Com serviços de urgências a dar sinais de rutura e outros já a sentir uma procura crescente de doentes ainda antes da chegada do outono a sério e com a covid-19 mais controlada do que há um ano, Nelson Pereira, diretor da Unidade Autónoma de Gestão de Urgência e Medicina Intensiva do Centro Hospitalar de São João, que durante a pandemia se tornou um dos rostos conhecidos das equipas na linha frente, fala das reformas que ficaram por fazer nesta área, nesta legislatura como nas anteriores. Veredicto: “Oportunidade perdida”. Defende que as idas às urgências deviam ser “só por convite”, ou seja, com os doentes encaminhados ou pelo INEM, ou pelo SNS24 ou pelos centros de saúde, com critérios que falta definir. E critica a proposta da Ordem dos Médicos, em discussão pública, para definir equipas médicas mínimas nos serviços de urgência, enquanto mudanças como a criação de uma especialidade de medicina de urgência têm tardado. “A sua aprovação nos termos propostos significaria uma provável entrada em incumprimento de virtualmente todos os serviços de urgência e urgência interna”, antevê, considerando que só injetar mais recursos no SNS não vai resolver os seus problemas de organização, que todos os invernos se agudizam, transformam os profissionais em “baratas tontas” e prejudicam a resposta aos doentes. Não tem melhores perspetivas para este.
Há um ano estávamos prestes a entrar em estado de emergência pela segunda vez, com o Norte de novo mais atingido pela segunda vaga de covid-19. Assustou-o mais na altura perceber o que vinha pela frente ou agora este inverno, em que no meio da incerteza e alertas para uma época de gripe grave, as urgências já estão cheias?
São dois momentos completamente diferentes. Há um ano, no fim de outubro já estávamos a perceber o que vinha aí. Tinha sido claro para nós na primeira vaga que viria uma segunda, não sabíamos quando, obviamente, nem com que características. E aí houve um trabalho muito sério de preparação da parte do hospital para conceber um plano de contingência que nos permitisse olhar para essa segunda vaga com alguma tranquilidade, que não tinha existido na primeira. De facto, no Norte, e no São João em particular, essa segunda vaga que estávamos a viver há um ano foi o período mais exigente, com o maior número de doentes internados. Chegámos a ter 52 doentes com covid-19 internados, a nossa unidade de cuidados intensivos teve de aumentar 146% em relação à dimensão base e isso implicou um exercício muito intenso de coordenação, sobretudo porque quisemos – e conseguimos – que mesmo perante uma vaga exigente não voltássemos a impactar da mesma forma a atividade programada. Conseguimos ultrapassar essa fase sem voltar a pôr em causa a resposta aos doentes não covid, que foi o propósito primeiro a partir do momento em que respirámos no fundo no final da primeira vaga. Hoje a situação é de facto claramente diferente.
Melhor?
Melhor do ponto de vista da covid-19, sem dúvida. A taxa de cobertura vacinal, com todas as dúvidas que ainda temos relativamente à durabilidade da proteção, a um menor grau de proteção que existe nos mais idosos e que estão agora a receber a terceira dose, dá-nos um maior conforto.
Mas já se sente essa menor proteção dos idosos vacinados nos casos de covid-19 que chegam ao hospital?
Sim, embora não se traduzindo em números preocupantes. Temos vários doentes, sobretudo mais idosos, que são infetados, mas neste momento temos números muito mais baixos de novos diagnósticos e internamentos por dia. Como é mais ou menos inevitável com a esmagadora da maioria da população vacinada, neste momento muitos dos nossos doentes de novo são pessoas vacinadas mas os números são baixos, não são preocupantes. Sabemos que a nível nacional a situação está a inverter mas não temos informação detalhada e desagregada que nos permita fazer uma leitura global. Aqui, pelo menos do lado da covid-19, a situação é relativamente calma. O que nos tira o sono neste momento é o que já nos tirava o sono antes da pandemia. Os serviços de urgência foram sempre um problema do Serviço Nacional de Saúde. Não é de agora, todos os invernos, não porque haja muito mais doentes mas porque a gravidade dos casos que recebemos é maior, se percebe que existe um problema nas urgências. Basta pesquisar por notícias antigas…
Para reviver invernos caóticos.
Sim e por isso neste momento a grande preocupação é voltarmos a essa normalidade.
A essa normalidade ou um cenário agravado por menor assistência aos outros doentes nestes quase dois anos? Tem alertado para a questão das falsas urgências, mas em Lisboa o relato que nos tem chegado dos hospitais é que as urgências estão cheias com doentes mais graves, mais descompensados do que era habitual.
Aqui não notamos isso. A percentagem de doentes graves não modificou de forma significativa. Notamos é um voltar de hábitos antigos e um agravar dessa situação. Em junho ultrapassámos os números de 2019 de acessos às urgências e neste momento já estamos com mais 6% de vindas às urgências do que aquilo que era a procura média em outubro de 2019 – e é preciso perceber que esse já tinha sido o ano com maior procura aos serviços de urgência dos últimos 18 anos, que é o período em que temos dados de forma consistente.
Não tendo sido um outono/inverno especialmente severo em termos de gripe.
Não foi dramático, o ano anterior tinha sido pior. O que é verdade é que este contínuo recurso desregulado e disfuncional aos serviços de urgência é uma realidade com que o SNS se confronta há muitos anos. Do ponto de vista da opinião publica, há momentos de maior consciência disso, quando vemos filas de ambulâncias no hospital x ou se percebe que a urgência do hospital y fechou, o que é um bocadinho incompreensível, mas é um problema crónico.
Diz que é incompreensível o fecho de uma urgência a doentes encaminhados pelo INEM e bombeiros, o que tem sido cíclico na região Lisboa. Aí no Norte os hospitais nunca têm de fechar urgência?
Aqui não sei se me deixariam, porque há dias em que de facto dá vontade…
Os hospitais de fim de linha não o fazem, vemos o mesmo no Santa Maria em Lisboa.
A legislação é igual para todos, não sei onde estará a diferença.
Mas falando-se muito de resposta em rede, está a dizer que existe, sendo simplista, algum egoísmo, ou falta da concretização dessa resposta em rede, por exemplo distribuindo o esforço entre os hospitais antes de chegarem ao ponto em que têm de fechar?
Há sobretudo desregulação. É preciso dizer isto: a rede de urgência funciona mal. Não é porque as pessoas que lá trabalham sejam maus profissionais, é porque, do ponto de vista da estruturação e da regulação, não funciona bem desde há muito tempo. É evidente que é mais fácil um hospital pequeno dizer ‘eu já entrei em rutura, agora arranjem-se”. Caía o Carmo e a Trindade se o Hospital de Santa Maria ou o Hospital de São João fizessem isso. Isto não quer dizer que o conceito de funcionamento em rede não seja bondoso, mas como até durante a pandemia tive muitas vezes a oportunidade de dizer, o conceito de rede no SNS só é bondoso e só faz sentido se estivermos apoiados numa estrutura bem montada e em que todos os parceiros são completamente solidários e partilham o mesmo nível de esforço relativamente aos problemas com que se deparam.
E isso não acontece?
Se na lógica de rede digo “agora já não pode ser comigo” e depois temos instituições que, aconteça o que acontecer, têm de redobrar o esforço, arranjar as pessoas, inventar soluções, é evidente que temos uma rede disfuncional porque alguém se encavalita, passe a expressão, no outro. Mas dito isto, o grande problema da urgência em Portugal é um problema de bases, de desregulação de acesso, de educação das pessoas e dos profissionais e de falta de decisão sobre os caminhos que devem ser trilhados, cuja necessidade é conhecida há quase duas décadas e que infelizmente nunca houve coragem política para levar a cabo.
Que caminhos defende?
Basicamente é preciso trabalhar em duas ou três frentes, desde logo a qualificação dos profissionais que trabalham nas urgências. A maior parte dos doentes em serviços de urgência na esmagadora maioria, para não dizer na totalidade, dos hospitais em Portugal é observado pelos chamados tarefeiros. Haverá certamente muitos com muita qualidade, mas são médicos com diferentes backgrounds, sem formação específica, sem subordinação hierárquica porque não estão integrados nos serviços.
Não são muitas vezes médicos de outros hospitais até do SNS que vão fazer umas horas na urgência de outra unidade, onde recebem mais do que se fizessem horas extra no seu hospital?
São médicos de diferentes origens, médicos de outros hospitais, são médicos que só trabalham neste regime e são até médicos sem especialidade nenhuma. Temos em Portugal um arquétipo organizacional em que diz que todas as tarefas, para serem executadas enquanto atos clínicos, os médicos têm de ser titulares de uma especialidade. Não existe enquadramento para tratar doentes sem uma especialidade, exceto nos serviços de urgência, em que pessoas sem especialidade podem e trabalham assim. Se pensarmos que é nos serviços de urgência que nos aparecem os casos mais complexos, quando as pessoas estão em risco de vida, têm situações clínicas graves, como podemos perceber que se aceite este sistema?
Isso faz com que os casos demorem mais tempo a ser vistos, é preciso depois ir buscar um médico especialista, como acontece quando as escalas têm internos?
Faz com que tudo funcione mal. Faz com que a qualidade seja inferior, faz com que estejamos a aceitar isto enquanto sociedade em casos urgentes, que não aceitaríamos noutras áreas. Imagine o que seria se achássemos que para operar um tumor cerebral poderia ser um neurocirurgião às vezes mas se não houvesse podia ser um tarefeiro de outra especialidade qualquer ou sem especialidade… Ou que para fazer uma endoscopia, devia ser um gastroenterologista mas, não havendo, podia ser um jeitoso de outra formação. Do lado da medicina de urgência, é isto que acontece. Temos um problema sério que é inexistência em Portugal do reconhecimento da especialidade de Medicina de Urgência e Emergência.
É algo por que se têm estado a bater de novo agora na Sociedade Portuguesa Medicina de Urgência e Emergência.
Tentamos mas já lá vão 20 anos de tentativa. Até domingo está a decorrer em Lisboa o Congresso Europeu da Sociedade Europeia de Medicina de Emergência. Estamos a falar de uma especialidade com décadas de existência em muitos países e que só quatro países da Europa não têm.
Nós e mais quem?
Espanha, Chipre e Holanda.
Qual tem sido o bloqueio?
O bloqueio é político e corporativo, há sempre interesses.
A Medicina Interna não quer perder esse pelouro?
Do lado do corporativismo, sem dúvida, a Medicina Interna é claramente o colégio de especialidade que mais tem obstaculizado.
É médico de Medicina Interna.
Sou e defendo veementemente quer uma coisa quer outra, a especialidade de Medicina de Urgência e que a Medicina Interna encontre o seu verdadeiro espaço no doente agudo hospitalizado e não propriamente no doente do serviço de urgência.
Discute-se por exemplo as consultas abertas de Medicina Interna para escoar doentes da urgência.
E há hospitais que as têm, sim. Há espaço para todos. Do lado político, não falo de questões político-partidárias mas de políticas de saúde. Nunca houve visão técnica para perceber que isto mudaria o jogo, que a existência de uma especialidade e de um internato organizado que levasse à formação todos os anos de pessoas que se dedicam a esta função levaria de forma gradual a um aumento da qualidade de resposta e a melhores indicadores. Isto são coisas que levam anos, mas foi o que aconteceu quando alguns internistas se diferenciaram para ser cardiologistas. A especialidade de Cardiologia não existiu sempre. A Medicina Intensiva, enquanto especialidade com internato, tem agora cinco anos. Do ponto de vista da qualificação dos profissionais, a existência de uma especialidade é fundamental e rezo para que um dia um ministro da Saúde seja capaz de dar esse passo.
Como vê a proposta de dotações mínimas para as equipas de médicos nas urgências que a Ordem dos Médicos colocou em discussão pública, rácios que alguns médicos e administradores consideram impraticáveis? São necessárias?
O documento em discussão pública na Ordem dos Médicos é a soma aritmética, não articulada, das visões individuais dos colégios das várias especialidade e não responde a uma visão reformista da estruturação da rede de urgência e dos serviços de urgência em si mesmo. Em muitos aspetos é impraticável por exigir recursos que são inverosímeis. A sua aprovação nos termos propostos significaria uma provável entrada em incumprimento de virtualmente todos os serviços de urgência e urgência interna.
Indo então aos problemas que elencava, além da qualificação?
Temos de ir a uma questão central que é a regulação do acesso. O nosso problema é que nunca definimos regras para ir ao serviço de urgência. Definimos regras para tudo e mais alguma coisa e para ir ao serviço de urgência nenhuma, portanto quem é que pode ir ao serviço de urgência? Toda a gente. Em que circunstâncias? Em qualquer circunstância. Basicamente quando me perguntam porque é determinada pessoa vai à urgência, a resposta é “porque pode”.
Que situações entopem mais os serviços, não tendo gravidade?
Todo os dias [no S. João] temos 150 a 200 doentes que vêm ao serviço de urgência porque andam há dois meses com uma dor no joelho, porque têm o nariz entupido, porque está a cair mais cabelo, porque têm uma nódoa negra na unha do indicador. E não existe enquadramento legal para eu, responsável pelo serviço de urgência, dizer a esta pessoa, com toda clareza e com muito respeito pela situação clínica e compreensão de que precisa de uma orientação, que aquele não é o sítio para fazer isso. É evidente que, quando a pessoa nos procura, é muito difícil mandá-la para trás. O que temos de fazer no meu ponto de vista é trabalhar ao contrário, definir quem pode vir.
Urgências, passe a expressão, só por convite? Só para pessoas encaminhadas pelo SNS24, pelo INEM?
Tem de ser só por convite. Temos felizmente um país organizado desse ponto de vista, existem mecanismos de acessos para o doente urgente e emergente bem definidos. Se tenho uma situação grave que me põe em risco de vida, ligo o 112 e o INEM vai buscar-me. Isto corresponde a 20% dos nossos doentes na urgência. Se fui ao médico de família e o médico entende que a situação está fora do seu alcance de resolução e precisa do apoio de alguém no serviço de urgência, encaminha a pessoa e se for uma situação emergente chama o INEM ao centro de saúde. Isto corresponde a apenas 6% dos nossos doentes. Se tenho um problema que não sei se é grave mas tenho dúvidas, devo ligar o SNS24 e existem profissionais de saúde que, se for uma situação muito emergente, transferem para o INEM, que vai buscar. Se for uma situação menos grave, podem indicar uma ida ao centro de saúde no próprio dia ou no dia seguinte e se for uma situação ligeira que possa ficar em casa dão aconselhamento para auto cuidados. E se for para ir ao serviço de urgência, encaminham e isto representa, mais uma vez, 6% dos nossos doentes.
Portanto a maioria são doentes que foram a urgência pelo próprio pé e não deviam ter ido.
A ida à urgência não pode ser sempre a primeira tentação. Se pensarmos que o São João é um hospital de fim de linha e há hospitais que drenam para nós, recebemos também doentes de outras urgências que representam 6%, mas 60% dos doentes vieram porque podem e tomaram essa decisão. Evidente que boa parte desses precisavam mesmo, mas vieram sem apoio do INEM e muitos outros não precisavam de ter vindo. E portanto é fundamental que se diga isto e se regule o acesso, de resto como acontece na maior parte dos outros países mais civilizados.
Não se pode ir a uma urgência porque se quer?
No Norte da Europa não se pode ir a uma urgência só porque sim. Mesmo em coisas que cá está instituído que é para ir. Em 2004 fui responsável pelo apoio de emergência médica ao Euro. Uma das ações foi reunir com representantes das embaixadas em Portugal a explicar como funcionava a emergência médica cá. Numa primeira interação, um representante de uma embaixada, penso que da Suécia, perguntava-me, se de facto houver uma situação mesmo grave, “não estou a dizer um braço partido, mas uma situação grave…” Isto é uma questão cultural. Alguém que percebe que um braço partido não é uma situação grave e não tem de chamar uma ambulância mostra a diferença que temos e, dito isto, dou de barato que os braços partidos venham de ambulância, mas é um exemplo da noção que existe noutros países e não existe cá do que justifica uma ida a um serviço de urgência. Enquanto não corrigirmos isto, teremos problemas, porque os serviços de urgência estão dimensionados para um determinado número de doentes e todos os dias são invadidos por mais 100, 150 e 200. E isto é um problema porque os doentes mais graves ficam prejudicados.
Já houve tentativas pedagógicas de moderar a procurar, por exemplo a isenção de taxas moderadoras para doentes que recorriam às urgências encaminhados pelos centros de saúde, SNS24. Pensa que neste momento a solução seria mesmo “fechar” as urgências?
Os números mostram isso, a pedagogia não funcionou. A maioria dos portugueses que recorrem aos serviços de urgência estão isentos de taxas moderadoras. As taxas também não têm valores muito altos nem defendo que tenham, não é isso que dissuade as pessoas. O que se verifica na pratica é que todos os anos 6 milhões de pessoas vão ao serviço de urgência, quando uma boa parte não devia ir.
Sempre se ouviu dizer que a falta de médicos de família era a razão para essas idas evitáveis a urgências. O Norte historicamente é a região com maior cobertura, quase 100%. Porque é que as pessoas continuam a ir? O que falha?
Insisto, porque podem.
Uma vez no seu hospital uma médica dizia-me que não se deve falar de falsas urgências, porque as pessoas têm motivos para ir e de uma forma ou outra não encontram resposta noutros sítios. Sabemos que na maioria dos centros de saúde não há exames, não há analises.
Claro. Eu se puder ficar no Sheraton, vou preferir do que ficar no Ibis. Mas isso não quer dizer que não durma tranquilo no Ibis. Alguém tem de dizer se posso ir ao Ibis ou se posso ir ao Sheraton. E esse é o principal o problema, porque se não a estrutura de recursos humanos não consegue responder aos doentes que precisam, os mais graves. Isto não é um problema do hospital, é um problema das pessoas, das autoridades, dos governos. Passa pela educação e por regulação administrativa. Vai-me dizer que a situação em Lisboa é mais complicada porque a cobertura de médicos de família é caótica comparando com o Norte, é verdade.
E pode ser por isso que estão a aparecer mais doentes descompensados?
Eventualmente. Como digo, no nosso hospital não estamos a sentir isso. Mas também é verdade que mesmo com uma taxa de cobertura de médicos de família elevadíssima no Norte, as pessoas perderam ao longo deste ano e meio acessibilidade aos seus médicos de família. Do ponto de vista global, as pessoas sentem mais dificuldade em aceder aos seus médicos. Mas além disto há uma questão cultural, que vem de há muito tempo e que se não houver uma regulação nunca se modificará esta cultura de que “no hospital é que é”, ali é que estão os exames todos, se for preciso um especialista está lá. Isto é tudo compreensível do ponto de vista individual, não critico minimamente esta sensação das pessoas de que é melhor ir ao hospital do que ir ao centro de saúde, mas quem tem responsabilidades organizativas e de regular o sistema tem de perceber que há equilíbrios que é preciso fazer pensando custos e benefícios.
Sendo previsivelmente impopular, podia ser feito gradualmente? Por exemplo, aquela situação clássica da pessoa que está o dia todo a trabalhar, sai tarde e vai as urgências porque está com as amígdalas inchadas.
E às vezes nem é isso, tem uma comichão na garganta.
Poderia ser algo do género, à noite só para casos encaminhados?
Acho que terá sempre de ser algo gradual, discutido e amadurecido mas dando um sinal de que tem de ser por aqui. Pode ser feito numa lógica geográfica, numa lógica de hora do dia, pode se uma lógica de persuasão progressiva, por exemplo haver um período de transição em que digo à pessoa esta situação daqui a x tempo não seria observada num serviço de urgência.
Mas já houve orientações para isso, de encaminhar doentes triados com pulseiras azuis e verdes para os centros de saúde com agendamento? Recordo-me que no S. João o fizeram.
Vamos recuar a 2020. Houve um plano de outono/inverno que previa algumas coisas e uma era o encaminhamento dos doentes sem gravidade dos hospitais para os centros de saúde, mas nunca foi regulado.
Este ano o plano para o outono/inverno não refere nada de muito concreto sobre urgências, sabendo-se que a procura está de novo em níveis anteriores à pandemia.
O plano deste ano é ainda menos operacional do que era o outro. O outro já não era operacional, era um plano de ideias, definia uma série de princípios e este era um deles, mas também previa a existência de uma task-force para os doentes não covid, que nunca viu a luz do dia. Era um plano de intenções que nunca se tornou operacional. O plano deste ano já nem é um plano de intenções, é um plano conceptual de definição de níveis de risco, de ações muito mais major e muito mais centradas infelizmente até na covid-19, quando este ano do meu ponto de vista o problema não vai ser a covid.
Vão ser as outras infeções?
Estamos com uma linha horizontal em relação à covid e numa linha crescente em relação às outras infeções respiratórias. Portanto este ano vai ser diferente, o frio chega agora – até hoje não tivemos verdadeiramente outono. E há três, quatro semanas que estamos a ver mais infeções respiratórias.
Em nível mais elevado do que em qualquer momento durante a pandemia, quase mil casos por dia nas urgências.
Sim, mais do que tivemos em 2020. Em 2020 não houve praticamente infeções respiratórias à excepção da covid-19.
Existe muito aquela ideia de que se só se falou da covid-19 quando a pneumonia mata 11 mil pessoas por ano.
Houve menos pneumonias, menos bronquites, menos amigdalites e não houve gripe. O ano foi completamente atípico. No nosso hospital não vimos nenhum caso de gripe. Este ano ainda não tivemos gripe mas temos muitas infeções por vírus sincicial respiratório, por rinovírus, vírus de parainfluenza, uma série de vírus que circulam nesta altura. Passámos já de 40 doentes com infeção respiratória por dia para 70 e são doentes que continuam a obrigar a fazer o teste covid-19, que acaba por condicionar também a resposta.
Continua a fazer sentido?
Ainda faz porque não sabemos como vai ser o comportamento da doença neste outono/inverno. Se se mantiver este planalto em que nos encontramos neste momento, poderemos começar a usar a lógica que temos para outras infeções, mas até lá, não sabendo a evolução da pandemia a nível mundial, se vai surgir outra variante e como é que esta vai evoluir, continua a justificar-se. Uma coisa é certa: com mais infeções respiratórias, vamos ter maior pressão e ainda nem chegou o frio. Vamos ter mais doentes com queixas e, quer se queira quer não, por muito bem organizados que os serviços estejam, isto atrasa o processo porque é preciso testar. O tempo que os doentes permanecem nos serviços é maior e isto a certa altura é a tempestade perfeita: doentes mais tempo nos serviços de urgência, mais doentes agora do que tínhamos no passado – mais 6% do que havia em 2019 – uma estrutura e organização que não foi renovada. E um problema transversal: como não se investiu, temos equipas cada vez mais envelhecidas, mais cansadas. Esta sensação que temos e já tivemos nas últimas duas semanas de uma sucessão de problemas, com o Hospital de Leiria que fecha a urgência, o Hospital de Setúbal que já não consegue mais, o Beatriz Ângelo que fecha a urgência, vai acontecer ao longo de todo o inverno porque não houve nenhuma medida modificadora. Com mais infeções e mais procura nas urgências, vamos ter uma agudização. E a pergunta é: ‘Não nos podíamos ter preparado?’ Podíamos, se tivéssemos feito as reformas, umas há vários anos, umas no ano passado e outras agora.
Mas fica chocado por ser conhecido um plano de outono/inverno numa sexta-feira à noite e que fala essencialmente de covid-19?
Não fico porque não esperava que fosse diferente, levo mais de 25 anos de exercício profissional e nunca foi verdadeiramente planeado o acesso às urgências e o problema do inverno. Mesmo que não soubéssemos o que fazer, pelo menos o reconhecimento de que é um problema crónico e que urge descobrir caminhos devia acontecer. E devo dizer que não me recordo de nenhum Governo que não tenha reunido um painel de peritos para estudar a reforma das urgências. Este Governo também o fez, o grupo de trabalho apresentou as conclusões há cerca de dois anos e iam no sentido das conclusões de todos os outros: qualificação dos trabalhos, medicina de urgência, regulação do acesso, melhoria dos cuidados primários. Isto não é rocket science.
Será por se estar à espera melhorar os cuidados primários, garantir médico de família a todos, assegurar exames, para poder retirar esse ónus às urgências?
Mas é preciso trabalhar nas frentes todas. Se não atacarmos todas as áreas ao mesmo tempo, vamos todos os anos estar a lamentar-nos. E a resposta é sistematicamente a mesma: já contratámos mais 5 mil médicos para o SNS. Isto não é no limite um problema de número de profissionais, é um problema de organização. Se não houver uma mudança na forma de funcionamento, por muita gente que se coloque no sistema, nunca se vai mudar o paradigma. É a velha história de quando entramos numa situação de stress, que é o que vivemos, uma situação de stress permanente. Podemos até mandar muitos recursos a um grande acidente, se as pessoas não estiverem organizadas e não se souberem quem faz o quê, posso mandar dez carros de bombeiros, polícia e ninguém sabe. Andamos todos feitos baratas tontas, chegamos ao final do dia esgotados, os doentes mal tratados, os profissionais desencantados e a imagem pública é de uma catástrofe permanente sem conseguirmos sair do mesmo sítio.
Escreveu há dias no Facebook que os sinais de rutura na saúde são evidentes e que se pensou mais uma vez que o sistema se equilibrava porque se equilibra sempre. É desânimo?
O desânimo vem de estar a pregar aos peixinhos há muitos anos e de haver um aparente distanciamento entre quem decide e quem está efetivamente no terreno. Eu não duvido minimamente da boa vontade dos nossos governantes em todas as áreas e na Saúde por maioria de razão. O que penso que existe é uma dificuldade de entender o problema, um distanciamento do problema e não saber identificar as medidas que são modificadoras do prognóstico. É como quando temos um doente com uma doença aguda que precisamos de tratar. Podemos fazer muitas coisas, mas temos de nos concentrar naquelas que efetivamente mudam o prognóstico, que fazem com que o doente, em vez de morrer, sobreviva. E depois, quando questionados os técnicos, e basta ver os grupos de trabalho sucessivos criados, mesmo quando as conclusões são reconhecidas por todos, ficam na gaveta. Imagino porquê, porque é difícil.
São mudanças para ter efeito além de uma legislatura.
Sim, nem sempre são as medidas mais tentadoras, é mais fácil outro tipo de medidas com uma leitura imediatista ou mais positiva: contratam-se mais médicos, mais enfermeiros, paga-se melhor as horas.
Também ficou indignado como a proposta do Governo de pagar mais horas extraordinárias aos médicos a partir da 250ª e 500ª hora, como reagiram os sindicatos?
Tudo o que for remunerar bem quem trabalha muito deixa-me satisfeito. O que me indigna não é pagar bem a profissionais que trabalham muito, é não ser capaz de perceber que precisamos de reformas a montante destas estratégias. E isso é que me cansa, me desanima e às vezes me indigna.
Faz 500 horas extra por ano?
Faço.
Trabalha no privado?
Não, em exclusividade, ainda tive um contrato de exclusividade.
Esta nova versão de exclusividade que o Governo estava a traçar faz-lhe sentido, a dedicação plena?
Eu não sei ainda muito bem o que significa, não sei qual é a diferença entre a dedicação plena que não pressupõe exclusividade e outro tipo de modalidade.
A ideia de haver um acordo para atingir objetivos assistenciais.
O que é que isso tem a ver com dedicação plena? Posso ter acordos para cumprimento objetivos independentemente do meu vínculo laboral.
No limite, médicos sem dedicação plena faziam o que quisessem sem cumprir objetivos.
Isso. Se se falar de lógica de remuneração indexada a objetivos, sou 1000% a favor. Acho que todas as reformas na saúde devem passar por essa lógica. Penso que a questão da exclusividade ou não exclusividade é mais acessória e sindicatos e entre pares muita gente defende disto porque no passado foi a forma a forma de melhorar a remuneração. Se os médicos forem melhor remunerados, fico contente com isso, mas não é isso que vai resolver os problemas estruturais.
Ganham mal os médicos?
Em geral, obviamente. As tabelas são conhecidas.
Mas não entram com horas extra.
Quando se discute horas extra, isso não deve entrar na discussão inicial. Se as pessoas fazem centenas de horas extra e em vez de estarem em casa estão a trabalhar e em vez de terem folga estão no hospital, têm de ser pagas por isso. Quando se discute carreiras e remunerações é preciso falar sobretudo dos ordenados base, porque é isso que é comparável com outras carreiras na função pública e fora da pública.
Um médico assistente ganha 2700 euros, com impostos dá 1600 euros.
E sem progressões. E quando se fazem comparações, é preciso ter presente que os médicos têm contratos de 40 horas de trabalho, não voltaram às 35 horas como todos os outros funcionários do Estado. São pormenores que fazem a diferença. E nas urgências há um problema: como médicos que se dedicam apenas às urgências não exercem, digamos assim, a sua especialidade-mãe, é mais difícil uma progressão.
Tinha alguma boa expectativa para o OE chumbado no Parlamento?
Não particularmente, porque só ouvi falar em aumento de trabalho e de horas. Claro que tudo o resto não tem de estar vertido no Orçamento. Uma das coisas que pensava que ia acontecer, porque fomos contactados nesse sentido há uns meses, era a criação de um grupo de trabalho para a criação de um centro de responsabilidade integrada nos serviços de urgência, o que me parece um bom mecanismo porque alia a remuneração aos objetivos. Já existem noutras áreas e no contrato programa 2021 foi inscrito nos termos de referência essa possibilidade, fomos convidados para integrar um grupo de trabalho no sentido de trabalhar isso. O grupo até agora não reuniu, ate agora não avançou, não sei se era propósito do Governo que acontecesse em 2022, mas seria uma boa iniciativa. E agora estamos à espera de perceber o que vai acontecer.
Com o país mergulhado numa crise política, que balanço faz da legislatura na Saúde marcada pela pandemia? Fala-se muitas vezes na saúde em fim de ciclo de oportunidade perdida. Foi-o de novo?
Acho que o SNS sai reforçado pelo reconhecimento generalizado que existe hoje de que é uma mais-valia inalienável da nossa democracia. Nesse sentido acho positivo o ponto em que nos encontramos. Mas, congratulando-me com isso, acho que efetivamente foi uma oportunidade perdida no sentido em que, no meu ponto de vista, é nas crises que se fazem as verdadeiras reformas. Há os que acham que na crise não se deve reformar porque se está demasiado envolvido na gestão da crise mas são sobretudo oportunidades de reforma. E não se reformou. Aguentou-se e nesse ponto de vista palma para todos. Agora aguentamos e não reformamos e, como acontece sempre após uma crise, há booms. Houve baby-booms no pós-guerra e nós vamos ter e já estamos a ter booms de necessidades em saúde no pós-pandemia. E isto num sistema de saúde que já estava muito fragilizado e debilitado antes da pandemia, e que ganhou um novo élan mas não se reformou, pode ser pior a emenda que o soneto.
Antes da pandemia disparavam os casos de violência contra profissionais de saúde, havia uma forte descredibilização. As pessoas tendo de lidar com tempos de espera excessivos, passa-lhes depressa a vontade de palmas.
Sem dúvidas. E como não nos reformamos, vamos ser vítimas de nosso sucesso. Ainda bem que nos portámos bem, como vamos ter este retorno de necessidades e se já estamos a sentir dificuldades para lidar com isto, infelizmente só se vão agudizar nos próximos tempos.
Discute-se muito se a concorrência do privado fragiliza o SNS ou se retira peso dos serviços públicos. Como vê esta relação a partir do serviço de urgência?
O privado é obviamente um complemento fundamental neste momento. As necessidades públicas em áreas como meios complementares de diagnóstico nos cuidados primários dependem quase exclusivamente do privado. Todo o sistema está montado numa colaboração entre público e privado, contra a qual do ponto de vista conceptual não tenho nada e qualquer modificação abrupta seria ingerível. Não tenho nenhuma visão messiânica sobre como alterar o sistema, mas qualquer mudança teria de ser muito sustentada e refletida. Nos serviços de urgência o privado aliviará algumas situações de pessoas que não querem chegar e que podem ir ao privado.
É uma boa ideia para as amigdalites?
(risos) Pode ser. Mas temos de ter consciência que nos casos graves é no SNS que estão concentradas as competências e é onde devem estar.
Esta semana a página Pérolas da Urgência, muito popular entre médicos e não só, com histórias humorísticas sobre a vida nos hospitais, tinha um texto sobre um senhor a quem é dada alta e não quer ir embora. E o médico dizia: muito bem, pode ficar mas a partir de agora são 300 euros de diária. Os casos de natureza social são um problema que se agrava no inverno. Há momentos em que se sente isto?
São um problema, todos os dias temos casos sociais para resolver nos serviços de urgência. Sempre tivemos um assistente social a tempo inteiro no serviço de urgência e de há uns meses para cá o volume de casos aumentou ao ponto de necessitarmos também de ter um assistente ao sábado e domingo. Esse exemplo que é dado pelo Dr. Pearls é um bocado diferente e já comento, não é bem um caso social, mas todos os dias temos casos de pessoas que não têm condições para estar em casa. A disfunção social está a crescer, temos uma população mais envelhecida e as famílias não estão preparadas e não têm condições para dar o apoio. Estamos a permitir que as pessoas vivam mais tempo, a tratar doenças que não tratávamos e com isso temos hoje muito mais idosos muito limitados nas suas capacidades e que têm os últimos anos de vida com muito baixa qualidade de vida. Por muito dedicada que seja a família, muitas vezes não é compatível com a sua vida. Uma pessoa que está acamada, que precisa de ser virada de x em x tempo, precisa de ser alimentada por sonda, precisa de ser tirada a fralda, precisa de um acompanhamento permanente e as famílias não têm condições. São sobretudo estes doentes que entopem os serviços de internamento a aguardar uma resposta social.
A pandemia não agilizou esse processo?
Durante a pandemia houve uma mobilização imensa de uma série de instituições e da Segurança Social e conseguiram resolver-se muitos casos pendentes mas a situação está a voltar à inércia e também aí não se foi longe na reforma que é preciso fazer. Mas voltando a essa história do Dr. Pearls, é mais o exemplo das pessoas que usam abusivamente os serviços de saúde e os serviços de urgência. As pessoas têm uma postura um bocadinho autocêntrica relativamente à sua necessidade. Venho cá porque tenho uma dor no joelho, ando com a dor há um mês, não tenho nenhum sinal de infeção. Posso receitar um analgésico ou um anti-inflamatório mas o senhor tem de ir para casa e ir ao seu médico de família para fazer uma investigação, que provavelmente vai passar por fazer um raio-x, eventualmente até pode precisar de uma consulta de ortopedia, até uma cirurgia, mas tem de ser feito por este caminho. Quando nós no serviço de urgência começamos esta conversa a resposta é “mas o médico de família nunca lá está, nunca me vê, tentei telefonar e ninguém atende o telefone.”
Verdades.
É provavelmente verdade, mas continuamos a explicar que há doentes que precisam mais e as pessoas ficam muito incomodadas. E depois utilizam aquilo que ouvimos dezenas de vezes por dia: “O que o sr. Doutor tem de fazer é trabalhar, porque quem paga o seu ordenado são os meus impostos. O sr. Doutor tem de trabalhar e fazer-me o raio-x porque eu quero”. Esta é a postura de quem pode ir ao serviço urgência.
E de quem paga muitos impostos.
E paga, mas esta organização não permite dar a melhor resposta aos doentes.
A diretora-geral da Saúde admitiu que o país pode voltar a precisar de um confinamento geral ou seletivo. Parece-lhe que pode acontecer?
Pelo princípio de cautela que nem sempre tivemos ao longo destes 18 meses, acho que nenhum técnico de saúde pode dizer que em abstrato e em teoria não pode acontecer. Se acho provável neste momento? Acho pouco provável mas nenhum de nós se atreverá a dizer que não acontece.
Quando vai na rua, acha que há algum cuidado que se poderia reforçar?
Do ponto de vista das medidas globais acho que mais uma vez em termos de comunicação houve uma transmissão de uma sensação de total segurança relativamente à não necessidade de utilização de máscaras em espaços fechados. E depois diz-se, continuem a usar, mas nas discotecas não é preciso e as pessoas estão todas juntas, a respirar umas em cima das outras. Embora consiga perceber as dificuldades em tomar decisões em termos políticos, a mensagem não passou da melhor forma possível. Acima de tudo penso que o foco tem de ser na proteção individual. Se eu tenho risco, tenho de perceber que tenho risco e proteger-me. E vamos perceber que os jovens não se vão proteger e um outro vai sofrer consequências disso, mas o importante é que eu que sou idoso, que tenho esta doença crónica, que sou obeso – e infelizmente esta doença é implacável com os obesos – devo continuar a proteger-me apesar de estar vacinado e a partir daí tentarmos viver a nossa vida o mais tranquila possível, percebendo que a máscara para já é para manter e quem sabe daqui por meio do ano possa ser diferente.
Já foi a uma discoteca.
Não, mas também já não ia (risos).