Há dois anos que a nossa vida não é a mesma. Para uns, foi quase um “reaprender a viver”. Para outros, uma pausa da azáfama do dia-a-dia. A pandemia da covid-19 trouxe consigo, para além de todos os medos e incertezas, uma mudança naquilo que somos, na maneira como nos relacionamos, mas também naquilo que consumimos e como consumimos. O “vazio” instalado na casa de alguns trouxe também consigo a necessidade de preencher os espaços e colmatar a falta de companhia, de ocupação e de estímulos externos. Se houve quem aproveitou o tempo para se livrar de algumas coisas, por outro lado houve quem encontrou novas paixões, apostou em novas atividades e descobriu possíveis obsessões que agora, após a abertura do país, necessitaram de ser geridas.
Marcos Soares vendeu o seu carro, adquirindo uma bicicleta. “Como desde que começou a pandemia faço o meu trabalho remotamente, não encarava o carro como uma necessidade”, contou ao i. Contudo, atualmente, o consultor informático de 26 anos, olha para trás e interroga essa sua decisão, embora o facto de ter de apanhar boleia lhe tenha valido o começo de algumas amizades.
Miguel Bernardo, de 24 anos, viu a sua coleção de plantas crescer. Passava na rua, via uma planta no lixo, e decidia dar-lhe outra “oportunidade de vida”. “Cheguei a ter uma centena de plantas”. Mas o fim do confinamento e a mudança recente de casa fizeram-no refletir sobre o espaço que estava a ser ocupado e agora, o engenheiro de profissão, tem-se desfeito de muitas delas.
Rui Cruz, de 38 anos, começou a ver a bricolage como um escape ao tempo morto, “como que uma terapia, e uma forma útil de manter-me ocupado, obtendo algum proveito dessa ocupação (com as peças resultantes) e realizando alguma atividade”. Depois do confinamento, tal como Miguel, o analista químico, viu-se obrigado a desfazer-se da maior parte delas.
A ALTERAÇÃO DOS HÁBITOS DE CONSUMO Os hábitos e prioridades de consumo dos portugueses mudaram muito desde o começo de março. Segundo os dados de empresas de análise de mercado como Kantar Worldpanel, Nielsen e GfK, que acompanharam as alterações nos hábitos de consumo dos portugueses durante estes dois anos, regra geral, com as restrições impostas e o “caos” instalado, as pessoas preferiram ir menos vezes ao supermercado, comprar mais online e levar mais coisas de cada vez: no topo da lista, as prioridades foram os produtos como o leite, a fruta fresca, os congelados e latas de conserva, mas também o chá e o café. De outra forma, a venda de telemóveis e livros caiu, apostando-se mais em produtos de desenho para os mais novos, máquinas de café e, principalmente, equipamentos de fazer exercício. No início da pandemia, a plataforma de comparação de preços portuguesa KuantoKusta já notava que as passadeiras estavam entre os novos produtos mais procurados pelos portugueses. Agora, é na plataforma de vendas online OLX que se observa as consequências dessas compras. Perde-se a conta aos anúncios de venda de passadeiras de corrida que vão desde os 55 euros, até aos três mil. “Bem conservada, utilizada muito poucas vezes e ainda com garantia”, lê-se na maior parte das informações adicionais dos produtos.
UMA COMPRA POR IMPULSO Fala-se portanto de “produtos de nicho”, onde também se enquadra o fenómeno das máquinas de fazer pão e outros equipamentos de cozinha, facto que coincidiu com uma maior procura por “doces e produtos para confeccionar doces” nos supermercados, tal como detetou a empresa de estudos de mercado Kantar Worldpanel, que justificou essas mudanças, na altura, como “um mecanismo de adaptação dos portugueses numa altura em que estiveram privados de momentos de lazer e de socialização no exterior”. De acordo com dados da analista Research and Markets tanto em Portugal como no estrangeiro, aumentou também a compra e venda de colchões de ioga, bicicletas e passadeiras estáticas e halteres.
Mas os consumidores não se ficaram por aí. Segundo um relatório recém-publicado, apelidado How We Live, que investigou mais de quatro mil britânicos adultos, nove em cada 10 compraram as chamadas “guloseimas” durante os dois confinamentos vividos. Dessas “guloseimas” fazem parte roupas, fritadeiras, mas também banheiras de hidromassagem e até mesmo casas. O resultado? Muito arrependimento. Aparentemente, 8% dos compradores disseram que essas “guloseimas” nunca foram usadas, outros 9% não as usam mais e 11% usam menos do que o esperado.
O jornal britânico, The Guardian, chama-lhe “remorso do comprador pandémico” e, num artigo publicado no dia 8 de novembro, lê-se uma conversa com um desses compradores que responde a uma série de perguntas sobre a sua compra: “Uma bicicleta ergométrica, coberta com roupas velhas, comprada há 20 meses e destinada a morrer sem ser montada”, afirma. O consumidor explica que, durante o confinamento, com o ginásio a fechar portas, sentiu a necessidade de fazer alguma coisa para não engordar. Contudo, desde que a comprou, em março de 2020, só a utilizou uma vez. De acordo com o mesmo estudo, as casas foram outra da grande aposta dos britânicos, “a tendência era que muitos moradores urbanos vendessem as suas propriedades e se mudassem para o campo porque o espaço extra lhes dava mais espaço para trabalhar em casa”.
Uma pesquisa da Aviva publicada em julho revelou que metade das pessoas que compraram uma casa desde março de 2020 se arrependeram do valor que pagaram por ela. Apenas um em cada oito que compraram antes do início de 2017 sentiu o mesmo. Além disso, as pessoas também apostaram nas banheiras de hidromassagem (um adulto em cada 20 dos entrevistados comprou uma). Segundo a investigação, mais de um terço dos que o fizeram arrependem-se da decisão.
TROCA DE MEIO DE TRANSPORTE Ao invés de se arrepender de ter comprado, Marcos Soares, interroga-se sobre a decisão impulsiva de negociação na venda do seu carro durante a pandemia. O seu peugeot 206, herdado da sua tia Ilda, já tinha 20 anos e, ultimamente, já estava a dar problemas recorrentes, “contudo tentei mantê-lo sempre funcional e deu sempre imenso jeito”, explicou ao i. Após perceber que este precisava de um motor novo e depois de ter começado o teletrabalho, o consultor informático, realizou que o carro “não era uma necessidade assim tão grande”: “Como já não era propriamente novo, optei por me desfazer dele por muito pouco em troca, sem pensar bem no futuro”, revelou.
Depois disso, comprou uma bicicleta por “seis vezes mais que o valor que aceitei pelo carro”. “Comprei uma bicicleta por várias razões: gosto imenso de andar de bicicleta; achei que não necessitaria de outro tipo de transporte tendo em conta o meu estilo de vida atual; pretendia fazer passeios/rotas com o meu irmão que era o único que tinha bicicleta em casa; precisava de fazer mais exercício físico e achei que seria um bom estímulo e ainda para ter uma pegada ecológica mais pequena”, sublinhou Marcos Soares que agora ou se desloca à boleia de alguns colegas de trabalho que se tornaram amigos, de trotinete ou Uber.
“Portanto, ter ficado sem carro, em certa parte contribuiu para que criasse amizades com alguns colegas de trabalho que noutras circunstâncias, seriam somente colegas”, frisou. O consultor informático acrescenta ainda que as utilizações da bicicleta foram reduzindo ao longo do tempo. Contudo, tem feito um esforço para a utilizar com mais frequência.
Interrogado sobre se se arrepende da venda do carro, Marcos esclarece que “não é bem arrependimento que sinto, é como se tivesse criado uma espécie de desafio para me deslocar por não ter a conveniência de ter carro”. “Acho que provavelmente faria na mesma a venda do carro, mas seria menos impulsivo na fase de negociação”, rematou.
O TEMPO ENTRE BRICOLAGES “O gosto por bricolage surge desde muito cedo, desde que tenho memória que gosto de trabalhos manuais, o que eventualmente acabou por ‘escalar’ para bricolage mais ‘séria’ com ferramentas, assim que a idade permitiu”, explicou Rui Cruz ao telefone com o i, admitindo ainda que “a pandemia e o confinamento vieram aumentar esse gosto, por razões inerentes”. Durante esse período, o analista químico passou a vê-la como um “escape”, como uma “terapia”, e uma forma útil de se manter ocupado, obtendo algum proveito dessa ocupação e realizando alguma atividade física, “ao invés de ficar resignado ao sofá e à TV ou computador”. Rui construi, principalmente, peças em madeira, “daquelas que atualmente são tendência na decoração de interiores, como por exemplo estantes suspensas por corda rústica e suportes para vasos com plantas”. Além disso, também recuperou e restaurou móveis antigos: “Era uma coisa que habitualmente já fazia! Mas curiosamente todos os que utilizei encontravam-se depositados junto ao contentor do lixo e foram-me trazidos por um amigo que pensou em mim para essa finalidade”, contou.
Interrogado sobre o número de peças que construiu ou restaurou, Rui Cruz não consegue dizer um número exato: “Fiz bastantes, não consigo precisar bem um número, mas principalmente suportes para vasos de plantas. Acabou por ser um ‘vício’ de complemento com outro que surgiu. Acabei por comprar também várias plantas para cuidar (o que não fazia até então) e depois fazia suportes para cada uma delas”, lembrou. Mas a casa começou a ficar demasiado cheia e o analista químico percebeu que não conseguia manter tudo. “Dispensei principalmente grande parte das plantas e dos seus suportes em madeira, porque a casa já estava demasiado cheia. Foi quase como se estivesse consumido por essa obsessão de fazer coisas, e de repente acordar e aperceber-me que já estava a ser demasiado”, admitiu.
Olhando para trás, apesar de não se arrepender e até admitir que se estivesse na mesma situação, à falta de outra ocupação, que retomaria esta, Rui pensa que foi uma ocupação “abusiva” e reflete também no dinheiro que despendeu. “As peças que dispensei foram para casa dos meus pais, estão todas em utilização, e já eram ‘cobiçadas’ pela minha mãe desde o momento que as fiz. Aliás, tive vários pedidos na altura, para fazer peças ou restaurar móveis para amigos, o que ainda aconteceu com pequenas coisinhas”, acrescentou.
UMA OBSESSÃO POR PLANTAS? Tal como Rui Cruz, Miguel Bernardo é um apaixonado por plantas… Há pouco tempo já colecionava mais de uma centena na sua pequena casa em Oeiras. Quando descobriu a sua paixão por plantas, o engenheiro de 24 anos, até meteu em hipótese seguir agronomia (o que não chegou a acontecer): “A minha família sempre teve uma ligação com plantas, seja a cultivar laranjeiras e outros frutos no Algarve, a encher o quintal com plantas ou ter o interior da casa recheado. Quando saí da casa dos meus pais, para a casa vazia dos meus avós, comecei a arranjar plantas. Sinto que foi uma forma de preencher a casa com a vida que a cidade lhe tinha retirado”, começou por explicar, acrescentado que o confinamento veio aumentar essa necessidade, “as plantas foram a forma de trazer a natureza novamente para perto de nós quando não podíamos estar perto dela”.
“Aos poucos fui adquirindo mais… Umas ia comprando, outras eram-me oferecidas, outras fui apanhando da rua, outras ia apanhando no lixo. Das 60 plantas que tenho de momento, a maioria foi mesmo apanhada ou na rua ou no lixo”, continuou Miguel Bernardo que revela que os seus colegas de casa o consideram “obcecado”, e os seus pais acham a sua “coleção engraçada roçando na obsessão”. “Para amigos meus que gostam de plantas não é nem obsessão nem exagero, apenas o normal”, afirmou.
O principal motivo pelo qual as adquire é a maneira como o fazem sentir “sereno e calmo”: “Dão bom ambiente aos sítios onde estão. Tratar delas dá-nos um sentido de propósito. Nem que seja para alimentar a nossa vontade narcisista de nos sentirmos importantes para a vida de alguém, neste caso, das nossas plantas!”, refere o engenheiro de profissão.
À medida que trazia mais e mais plantas para casa, Miguel Bernardo foi percebendo que “não estava a conseguir tomar conta delas suficientemente bem para estarem felizes e saudáveis”. Além disso, o jovem mudou de casa e não conseguiria levá-las todas consigo. “Dar alguma delas foi uma decisão difícil pois é sempre difícil libertarmo-nos de algo que nos é importante, mas é necessário conhecermos a nossa capacidade de afeto seja com as pessoas que nos rodeiam, seja com os animais de estimação ou com as plantas!”, elucidou, frisando que “deitar fora nunca foi uma opção”. “Muitos gostam de plantas mas não têm a possibilidade de arranjar devido aos aumentos dos preços ultimamente. Então, dar as plantas que não temos capacidade de cuidar torna-se uma democratização do acesso a um bem que muitos amam e que trás paz e calma às nossas vidas”.