1. O confronto com o íntimo: a política como serviço ou vaidade (ou ambas as coisas)? Quaisquer memórias, auto-biografias, a Ocidente, confrontam-se, inevitavelmente, com o rememorar cultural desse ato inaugural que As Confissões de Agostinho constituem. Com o derradeiro eu sob escrutínio, no espelho de um intimior intimo meo que apenas se tacteia, aceitando expor feridas e fracassos, dúvidas e pecadilhos, assim se deixa ler um coração em busca da verdade. Barack Obama, nascido, a 4 de Agosto de 1961, no Havai, com avós de ascendência escocesa, uma mãe muito opinativa, opositora à guerra do Vietname e preocupada com as questões da pobreza (trabalhando em âmbito do microcrédito), que casará duas vezes e terá vários problemas financeiros (ao longo da vida), e um pai, vinculado, em termos profissionais, ao governo queniano, que mal conhece (encontram-se apenas uma vez), o rapaz que experimentará drogas, será um “estudante indolente”, jogador “ardente” de basquetebol (mas) de talento limitado, frequentador de festas “incessante e dedicado”, com discussões adolescentes centradas em desporto, miúdas, música e dinheiro, frequentará os melhores colégios do Havai, terá notas medianas quando apenas à guarda dos avós, mas com o Secundário a alterar tal circunstância, herdando, então, o materno hábito de leitura, refúgio definitivo (e com gostos literários à medida dos interesses de eros, a cada momento). Barry, que aos seis anos fora para a Indonésia, e aos 15 terá o seu primeiro emprego, a servir gelados, na Baskin-Robbins, sem nunca ter prestado serviço militar, ingressará na universidade de Columbia e viverá, à altura, como um monge (ler e escrever, eis a sua regra exclusiva). Mais tarde, ingressará na Faculdade de Direito de Harvard, sendo o primeiro diretor negro da Law Review. Pois bem, este mobilizador comunitário em Chicago, estabilizador de comunidades afectadas pelo encerramento de fundições de aço, com um avô que combatera na Segunda Guerra Mundial, reconhece o banho de humildade que esta primeira experiência significativa de cidadania lhe trouxe – “tive de ouvir o que era importante para as pessoas e não apenas teorizar sobre isso”, p.33 -, mas, sobretudo, ganha embalo para um salto político, depois de ser já senador estadual, que se revela embaraçoso. Na desmesura e precipitação de uma candidatura demasiado precoce, e pouco sólida, ao Congresso, reconhece-se quase falido financeiramente, com um casamento – que fora, da sua parte, corolário de um amor à primeira vista com Michelle, já estabelecida como advogada e de feitio nem sempre fácil, mas uma âncora para toda a existência de Obama – sob tensão, abalo sísmico que o interpela com brutalidade: “reconheci que, ao candidatar-me ao Congresso, me deixara impelir não por algum sonho altruísta de mudar o mundo, mas antes pela necessidade de justificar as escolhas que já fizera, ou para satisfazer o meu ego, ou para mitigar a minha inveja daqueles que haviam alcançado o que eu não alcançara” (p.58).
Mais tarde, quando uma candidatura presidencial se torna suficientemente verosímil para que os seus próximos o questionem nesse sentido, e conquanto Obama se mostre desinteressado, ou alheio, a tais equações, interroga-se, agora, bem fundo, o Presidente (à época) em gestação: “estaria a ludibriá-los? Estaria a enganar-me a mim mesmo? É difícil dizer” (p.89). O certo é que Barack Obama avançará, mesmo, rumo à Casa Branca e, longe, já se vê, de grandiloquências laudatórias ou auto-elogios em permanência, respeitando, pois, a inteligência do leitor, prosseguirá a inquisição interior: a sua candidatura à presidência “seria somente vaidade, ou talvez algo mais sombrio: uma fome primária, uma ambição cega, dissimuladas pelas palavras vazias do serviço público? Ou estaria eu ainda a tentar provar o meu valor a um pai que me abandonara?” (p.94). Uma coisa tinha por certa: o país estava desesperado por uma nova voz (e o poder encantatório da sua terá um efeito poderoso). Um amigo instiga-o, em definitivo: o carteiro não toca duas vezes, o comboio de um múnus que transformaria, potencialmente, a vida de milhões de pessoas (desejavelmente, para melhor, claro) talvez não tenha outra meia-noite, o homem é ele e as suas circunstâncias e, mesmo sem as fantasias de um messianismo político, há um destino a cumprir: “o poder de inspirar é raro. Momentos como este são raros. Pode pensar que talvez não esteja pronto (…) Só que não é você que escolhe o momento. O momento escolhe-o a si” (p.93).
2. Do Don Juanismo das expectativas ao fardo das possibilidades. Baladas melancólicas de uma estrela rock.
A campanha presidencial é (um) tempo de insuflar expectativas, criar sonhos, semear ilusões. Há uma enorme sede do eleitorado, a pregação é forte, o tom arrebatador. Os comícios estão à pinha, 100 mil chegam a juntar-se por Obama (“cada comício parece um concerto de rock”, p.164), uma estrela emerge no grande palco da política mundial. E, sem embargo, no meio dos flashes, dos confetis e serpentinas, do fogo-fátuo do vibrante “Yes, we can!”, Barack Obama – pelo menos assim no-lo diz quando, agora, regressa a esses momentos – reconhece o caldo de cultura fabricado…para a desilusão posterior: “já não era a mim que as pessoas viam, com todas as minhas peculiaridades e falhas. Em vez disso, tinham-se apropriado da minha aparência e feito dela veículo para um milhão de sonhos diferentes. Eu soube que chegaria uma altura em que as desapontaria, não estando à altura da imagem que a minha campanha e eu ajudáramos a construir” (p.165). No ecrã de uma figura alçada a sobrehumana projectam-se todos os desejos e redenções (destinados, em parte, a serem, evidentemente, frustrados).
Se, em não raras ocasiões, a colocação de desígnios impossíveis de alcançar é deliberada/perversa meta/ratoeira colocada por adversários políticos – ah, Obama não é Deus…que novidade! -, neste seu I Volume de Memórias Políticas, sem se queixar destes, no desenhar de miríficas possibilidades (políticas), mesmo em uma das mais altas magistraturas mundiais, Obama reconhece o quanto a sua campanha, mea culpa, ajudou a erigir o impossível (que, reitera-se, se voltaria contra o próprio). Este flirt com o eleitorado em exaltados discursos com dicção e pronúncia perfeitas, ressoando, em tais predicações, alguns exemplos emblemáticos do século XX – um Obama atraído por Luther King ou Mandela, por exemplo – ultrapassaria, e de que maneira, as fronteiras norte-americanas. Quando Obama recebe o Nobel da Paz, que diz não merecer, reflecte, de novo, sobre o “fosso entre as expectativas e as realidades da minha presidência” (p.497) e, já em Oslo, na noite anterior a receber o galardão do pacifismo – que, como valor absoluto, pese a recusa, avisada e tempestiva, da guerra do Iraque, negara explicitamente (vide p.67) -, acolhido por uma multidão com velas, milhares, à porta do hotel em que ficara instalado, a manifestarem o apreço pelo vencedor daquele prémio – “uma visão mágica, como se um grupo de estrelas tivesse descido dos céus” (p.502) – registaria, em cortante lucidez, que “em certa medida, a multidão lá em baixo estava a aclamar uma ilusão” (p.503). Por detrás do Nobel da Paz a Obama, uma certa ideia de um Médio Oriente reconciliado, uma missão maior do que o Homem: “a ideia de que eu, ou qualquer outra pessoa, poderia impor ordem àquele caos pareceu-me ridícula” (p.503). Mesmo no cargo político (porventura) mais poderoso do mundo há limites ao que é possível conseguir-se; mesmo na hora de celebrar um acordo tão importante quanto improvável sobre o clima, incluindo, nele, a China e os países emergentes (eis a cena mais cinematográfica, digna de “gangsters”, de “Uma terra prometida”, p.576), Obama despe de novo as vestes eufóricas para regressar a uma balada melancólica: “haveria sempre um abismo entre aquilo que eu sabia que deveria ser feito para se conseguir um mundo melhor e aquilo que conseguiria efectivamente fazer num dia, numa semana ou num ano” (p.579).
3. A palma do pragmatismo, dos pequenos passos, das melhorias significativas mesmo que não multitudinárias. A política como arte do possível e o valor do compromisso -levados ao limite.
É um elemento central e transversal ao conjunto de memórias com que Barack Obama nos cumula (nesta obra, sob apreço): nos cuidados de saúde, na reforma de Wall Street, no domínio fiscal, o critério que o ex-Presidente dos EUA utiliza, para aferir se valeu a pena o que fez, passa por aquilatar se existiu uma mudança para melhor face à herança por si recebida, sobretudo nos sectores mais desfavorecidos da população, bem como no que concerne à classe média, após os seus dois mandatos presidenciais. Acossado, em cada um destes dossiers, pela ala esquerda dos Democratas, claramente desiludida com a sua Presidência, Obama defende, agora, com vigor, aquilo que fez, em uma abordagem política na qual os valores do pragmatismo, dos pequenos passos, das reformas tanto quanto possível e do compromisso se antolham determinantes. Se é certo que, em se ilustrando, em uma escala de 0 a 10, significando o limite inferior (da mesma) a manutenção do status quo e o limite superior a sua mais completa alteração (política), a obtenção de um 1 ou de um 2, em termos políticos, podendo ter introduzido pequenas melhorias na vida das pessoas, não lograria, eventualmente, justificar uma plataforma política que se apresentava como significativamente transformadora. Saber, hoje, em que patamar situar essa mudança, em qualquer escala quantitativa ou qualitativa, eis um exercício (inevitavelmente) interpretativo (no fundo, a avaliação do legado Obama) que pertence ao cidadão informado e conhecedor deste tempo (desde logo, evidentemente, norte-americano). Há, em qualquer caso, alguns argumentos fortes a que Obama deita mão (para justificar o seu “realismo”): 20 milhões de norte-americanos que não tinham, e com a sua Presidência passaram a ter, seguro de saúde. Sendo a saúde um bem e preocupação primárias, há, aqui, de facto, um ganho extraordinário para o americano comum. Ainda que, para se alcançar uma maioria capaz de aprovar a nova legislação, tivesse o Presidente que deixar cair a opção pública de seguro (que, caso existisse, como inicialmente prevista, baixaria o valor daquele, como se pretendia). Entre a solução ideal – e quando a opção pública foi retirada do projecto de Lei do Senado “os activistas de esquerda perderam a cabeça” (p.469) – e um avanço muito significativo na vida dos norte-americanos é difícil não concordar que, pelo menos neste ponto tão relevante, valeu a pena.
A crise do Lehman Brothers é um incêndio monumental que surge nos EUA – e que se propaga, com não menor virulência, no prado internacional dos mercados interconectados e interdependentes. Obama decide escolher, em vez de novos talentos, gente experiente a pilotar, mantém lugares-tenentes que os próceres nem admitem, não altera o sistema quando, pela primeira vez em décadas, este é questionado com fragor: “a minha tarefa prioritária não era reformular a ordem económica, mas evitar mais desastres” (p.247). Se Obama dá nota de que “nos dias anteriores à tomada de posse (…) lera vários livros sobre o primeiro mandato de Franklin Delano Roosevelt e a implantação do New Deal” (p.247), em realidade, quando comparado com os resultados daquele (presidente), não deixa de assumir uma postura modesta: não reestruturara o capitalismo, como havia feito Roosevelt, mas, também, porque entendia que, ao contrário daquele, não tinha mandato para isso (p.617). Reformou as práticas dos bancos, mas não o tipo de instituição em causa. E, se atentarmos na questão fiscal – só com as alterações nas leis de heranças, Bush havia transferido 130 mil milhões para os mais ricos, contribuindo para que o superavit deixado por Clinton se transformasse num enorme défice -, a ideia de solução menos má – face à impossibilidade de encontrar os votos necessários para alterar esta lei, compensa-a com a atribuição de mais benefícios aos mais pobres, protelando, por dois anos, e novas eleições, as que lhe garantiriam um segundo mandato, uma alteração fiscal (correndo o risco de, em ganhando o Partido Republicano, aquelas concessões se tornarem definitivas) – impõe-se de modo gélido. Obama confidencia-nos que “embora admirasse [Bill] Clinton, não me parecia que ele tivesse transformado a política como havia feito Ronald Reagan nos anos 80” (p.154); ora, nos termos de Mark Lilla, dir-se-ia que a dispensação liberal (desregulação, confiança cega no mercado) continuou a predominar mesmo sob os mandatos de Obama. Este, insiste-se, não veio para alterar a ordem económica, nem considerava ter mandato para alterar o tipo de capitalismo vigente (60% dos eleitores norte-americanos, por exemplo, entendiam como excessivamente permissiva a sua atitude relativamente aos bancos); a sua abordagem passava, antes, por “marcar uns pontos enquanto podíamos” (p.616), mesmo que também decida vincar que “promovemos a alteração mais radical às leis que regiam o sector financeiro dos EUA desde o New Deal” (p.623). Numa palavra, Obama melhorou a vida de milhões de norte-americanos em muitos aspectos significativos – da Saúde aos impostos e apoios aos mais desfavorecidos -, sendo que para os seus críticos (onde, por vezes, se incluíram Prémios Nobel da Economia, muito próximos dos Democratas, como Joseph Stiglitz ou Paul Krugman, que entendiam que Obama não fora suficientemente longe nas mudanças a implementar) não reformou tanto não só como devia, mas como estava claramente ao alcance da sua Presidência realizar. E, no entanto, deixará escrito Barack Obama – ele, que adorava o trabalho como Presidente dos EUA (p.605) – tinha “a rara oportunidade de conduzir a História para melhor” (p.478) e não a desaproveitou.