Politicamente Correto. Uma forma de empatia ou a ‘nova censura do bem’?

Politicamente Correto. Uma forma de empatia ou a ‘nova censura do bem’?


Ao longo dos últimos meses temos assistido ao “cancelamento” de algumas personalidades aclamadas tanto no mundo da literatura, como no universo humorístico. Estaremos diante de uma forma de empatia, ou por outro lado, estaremos a assistir ao nascimento de uma nova censura? 


Imaginemos o “politicamente correto” como sendo uma estrada… Esta estrada já existia. Não estamos, portanto, a falar de algo novo. A diferença é que, agora, ao que parece, existe de “outra forma”  que fez “nascer” aquilo a que chamamos de “cancel culture”. Alguns já haviam visto o seu fim, acenando para os de cá como se de um abismo se tratasse, como é o caso do humorista Rui Sinel de Cordes; outros deambulam com a crença que será apenas nessa estrada e no seu fim, que se encontrará a empatia, compaixão, respeito e “evolução benéfica da humanidade”, tal como defende Pedro Carreira, membro da Associação ILGA. 

Estarão as pessoas a percorrer estradas diferentes? Percorrerão essa estrada de formas diferentes mas com a vontade de encontrar o mesmo fim? Ou, essa mesma estrada, está a distanciar-nos uns dos outros sem que nos demos conta? O que é isto do “politicamente correto”? Uma busca constante pelo respeito e empatia, ou o nascimento de uma nova censura? Há quem acredite que, pelo andar da carruagem, a humanidade se encontra a meio dessa estrada, rumo ao abismo, como se esta fosse afogar “o pouco de sensatez” que ainda resta no mundo. Estátuas têm sido queimadas e livros “apagados”, o “valor e importância” da história tem sido interrogado, músicas canceladas, humoristas, escritores e professores afastados. Perguntamo-nos, hoje, quem é o autor desta obra? O que poderia dizer sobre esta temática? Como deveria ele escrever esta história? Além disso, há também aqueles que reivindicam a adoção dos substantivos de género neutro.

Os mais recentes casos levam-nos até ao ataque direcionado ao humorista David Chapelle, pelas suas piadas sobre transexuais, mas também brancos, negros, mulheres e judeus; à escritora Margaret Atwood, por partilhar um artigo a “criticar a neutralidade de género”, interrogando o porquê de “já não se poder utilizar a palavra mulher”; à cabeça por trás de uma das sagas mais conhecidas e adoradas no mundo, J.K Rowling, acusada de transfobia desde o final de 2019, quando defendeu no Twitter conceitos relacionados ao sexo biológico, “opondo-se” à transexualidade; ou mesmo à jornalista Clara Ferreira Alves, habitual comentadora do programa Eixo do Mal da SIC Notícias, que afirmou “não saber muito bem aquilo que é a comunidade transexual” tendo causado muito alarido entre os utlizadores do Twitter que apontaram as suas palavras como um “nojo” e uma “alarvidade”.
  
O “Politicamente Correto” e os seus perigos Segundo um dos psicanalistas brasileiros mais abordados para falar sobre a questão do “politicamente correto” e também mestre em filosofia, Pedro de Santi, não existe nada de errado com o conceito, já que este, nos diz que “como humanidade e convivendo na polis, devemos de encontrar uma forma de convivência que seja correta, respeitosa e justa”. “Cada um renuncia a sua individualidade, mas constrói-se uma condição de convívio, de bom convívio. Portanto a expressão em si só é linda e é muito bem vinda”, defende o especialista nos seus discursos. Contudo, acredita que “temos transformado o politicamente correto numa coisa bastante diferente, uma coisa de um grande policiamento mútuo sobre a expressão do outro”. E aquilo que deveria ser uma alavanca para colocarmos uns sapatos que não os nossos, colocando empatia no possível sofrimento da outra pessoa, no cuidado de não ser ofensivo, é irrealizável, pois “nós não temos controlo sobre a receção da nossa comunicação”. “A comunicação vai ser lida por alguém e a receção pode ser diferente daquilo que eu esperava”, explica o psicólogo, acrescentando que parece que esse zelo com a palavra, “tira da linguagem alguma coisa que é da sua natureza – a polissémica”. “As palavras não são coisas, as palavras remetem a coisas. Quando começo a policiá-las eu passo a tomá-las como coisas atribuindo-lhe um sentido intrínseco. Se eu pensasse com rigor em cada palavra, o uso da linguagem seria impossível”, defende. 

Para Pedro Santi, o risco do politicamente correto é que ao invés de pensar no polis, na convivência, cria, pelo contrário, “universos feudais, fechados”. “Um não comunica com o outro, porque a existência e a expressão de um pode ser ofensiva ao outro e isso não leva ao convívio na polis, leva a um mega feudalismo de cada entidade: de raça, de cor, de etnia, do que quer que seja”. 

A NECESSIDADE DO POLITICAMENTE CORRETO Mas há quem não concorde com a premissa do psicanalista. Pedro Carreira, membro da Direção da Associação ILGA – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo, afirma ao i que a associação entende o chamado “politicamente correto” como “uma acusação que alimenta discursos de ódio que oprimem e discriminam grupos, geralmente minoritários, da sociedade”. “Não é por acaso que este é um tipo de argumento usado repetidamente pelo status quo, ou seja, pelas camadas mais privilegiadas da sociedade”, explica. Para si, a liberdade de expressão é “um dos pilares democráticos, tal como é o respeito entre e pelas pessoas, pelo que perpetuar insultos ou expressões preconceituosas enfraquece a sociedade no seu todo”.

Para o membro da direção, a ideia pejorativa de que vivemos numa era do “politicamente correto” pretende condicionar essa visão de questionamento da sociedade, dos seus padrões e preconceitos. “É dizer que o ódio é para manter. É dizer que o preconceito tem validação política, social e também cultural. Artistas que mais quebraram barreiras foram aqueles e aquelas que mais questionaram o porquê das coisas serem como são. Por que permanece a misoginia? Por que permanece o racismo, a homofobia, a transfobia? Por que é tão importante a manutenção desses discursos para algumas pessoas ao ponto delas mesmas acusarem quem não se revê nas suas argumentações de se subjugarem a um pseudo “politicamente correto?”. A palavra – e todo o seu simbolismo – importa e é preciso reconhecê-lo para uma evolução benéfica da Humanidade”, defende Pedro Carreira. 

Um reescrever da história ou o outro lado dela? É irrefutável que não estamos perante um fenómeno novo e a história comprova isso. Desde sempre que assistimos à diversidade de opiniões, ideologias, formas de expressão e maneiras de viver. Também, desde que existimos, lidamos com essas contrariedades de formas diferentes. Falávamos de mortes em praça pública, de torturas, desaparecimentos e assassinatos. Agora, ao que parece, é nas redes sociais que as consequências se revelam, sendo cada vez mais aqueles “acusados” por irem contra o fenómeno do “politicamente correto”. “Aquilo que está a ser instituído são formas de controlo do pensamento”, afirma ao i a jornalista e comentadora Helena Matos. “Não era suposto ou nós, com uma grande ingenuidade, achávamos que isto não ia acontecer… Mas a verdade é que está a acontecer! E o que é surpreendente, não é que alguns achem que o podem fazer, o que é surpreendente é ver como o conseguem fazer”, frisa. “Como é que é possível atores, humoristas, escritoras, empresas (tudo aquilo que nós achamos que é parte dinâmica de uma sociedade), acabarem por ter medo de perder trabalho, perder clientes, temer pela sua própria segurança, esconderem as suas próprias opiniões e calarem-nas, achando que, talvez mais tarde, como foi o caso dos Rolling Stones, por exemplo, possam voltar a cantar determinadas canções?”, interroga, sublinhando: “Nós encontramos pessoas a rever livros! Autores a reverem livros para não ofender, pessoas a fazerem uma espécie de autocrítica que faz lembrar a revolução chinesa! Não me surpreende nada que alguns achem que devem tentar controlar o pensamento e a expressão do outro, o que me surpreende é ver como os outros se deixam controlar”, admite a comentadora. 

Por sua vez, Inês Pedrosa considera que “a falta de preocupação com mais de metade da Humanidade, que se verificou na escrita da História e no pensamento filosófico desde o início da civilização um desastre de ocultação, enviesamento ideológico e censura de proporções gigantescas, que só agora começamos a destrinçar”. “’Higienizada’, branqueada ou pura e simplesmente rasurada foi a História das mulheres, dos povos africanos e dos povos nativos de todos os países colonizados pelo Ocidente – porque foi esse Ocidente colonizador, patriarcal e esclavagista que escreveu ‘a História’, como se essa História fosse a única e incontestável”, declarou a escritora ao i. “Estamos na Pré-História de uma Arte verdadeiramente livre, insubmissa e aberta ao mundo”, acrescentou. 

Inês Pedrosa acredita que a discriminação social, económica, sexual, racial, política e linguística “é uma realidade que permanece e tem até vindo a agudizar-se nas últimas décadas”. Por isso, defende a também jornalista, que o chamado “politicamente correto” visa exatamente “corrigir essas múltiplas discriminações, a começar pela mais fácil de corrigir, e que está ao alcance de todos nós, que é a da linguagem”.  “Parece-me que os seres que mandam Joacine Katar-Moreira para ‘a sua terra’ ou a formadora de seguranças do aeroporto que diz a uma jovem formanda que os macacos são primos dela, como aconteceu há semanas, estão a distanciar-se, e gravemente, dos princípios básicos da decência humana”, lamenta, sublinhando que o que tem verificado é que “os que bradam contra a linguagem inclusiva acusando-a de cercear a liberdade são os primeiros a ficarem apopléticos quando um activista de direitos humanos diz que é preciso matar o Homem Branco – afirmação tão simbólica quanto a de Freud quando disse que temos de matar o Pai. Ou seja, verifico que os arautos do politicamente incorreto e da liberdade de insultar outrem não se mostram nada liberais  quando a liberdade da linguagem os atinge a eles”, explica a escritora. 

A língua inclusiva e neutra Interrogado sobre a o surgimento da “nova linguística”, apelidada de “língua inclusiva” onde se começam a usar pronomes neutros e onde se inventam palavras, Pedro Carreira alerta para o facto da linguagem ser “uma ferramenta de comunicação que deverá espelhar o melhor possível o mundo em que vivemos, as nossas próprias intenções e, com a evolução social é normal que a própria linguagem espelhe essa mudança”. O membro da direção da ILGA, dá o exemplo do surgimento de palavras como “internet”,”mail” e “infodemia”: “Palavras que outrora não pertenciam ao nosso léxico… No entanto, são hoje amplamente usadas no nosso quotidiano”, afirma, acrescentando que, “de igual forma, a linguagem neutra começa a entrar em uso na sociedade portuguesa e, inclusive, é aconselhada a nível da Administração Pública através do Guia para uma Linguagem Promotora da Igualdade entre Mulheres e Homens na Administração Pública”. 

Nesta “nova forma de linguística”, o que acontece é que se dá preferência a palavras que representam a coletividade, por exemplo usar “a juventude” ao invés de “os jovens”, “pessoas beneficiárias” ao invés de “beneficiários”, “diretoria” ao invés de “os diretores”; escolhe-se substantivos que representam instituições ao invés de indivíduos, por exemplo, “classe política” ao invés de “os políticos”, “população indígena” ao invés de “os índios”, “poder judiciário” ao invés de “os juízes”; reformula-se tempos verbais “para que as frases sejam mais inclusivas e menos sexistas”. Por outro lado, já se começam a substituir os pronomes, utilizar os símbolos “@” ou “x” no lugar dos “marcadores de género” identificados por “o” ou “a”. Também se começou a colocar o sufixo “-e” ao invés de “-o” ou “-a”, já que o “e” abrange maior diversidade.
Pessoalmente e especificamente sobre pessoas não-binárias, Pedro Carreira admite não ser um grande fã do uso de “@” e “x”, “por uma questão de inclusão de pessoas com dificuldades de leitura/visão ou de audição, dado que é questionável esse esforço de mudança se depois vamos excluir outro grupo de pessoas”. Contudo, afirma que usar o termo “pessoa” traz algumas vantagens fáceis e imediatas: “Além de contrariar o plural como masculino neutro da nossa língua, explicita que estamos a falar de uma pessoa onde o seu género é desconhecido, irrelevante ou não-binário e a partir daí é manter a coerência linguística do nosso discurso tal como aprendemos nos ensinos primário e secundário”, elucida o membro da associação.

E Inês Pedrosa “celebra-o”: “Celebro tudo o que amplie as fronteiras das línguas. Há línguas mais inclusivas do que outras – onde o inglês diz ‘all’, nós temos de dizer todos e todas. Há anos que, em conferências perante plateias maioritariamente femininas, digo ‘boa tarde a todas’, e diverte-me ver como em geral os homens se mexem nas cadeiras, incomodados. De onde lhes vem o incómodo? Do facto de terem sido educados a pensar que o masculino é a norma e o feminino a exceção, a fraqueza, o inferior. Acabar com estes preconceitos tornar-nos-á mais felizes, a todas e a todos”, revela a escritora. 

Já Helena Matos, apesar de reconhecer que a língua que falamos se altera com o passar do tempo, acredita que esta se altera “precisamente com o passar do tempo e pelo facto de ser falada”, considerando que “o que nós temos aqui, é o processo de tentativa de controlo do pensamento a partir de uma forma que é criar códigos”: “Sabe-se que a língua de alguma forma reflete a forma como uma sociedade existe num determinado momento, com os seus diferentes grupos e aquilo que nós temos aqui quando nos tentam impor determinados códigos, é a imposição de uma forma de ver o mundo e de o transmitirmos aos nossos filhos… Isto já foi feito durante a Revolução Francesa, em que foram abolidas formas de tratamento, foram criadas novas formas das pessoas se dirigirem umas às outras, procurou-se, na altura, erradicar qualquer referência religiosa da linguagem”, nota Helena Matos, frisando que “a nossa linguagem está cheia de referências que provém da matriz judaico-cristã que tempos”. Esse processo levou, durante o período atribulado da Revolução, à mudança do calendário “porque todo o nosso calendário está cheio de referências que também estão relacionadas com uma matriz religiosa”, continua. “No que é que resultou? Numa completa desorganização da sociedade a tal ponto que, quando vão ver as listas do guilhotinados há um número muito significativo de camponeses… Para fazer as sementeiras não se conseguia fazer pelo novo calendário, não se vai semear batatas sem saber em que mês é que se esta, não é?”.  

Na sua óptica, a questão religiosa foi substituída pela questão dos géneros: “É o reino do absurdo, onde se acha que o neutro tem alguma pureza que nos permite designar sem mácula a identificação do ser”, defende Helena Matos, acrescentando que “esta loucura do neutro, esta ideia das palavras acabadas em x (gramaticalmente um erro terrível), não faz qualquer sentido”. “E não creio que se possa aceitar, eu pelo menos, não conto aceitar nem adaptar-me a falar desse modo”, afirmou.

A polémica em torno de Margaret Atwood No que concerne à polémica em torno de Margaret Atwood e J.K Rowling, as duas recentes escritoras a serem atacadas pelas suas posições relativas à neutralidade de género e à transexualidade, Inês Pedrosa apelida-o de “bullying”, “porque é exactamente disso que se trata, de um inaceitável assédio, muitas vezes acompanhado por ameaças”: “O ataque à Margaret Atwood, uma notável escritora de 83 anos cuja vastíssima obra se tem focado em dar voz aos excluídos e marginalizados da sociedade, e apontado as variadas e insidiosas discriminações que ela produz, mostra que algo de muito errado se passa”, alerta. Além de J. K. Rowling e Margaret Atwood, outras escritoras têm sido alvo desses ataques, como a nigeriana Chimamanda Ngozi Adiche e mesmo Inês Pedrosa. Porquê? “Porque perguntamos porque é que a palavra ‘mulher’ está a ser substituída pela expressão ‘pessoa que menstrua’ ou ‘pessoa que engravida’. Curiosamente, a palavra ‘homem’ nunca é simetricamente substituída pela expressão ‘pessoa com pénis’ ou ‘pessoa que não engravida’”. Para si, “parece evidente que esta ‘reformulação’ não vem do espírito inclusivo do politicamente correto mas da ‘novilíngua’ orwelliana feita para rasurar e aterrorizar”.

“Lamento que muitos homossexuais e transexuais se aliem a este ataque concertado que visa abafar a força que o movimento feminista voltou a ter nos últimos anos. Atacar, insultar, difamar, ameaçar e procurar cancelar feministas como Atwood e Chimamanda, que lutaram e lutam pelos direitos das mulheres e de todas as chamadas minorias, é um erro – e uma grande ingratidão. Entristece-me pessoalmente, porque lutei estrenuamente, através da escrita e de um ativismo empenhado, pelos direitos de homossexuais e transexuais, quando éramos muito poucos a fazê-lo, e essa causa não tinha a boa imprensa que felizmente acabou por ter, antes pelo contrário”, revela a escritora. 

Cancel Culture no Humor Mas o “problema” não reside apenas nas questões literárias ou de linguística. Fala-se de liberdade de expressão, de censura e da, agora chamada, “cancel culture”, em todas as ramificações da arte, neste caso, no humor. O caso mais gritante tem sido o ataque contra o humorista David Chapelle depois do lançamento na Netflix do espetáculo de stand up The Closer, de Dave Chappelle.  Repleto de piadas sobre transexuais, mas também sobre brancos, negros, mulheres e judeus, o “especial” causou uma demissão e pelo menos três suspensões de funcionários da Netflix nos EUA que se mostraram furiosos e indignados com o lançamento. 

E pode-se dizer que David Chapelle está para os EUA, como Rui Sinel de Cordes está para Portugal. Considerado o “rei do humor negro” no nosso país, o humorista desde 2014 que fala em “cancel culture”, já colecionando uma série de processos judiciais depois de pessoas o acusarem de incitação de ódio. “As pessoas não devem confundir o meu caráter com o meu humor”, afirma o humorista ao i, estando neste momento a presentar com um espetáculo de stand up, precisamente focado em questões como o Cancel Culture, o Feminismo Radical, as Políticas de Identidade ou a cultura de vítima que “nos empurram para a necessidade de voltarmos a reafirmar os nossos direitos como a Liberdade de Expressão, Liberdade de pensamento e de opinião”, lê-se na sinopse. 

“A liberdade como conceito geral está em queda de valor e com ela cai também o valor da verdade. Para isto contribuem os efeitos nocivos do mundo académico, onde a pós-modernidade substituiu a razão, a anti-ciência o pensamento crítico e os sentimentos tomaram o lugar da meritocracia. E as artes, que vivem tempos de ataque ideológico com livros, filmes, músicas e pessoas a serem apagadas. Numa sociedade moderna que testemunha uma guerra civil psicológica de homens contra mulheres, da direita contra a esquerda, gays contra heteros, trans contra terfs,  vacinados contra não-vacinados… A única solução para mim é juntar pessoas numa sala que concordem todas em relação a uma coisa: é possível rir disto tudo”, escreveu o artista para apresentar o espetáculo.

Ao i, Rui Sinel de Cordes ressalta  que “tanto esta cena da censura como o conceito de politicamente correto não são nada de novo”. Segundo o humorista, o que é novo é este “fenómeno assente nos julgamentos sumários que habitam nas redes sociais e fazem com que pessoas percam o emprego, uma carreira de anos”. E, do seu ponto de vista, as principais responsáveis foram precisamente as redes sociais e a falta “de coragem”. “Vivemos numa época onde há muita falta de coragem, as pessoas com poder têm muito pouca noção daquilo que é o senso comum, as pessoas começam a perder a noção do seu próprio senso comum, porque há muita gente que não o tem”, defende, lamentando os despedimentos de “prémios Nobel, a perda de trabalhos de investigação de anos, do afastamento de professores universitários: “Calcula-se que nos últimos cinco anos, houve mais afastamento de docentes nos EUA do que nos últimos 50 e, normalmente, é por questões ligadas com a falta de liberdade de expressão, cancelamento de ideias com as quais não concordamos, ou não compreendemos”, conta o humorista.  

“Isto que aconteceu nas últimas semanas com o David Chapelle, acho que foi uma ótima coisa para todas aquelas pessoas que dizem que o cancel culture não existe, que é uma invenção, que não é assim tão grave… Em termos de arte, acho que foi um bom exemplo de uma tentativa de censura de um espetáculo”, revela. 
Interrogado sobre se o tem sentido na pele nos últimos anos, Rui Sinel de Cordes admite que não é censurado há anos e que “nunca se sentiu influenciado por isso do ponto de vista prático”. “Agora, adaptei a minha maneira de trabalhar, deixei de fazer piadas online porque estava cansado de receber ameaças de morte. Faço-as nos meus espetáculos, onde as pessoas as compreendem e onde nos rimos juntos”, explicou o artista. 
Por sentir “uma liberdade inacreditável”, o humorista sente “uma necessidade de falar das coisas: a maior parte das pessoas trabalha para marcas, para instituições, para empresas, então toda a gente está nessa situação. Sabe que a sua vida pode acabar a qualquer momento. Eu como não passo por isso, tenho um bocado o dever de falar e de alertar para o que vejo, que é grave. Porque apesar de não me tomar diretamente a mim eu vejo exemplos diários que sinto que são comigo”, ressalta. 

Também o humorista mais conhecido por Tio Jel, defende que as redes sociais tiveram um papel preponderante para o “tirar a capa” ao problema do politicamente correto e da “cancel culture”. “Não há muitos anos, nem toda a gente tinha a oportunidade de ter a sua opinião difundida… Só um jornalista, um artista, um desportista, um político. Atualmente isso mudou e qualquer pessoa que tenha uma conta no Twitter ou no Instagram, pode, muito bem, com a sua opinião chegar a milhares de pessoas. Isso dá a impressão que fenómenos antigos parecem novos pela quantidade de reação que temos hoje”, explica ao i. 

Contudo, o artista não acredita que estejamos diante um caso de censura: “Eu acho que nunca houve tanta liberdade de expressão como hoje, pela hipótese que qualquer pessoa tem de falar… Lembro-me de que quando comecei a minha carreira, ou estava na televisão, ou não estava em lado nenhum. Lembro-me de ter feito vários sketches que me deram problemas, até em tribunais”, relembra, acrescentando que “hoje em dia isso já não é preciso, já que qualquer miúdo com um telemóvel pode tornar-se comediante e fazer o tipo de humor que quiser”. “Portanto, essa bandeira da censura, vejo-a mais como marketing para chamar a atenção sobre si próprios, do género: ‘Estão a tentar calar-me. Venham ver-me e pagar bilhete, antes que me cancelem!’”, defende. 

Para si, o “politicamente correto” sempre influenciou a maneira de se fazer humor, já que “abre um mercado”: “Porque o politicamente incorreto é um mercado e não nos podemos esquecer disso! Vê-se muita gente a vitimizar-se de que não as deixam falar e isso é uma atitude de marketing, porque ninguém impede ninguém de falar, sobretudo, na comédia”, apontou. Segundo o humorista, o que acontece é que surge uma “contracorrente de pessoas que querem controlar aquilo que acham que se deve ou não dizer”. “Mas isso também sempre existiu”, afirma. “O que vemos é que com as tecnologias de informação, há uma industrialização da opinião”.

Por sua vez, Rui Sinel de Cordes, admite que o problema não está em se ser “politicamente correto”, apesar de não gostar da expressão: “O problema está precisamente nessa exigência… Esse esperarmos que toda a gente pense da mesma maneira é que está a enterrar as coisas”, defende. 

Além disso, conta que nos últimos anos tem recebido e falado com imensas pessoas que têm todo o tipo de deficiências, físicos, psicológicos e emocionais, que lhe dizem “refugiar-se no humor”. “Como há muito tempo que faço humor com essas pessoas, fui falar com elas e nunca pensei que gostassem… A verdade é que alguns sim! Por isso, fica difícil para mim estar a alinhar num discurso em que devemos fazer piadas mais assim ou assado, quando tenho pessoas com as quais faço piadas que querem ouvir mais”, sublinha.

“O humor não nos afasta, o humor eleva-nos e só nos aproxima. E as pessoas não devem confundir o meu caráter com o meu humor. Sou o primeiro a defender as minorias, isso não significa que não possa fazer piadas com elas. A liberdade é isso mesmo. Se começarmos a cancelar pessoas, onde é que vai estar a discussão crítica, como é que vamos perceber os vários pontos de vista existentes? Como é que vamos evoluir enquanto sociedade?”, remata o humorista.