisa: quer-se fazer a descarbonização ou brincar à descarbonização? O que se tem andado a fazer é a arruinar o país para brincar à descarbonização. A Índia tem 120 vezes as emissões portuguesas, tem 300 centrais como a do Pego e ainda noutro dia o primeiro-ministro indiano disse para quem o quis ouvir em Glasgow que espera atingir a neutralidade carbónica em 2070. No caso do Pego, a respetiva proprietária até apresentou um projeto de reconversão que inclui a utilização de biomassa, a que se opôs o ministro Matos Fernandes e, como foi público, a Endesa, sócia minoritária da empresa. O que se fez foi apenas destruir empregos, reduzir as potências firmes que evitam apagões e ficar mais dependente do exterior, prejudicando ainda mais uma zona do Interior, o Médio Tejo e o Pinhal Interior, em que muito escasseiam os empregos qualificados. Considero esta situação lamentável, e confesso que muito gostava de saber o que dela pensam a ministra da Coesão territorial, Ana Abrunhosa, e a ministra da Agricultura, Céu Antunes, que foi anteriormente presidente da Câmara Municipal de Abrantes. 
No último relatório Relatório de Monitorização da Segurança de Abastecimento do Sistema Elétrico Nacional para o período de 2022-2040 (RMSA-E 2021), já antecipando o fecho da central do Pego, pode ler-se que já em 2022, tanto num cenário base como num cenário conservador, o sistema não será capaz de dar resposta aos consumos de eletricidade. Havendo a decisão de terminar a produção de energia a carvão, o resto está a ser acautelado?
Supostamente há um ministro da Economia, número dois do Governo, que devia coordenar estas coisas ao mais alto nível. Mas aparentemente quem manda na Economia é o ministro do Ambiente. Na minha opinião o que se devia ter feito era negociar com estas centrais, a mais eficiente até era Sines, o prolongamento da respetiva operação até pelo menos 2030.

Tal como importamos energia nuclear não a produzindo cá, podemos continuar a importar eletricidade baseada em carvão?

Diria que nos próximos meses vamos continuar a importar o que houver disponível de eletricidade no MIBEL. Se analisar os balanços da REN para o MIBEL, a central nuclear de Almaraz desde abril que está a funcionar maioritariamente para abastecer Portugal.

 A 200 e tal quilómetros do Pego, notaram-nos os habitantes com alguma ironia.

A diferença é que Espanha tem um Governo que analisa as questões tecnológicas, ambientais e económicas duma forma global e estratégica, e decide em conformidade .

Houve esse último relatório da DGEG. As entidades com responsabilidades na segurança do abastecimento estão a zelar por isso?

Tanto quanto sei o planeamento estratégico a prazo do nosso Sistema Elétrico não está devidamente estruturado em termos da defesa dos interesses nacionais. A ERSE não tem competências diretas sobre o planeamento da produção de eletricidade, a DGEG tem recursos humanos muito desfalcados e a REN foi privatizada… Mas julgo que houve serviços da Administração Pública, como o RMSA-E, que emitiram os alertas suficientes para não ficarem com a culpa, caso venham a ocorrer problemas graves nos próximos dois anos. Se isso acontecer, a responsabilidade será do Governo.

Que tipo de problema grave antecipa?

Há dois tipos de problemas graves que podem ocorrer: falhas de abastecimento/apagões e o preço aumentar como já está a aumentar. Aí faz-se um discurso, depois aumenta-se a dívida tarifária. A primeira dívida tarifária nasceu de um “problema grave”, quando o então presidente da ERSE foi ter em 2008 com o ministro Manuel Pinho e disse que ia aumentar o preço da eletricidade em cerca de 20%. Exatamente devido aos sobrecustos das potências intermitentes com FIT, acrescido do subsequente regime de pára/arranca provocado nas centrais de backup . O ministro e o primeiro-ministro da altura disseram não: os produtores continuam a receber o que estava nas FIT e os consumidores não pagam agora, pagam depois. E assim nasceu a Dívida Tarifária. Neste momento temos uma das eletricidades mais caras da Europa e uma dívida tarifária de 3 mil milhões de Euros, que a ERSE já disse que vai cair para 2 mil milhões de euros no próximo ano. Sempre às costas dos consumidores.

O PSD questionou a reforma relâmpago do sistema elétrico em véspera de eleições, em que o Governo pretende reforçar o portfólio de renováveis e diz ter iniciado mais cedo. Concorda com a crítica?

Esta proposta reforma é basicamente obrigar o Sistema Elétrico a depender ainda mais das potencias intermitentes. O processo é sempre o mesmo: faz-se uma campanha mediática a dizer que se vai salvar o planeta e não se resolve nada, nem se salva nada porque a Índia e China é que mandam nas emissões de CO2, mas os consumidores pagam todas as consequências dessas decisões arbitrárias. Se desaparecêssemos do mapa amanhã, se Portugal acabasse, desapareciam 0,1% das emissões globais. Portanto se queremos realisticamente um sistema mais equilibrado em Portugal, temos de planear um processo progressivo de phase out até 2028 das FIT concedidas às potências intermitentes, permitir a entrada de novos concorrentes com potências firmes e descarbonizadas a começar pela biomassa, e colocar no topo das prioridades a concretização do reforço das interligações elétricas entre a França e a Península Ibérica, conforme já decidido na Cimeira de Lisboa em 2018 . Para decidir com eficácia, é preciso planear com base no interesse nacional . Porque é que o futuro Governo alemão discutiu durante 2 meses se o carvão acaba em 2030 ou em 2038 ? E acabou por decidir que será uma meta flexível entre 2030 e 2038! A história do nosso Sistema Elétrico desde 2005 é uma história muito triste em muitas vertentes. Incluindo a vertente judicial…

Foi ressuscitado em Glasglow o nuclear. É uma discussão que faz sentido ter cá?

Nós não temos condições sozinhos para avançar agora para o nuclear. Mas não haja dúvidas, hoje já temos uma central nuclear, Almaraz, que em grande parte nos abastece. Se não, este ano já tínhamos tido vários apagões, para além do que já ocorreu em julho. Na Península Ibérica há um conjunto de 7000 megawatts nuclear. A taxa de produção este ano é de 98,5%. Imagine o dinheiro que as empresas estão a ganhar. Os custos são os mesmos do ano passado e as receitas são quatro vezes mais, por causa do funcionamento do mercado marginalista no MIBEL. Mas todo este dinheiro fica em Espanha …

Ainda no caso do carvão, reconhece que é um problema?

O carvão é um problema de quem? Portugal representa 0,1% das emissões globais de CO2. Com a China a produzir até 2060 e a Índia até 2070 o problema alguma vez fica resolvido por ações voluntaristas de Portugal? Com certeza que é um problema que tem de ser visto a nível global e com intervenção das hiperpotências, nem é já tanto da Europa, é sobretudo da China, da Índia e também da América. Há um princípio cautelar que nos diz que o crescimento de um determinado gás na atmosfera não deve ser exponencial. Mas daí a tomar medidas irracionais que destroem a competitividade da nossa economia, nisso não alinho. A nossa eletricidade está nos 220 euros por MWh, a da Polónia, baseada no carvão, em 80. E nós estamos ainda a falar de estratégias imaturas à base do “ hidrogénio verde” com custos futuros ainda mais elevados. Como é que se quer que as empresas sobrevivam e paguem salários mais altos? Só indo à falência. Pagamos pelo gás natural 6 vezes mais do que os EUA. Como é que uma empresa de cerâmica portuguesa pode vender para os EUA?

O Governo anunciou esta semana o leilão de 262 megawatts de energia solar flutuante em sete barragens, entre eles o maior projeto deste género a instalar no Alqueva. Não admite um cenário em que esteja errado e esta aposta dê frutos a prazo e possa servir de exemplo?

O que se passou com o desenvolvimento económico de Portugal nos últimos 20 anos, é paradigmático . No livro Regulação em Portugal do professor Abel Mateus, que foi presidente da Autoridade da Concorrência, conclui-se que os portugueses pagaram 82 mil milhões de euros a mais do que deviam, exatamente pelas más políticas a começar pela do Sistema Elétrico. Para se preparar um futuro Sistema Elétrico que salvaguarde a competitividade da nossa economia, tem que se estudar e comparar devidamente as alternativas disponíveis nas suas três vertentes: tecnológica, ambiental e económica. Tomar decisões baseadas apenas em medidas voluntaristas ao sabor dos lóbis dominantes, fará apenas com que em poucos anos venhamos a ser ultrapassados pela própria Bulgária, em termos de PIB per capita…

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